Day Off
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Por — São Paulo


O escritor argentino Julio Cortázar nos deixou há 40 anos. Era o dia 12 de fevereiro de 1984 quando morreu, em Paris. Mas, em todo esse tempo sem ele, Cortázar nunca caiu no esquecimento. A relativamente recente publicação no Brasil de seus contos completos, um box com mais de mil páginas – editado pela Companhia das Letras com o título “Todos os Contos” –, mostra que o interesse por sua obra permanece. Um dos mais conhecidos e respeitados autores latino-americanos, Cortázar é bastante lembrado por sua relação com a literatura fantástica, apesar de seu legado ser muito mais amplo do que isso.

Quem conhece um pouco da biografia desse escritor nascido em 1914, por acaso na cidade belga de Bruxelas, onde a família estava por causa do trabalho de seu pai, sabe que ele tinha no jazz um de seus profundos interesses. A ligação de Cortázar com a música veio desde muito cedo, quando, criança, começou a dedilhar o piano que havia na sua casa. Ainda jovem, descobriria o jazz, uma época em que os discos de 78 rotações começaram a chegar à Argentina e a música de Louis Armstrong e Duke Ellington passou a ser tocada nas rádios.

A paixão pelo jazz extrapolaria o âmbito pessoal, adentrando, por diferentes vias, sua criação literária. Foi na França, para onde emigrou na década de 1950, que seu relacionamento com o gênero musical se aprofundou de forma decisiva. Paris tinha uma agitada noite jazzística, alimentada inclusive por músicos americanos que haviam se mudado para a cidade, como o influente baterista Kenny Clarke. É na capital francesa que Cortázar escreveria uma de suas preciosidades, o conto “O Perseguidor”, que traz exatamente o mundo do jazz como tema.

Escrito em 1959 e depois publicado no livro “As Armas Secretas”, O Perseguidor tinha como protagonista um personagem diretamente inspirado no saxofonista americano Charlie Parker (1920-1955), ícone do estilo bebop. Artista revolucionário e autodestrutivo, que sucumbiu às drogas e ao álcool, Parker é um dos mitos maiores do jazz. Para a sua narrativa, Cortázar fez algumas adaptações na história do músico. A começar por chamar o protagonista de Johnny Carter – utilizando nome e sobrenome de outros dois notáveis saxofonistas daqueles tempos, Johnny Hodges (1907-1970) e Benny Carter (1907-2003). Sem esconder sua inspiração primeira, o autor fez questão de colocar na folha de rosto "In memoriam Ch. P.".

O escritor argentino Julio Cortázar, grande apreciador de jazz — Foto: Sara Facio
O escritor argentino Julio Cortázar, grande apreciador de jazz — Foto: Sara Facio

A repercussão do conto foi grande e não tardaria para a história de Cortázar ganhar inclusive uma versão cinematográfica na Argentina. O filme, “El Perseguidor”, dirigido por Osias Wilenski, foi lançado em 1965 e teve trilha sonora original criada pelo trompetista Ruben Barbieri, irmão do mais famoso saxofonista argentino, Gato Barbieri (1932-2016), que também participou da gravação.

Se Cortázar não faria de outros jazzistas protagonistas de suas histórias, o jazz se manteria como elemento muito vivo em sua arte. Em 1963, ele publica sua obra-prima, "O Jogo da Amarelinha", na qual o jazz pulsa de diferentes maneiras. Primeiramente, como trilha sonora. Em especial entre os capítulos 10 e 18, vemos os protagonistas Oliveira e Maga reunidos com seus amigos no “Club de la Serpiente” enquanto os discos vão sendo tocados na vitrola, em um desfile de nomes lendários: Bix Beiderbecke, Lester Young, Stan Getz, Coleman Hawkins, Bessie Smith, Dizzy Gillespie, Louis Armstrong, Fats Waller, Earl Hines, Jelly Roll Morton, Thelonious Monk, Oscar Peterson – uma coleção de clássicos do jazz que, se o leitor se der ao trabalho de ir colocando cada um deles para tocar de acordo com que vão sendo citados, verá as páginas ganharem um novo esplendor.

Em O Jogo da Amarelinha, o escritor vai também se inspirar na ideia de improviso jazzístico para arquitetar a ousada estrutura fragmentada da obra. O livro (que pode ser lido de mais de uma maneira) convida o leitor a improvisar, a criar seu próprio rumo pelas páginas, em um labirinto não linear no qual pode se perder, como em um longo solo de sax que não sabemos quando ou de que forma irá acabar. Se o jazz simboliza espontaneidade e liberdade criativa, isso é o que encontramos também nesta obra genial.

“O jazz, em particular, é uma espécie de presença contínua inclusive no que escrevo. Meu trabalho como escritor se dá onde existe uma espécie de ritmo, que não tem nada a ver com rimas, nem com aliterações, é uma espécie de batida, de swing, como dizem os jazzistas”, afirmou Cortázar, em uma conhecida entrevista à TV espanhola na década de 1970.

Ao percorrermos sua obra, veremos surgir, de um livro a outro, menções a diferentes jazzistas, talvez quem ele estivesse ouvindo no momento em que escrevia. “Acontece muitas vezes comigo de estar ouvindo discos de jazz (...) e parar a vitrola para ir à máquina de escrever por causa de uma passagem que me atira sobre o texto. (...) sou levado a escrever pelo que acabei de ouvir”, disse em entrevista a Ernesto González Bermejo (“Conversas com Cortázar”, 2002, Jorge Zahar Editor). Apesar de citar mais os clássicos, Cortázar também parecia estar atento ao que de novo ia aparecendo no jazz. Eric Dolphy (1928-1964), saxofonista e clarinetista ligado ao avant-garde jazz, é citado em mais de um conto seu, como em “Silvia”, do livro Último Round (1969): “Agora se falava de poesia concreta, do grupo da revista Invenção; entre Borel e eu, surgia um terreno comum, Eric Dolphy”.

Existe um conto em especial que vale ainda ser lembrado. É “Lugar chamado Kindberg”, que está no livro Octaedro (1974). A figura que marca presença aqui é o saxofonista Archie Shepp, um dos pioneiros do free jazz na década de 1960. Esta narrativa é centrada no encontro de gerações, entre um homem mais velho e seu cotidiano burguês sem surpresas e uma jovem de ar aventureiro, a quem ele dá carona na estrada. O narrador liga a figura dela, Lina, ao free jazz e a Shepp, à plena liberdade representada por este estilo vanguardista do universo jazzístico. Logo quando ela começa a ser descrita, fala-se em “um tema cantarolado de Archie Shepp”; depois, do sorriso com algo “free jazz” dela.

“(...) O normal seria que ele não tivesse os discos de Archie Shepp, e isso é estúpido, porque na realidade claro que tem e às vezes os escuta (...) somente não sabe vivê-los como Lina”, diz o narrador. No decorrer do texto, o escritor passa a jogar com a sonoridade do sobrenome do saxofonista (“Shepp”), que vai surgindo repetidamente (aparece um total de 19 vezes), como se fosse um fragmento temático resgatado de tempos em tempos em um solo de sax. Brilhante.

Se nunca se tornou músico, Cortázar acabou por aprender a tocar trompete – mal, segundo ele –, algo que faria a vida toda, normalmente à noite e sozinho, quando estava fatigado de ler e escrever. “Se há alguma coisa que eu teria gostado de fazer era ser um músico suficientemente competente para dominar a técnica de um instrumento de jazz e poder improvisar como um Charlie Parker.”

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