Como grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food
Gritos de crian�as brincando penetravam o calor �mido da manh�, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco por ruas esburacadas e cheias de lixo. Ela fazia entregas a algumas das fam�lias mais pobres de Fortaleza, levando pudim, biscoitos e outros alimentos processados aos fregueses de sua lista.
Celene da Silva, 29, faz parte do contingente de milhares de vendedores de porta em porta que trabalham para a Nestl�, ajudando o maior conglomerado mundial de alimentos processados a ampliar seu alcance e chegar a um quarto de milh�o de fam�lias nos recantos mais distantes do Brasil.
Enquanto ela deixava pacotes de pudim Chandelle, chocolates Kit Kat e cereal infantil Mucilon nas casas de seus fregueses, uma coisa chamava a aten��o neles: muitos, mesmo as crian�as pequenas, estavam visivelmente acima do peso.
Celene apontou para uma casa que consta em sua lista e sacudiu a cabe�a, contando que o dono do lugar, um homem morbidamente obeso, morrera na semana anterior. "Ele comeu uma fatia de bolo e morreu dormindo", ela disse.
A pr�pria Celene pesa mais de 90 quilos e descobriu recentemente que tem press�o alta, uma condi��o que ela reconhece que provavelmente est� ligada a seu fraco por frango frito e a Coca-Cola que ela toma com todas as refei��es, incluindo o caf� da manh�.
O ex�rcito de profissionais de vendas diretas que a Nestl� tem no Brasil faz parte de uma transforma��o mais ampla do sistema alimentar, distribuindo alimentos processados e bebidas doces de estilo ocidental aos bols�es mais isolados da Am�rica Latina, �frica e �sia.
Enquanto seu crescimento diminui nos pa�ses mais ricos, as multinacionais de alimentos, como Nestl�, PepsiCo e General Mills, v�m ampliando agressivamente sua presen�a em pa�ses em desenvolvimento, desencadeando uma m�quina de vendas que subverte as dietas tradicionais em pa�ses que v�o do Brasil a Gana e �ndia.
Uma an�lise feita pelo "New York Times" de documentos das empresas, estudos epidemiol�gicos e relat�rios governamentais –al�m de entrevistas com dezenas de nutricionistas e especialistas em sa�de pelo mundo afora–revela uma transforma��o profunda no modo em que os alimentos s�o produzidos, distribu�dos e promovidos em boa parte do mundo.
Para muitos especialistas em sa�de p�blica, essa mudan�a est� contribuindo para uma nova epidemia de diabetes e problemas card�acos, doen�as cr�nicas que s�o alimentadas pelos �ndices crescentes de obesidade em pa�ses que h� uma gera��o apenas enfrentavam a fome e a desnutri��o.
A nova realidade � epitomada por um fato �nico e chocante: em todo o mundo, hoje h� mais obesos que pessoas abaixo do peso. Ao mesmo tempo, dizem cientistas, a disponibilidade crescente de alimentos de alto teor cal�rico e pobres em nutrientes est� gerando um novo tipo de m� nutri��o em que cada vez mais pessoas est�o ao mesmo tempo acima do peso e subnutridas.
"A hist�ria que se conta � que estamos no melhor dos mundos poss�veis, com alimentos baratos e largamente dispon�veis. Se voc� n�o pensar a fundo, faz sentido", disse Anthony Winson, que estuda a economia pol�tica da nutri��o na Universidade de Guelph, em Ontario. Mas, segundo ele, um olhar mais pr�ximo revela uma realidade muito diferente. "Para falar em termos simples, essa dieta nos est� matando."
Mesmo os cr�ticos dos alimentos processados reconhecem que h� muitos fatores envolvidos na ascens�o da obesidade, incluindo fatores gen�ticos, urbaniza��o, o aumento das rendas e os modos de vida mais sedent�rios.
Executivos da Nestl� dizem que seus produtos ajudam a aliviar a fome e fornecem nutrientes cruciais e que a empresa j� reduziu os teores de sal, a��car e gordura de milhares de seus produtos para torn�-los mais saud�veis. Mas Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos da Nestl�, reconheceu que a obesidade vem sendo um efeito colateral inesperado da disponibiliza��o mais ampla de alimentos processados de custo acess�vel.
"N�o esper�vamos que fosse esse o impacto", ele disse.
Westcott acrescentou que o problema se deve em parte � tend�ncia natural das pessoas de comer demais assim que t�m condi��es econ�micas de comprar mais comida. A Nestl�, ele disse, procura informar os consumidores sobre os tamanhos corretos das por��es e se esfor�a para produzir e vender alimentos que equilibram "prazer e nutri��o".
Hoje existem mais de 700 milh�es de obesos no mundo, 108 milh�es dos quais s�o crian�as, segundo estudo publicado recentemente no "New England Journal of Medicine". A preval�ncia da obesidade dobrou em 73 pa�ses desde 1980, contribuindo para 4 milh�es de mortes prematuras, segundo o estudo.
� um problema de natureza tanto econ�mica quanto nutricional. � medida que empresas multinacionais intensificam sua presen�a no mundo em desenvolvimento, elas transformam a agricultura local, incentivando os agricultores a abrir m�o do cultivo de variedades de subsist�ncia em favor de commodities como cana-de-a��car, milho e soja, os ingredientes b�sicos de muitos alimentos industrializados.
� esse ecossistema econ�mico que domina mercadinhos de bairro, grandes varejistas, produtores e distribuidores de alimentos e pequenos vendedores como Celene da Silva.
Em pa�ses t�o distantes quanto China, �frica do Sul e Col�mbia, a influ�ncia crescente das grandes empresas de alimentos tamb�m se traduz em influ�ncia pol�tica, frustrando as autoridades de sa�de p�blica que querem cobrar impostos sobre os refrigerantes ou criar leis para frear os impactos dos alimentos processados sobre a sa�de da popula��o.
Cada vez mais nutricionistas consideram que a epidemia de obesidade est� intimamente ligada �s vendas de alimentos processados, que subiram 25% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto sua alta nos Estados Unidos nesse per�odo foi de apenas 10%, segundo a firma de pesquisas de mercado Euromonitor. As vendas de refrigerantes com g�s subiram ainda mais, dobrando desde 2000 na Am�rica Latina. Em 2013 venderam-se mais refrigerantes na Am�rica Latina que na Am�rica do Norte, segundo a Organiza��o Mundial de Sa�de.
As mesmas tend�ncias s�o espelhadas pelo fast food, cujo consumo cresceu 30% em todo o mundo entre 2011 e 2016, enquanto o aumento nesse per�odo foi de 21% nos Estados Unidos, segundo o Euromonitor. A rede Domino's Pizza, por exemplo, ganhou 1.281 restaurantes novos em 2016 –um "a cada sete horas", segundo seu relat�rio anual–, dos quais todos menos 171 fora dos Estados Unidos.
"Num momento em que o crescimento � mais moderado nas economias consolidadas, acho que uma posi��o forte nos mercados emergentes ser� uma posi��o vencedora", disse recentemente a investidores o executivo-chefe da Nestl�, Mark Schneider. Hoje, 42% das vendas da empresa ocorrem em mercados em desenvolvimento.
Para algumas empresas, isso pode significar focar especificamente sobre jovens, como o presidente da Coca-Cola International, Ahmet Bozer, explicou a investidores em 2014. "Metade da popula��o mundial n�o tomou uma Coca nos �ltimos 30 dias", ele disse. "H� 600 milh�es de adolescentes que n�o tomaram uma Coca na �ltima semana. A oportunidade para n�s � tremenda."
Defensores da ind�stria dizem que alimentos processados s�o essenciais para nutrir uma popula��o crescente e urbanizada, com muitas pessoas com renda em alta e que exigem conveni�ncia.
"N�o vamos nos livrar de todas as f�bricas e voltar a cultivar todos os gr�os n�s mesmos. � bobagem. N�o vai funcionar", comentou Mike Gibney, professor em�rito de alimenta��o e sa�de no University College Dublin e consultor da Nestl�. "Se eu pedir a cem fam�lias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, preciso perguntar tamb�m: 'O que elas v�o comer? Quem as alimentar�? Quanto isso vai custar?'."
O Brasil �, sob muitos aspectos, um microcosmo de como pol�ticas governamentais e a eleva��o da renda est�o levando pessoas a viver melhor e por mais tempo, al�m de, em grande medida, terem erradicado a fome.
Hoje, por�m, o pa�s enfrenta um desafio nutricional novo e grave: nos �ltimos dez anos o �ndice de obesidade no Brasil quase dobrou, chegando a 20% da popula��o, e a porcentagem de pessoas com sobrepeso quase triplicou, chegando a 58%. A cada ano 300 mil pessoas recebem o diagn�stico de diabetes tipo 2, uma condi��o fortemente vinculada � obesidade.
O Brasil tamb�m exemplifica a for�a pol�tica da ind�stria de alimentos. Em 2010, uma coaliz�o de empresas brasileiras de alimentos e bebidas torpedeou uma s�rie de medidas que visavam limitar os an�ncios de junk food voltados �s crian�as. O desafio mais recente veio do presidente Michel Temer, centrista favor�vel �s grandes empresas e cujos aliados conservadores no Congresso est�o tentando limitar e reduzir o punhado de leis e regulamentos que visam incentivar a alimenta��o saud�vel.
"O que temos � uma guerra entre dois sistemas de alimenta��o: uma dieta tradicional de comida de verdade, produzida no passado por agricultores perto de n�s, e os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso e que, em alguns casos, geram depend�ncia", disse o professor de nutri��o e sa�de p�blica Carlos A. Monteiro, da USP.
"� uma guerra, mas um sistema de alimenta��o tem desproporcionalmente mais poder que o outro."
ENTREGA DE PORTA EM PORTA
Celene da Silva chega a consumidores nas favelas de Fortaleza, muitos dos quais n�o t�m acesso f�cil a um supermercado. Ela promove os produtos que vende, propagandeando as caracter�sticas nutricionais que constam dos r�tulos e que citam vitaminas e minerais acrescentados aos itens.
"Todo o mundo aqui sabe que os produtos da Nestl� fazem bem", ela disse, apontando para latas de Mucilon, cereal para beb�s cujo r�tulo diz que ele � "carregado de c�lcio e niacina", mas tamb�m para latas de Nescau 2.0, um achocolatado carregado de a��car.
Celene come�ou a vender produtos da Nestl� dois anos atr�s, quando sua fam�lia de cinco pessoas passava por dificuldades para sobreviver.
Seu marido ainda est� desempregado, mas a situa��o deles vem melhorando. Com os cerca de R$ 580 que ela ganha por m�s vendendo produtos da Nestl�, Celene conseguiu comprar uma geladeira nova, um televisor e um fog�o a g�s para colocar na casa da fam�lia, que tem tr�s c�modos e fica ao lado de um alagado f�tido.
O programa de vendas de porta em porta da empresa concretiza um conceito articulado pela Nestl� em seu relat�rio anual de 1976 para os acionistas, mencionando que "a integra��o com o pa�s anfitri�o � uma meta b�sica de nossa empresa".
Lan�ado no Brasil uma d�cada atr�s, o programa atende a 700 mil "consumidores de baixa renda por m�s", segundo seu site na internet. Apesar da crise econ�mica cont�nua no pa�s, o programa vem crescendo ao ritmo de 10% ao ano, segundo Felipe Barbosa, um supervisor da companhia.
Barbosa disse que a receita minguante dos brasileiros pobres e de classe trabalhadora na realidade beneficiou as vendas diretas. Isso porque, diferentemente da maioria das redes varejistas de alimenta��o, a Nestl� d� aos fregueses o prazo de um m�s para pagar pelo que compram. Outra coisa que ajuda � que as vendedoras –o programa emprega unicamente mulheres– sabem quando seus fregueses v�o receber o Bolsa Fam�lia, um subs�dio mensal dado pelo governo �s fam�lias de baixa renda.
"A ess�ncia de nosso programa � chegar aos pobres", disse Barbosa. "O que o faz funcionar � o v�nculo pessoal entre a vendedora e o fregu�s."
Cada vez mais, tamb�m, a Nestl� se retrata como l�der em mat�ria de compromisso com a comunidade e a sa�de. Duas d�cadas atr�s a empresa se qualificou como "companhia de nutri��o, sa�de e bem-estar". Ao longo dos anos ela diz que modificou a f�rmula de quase 9.000 produtos para reduzir seus teores de sal, a��car e gordura e que produziu bilh�es de por��es fortificadas com vitaminas e minerais. A empresa enfatiza a seguran�a alimentar e a redu��o do desperd�cio alimentar; ela trabalha com quase 400 mil agricultores pelo mundo afora para promover a agricultura sustent�vel.
Em entrevista concedida no novo campus de US$50 milh�es da Nestl� em um sub�rbio de Cleveland, Sean Westcott, diretor de pesquisas e desenvolvimento de alimentos, disse que o programa de vendas de porta em porta reflete outro dos slogans da empresa: "Criando valores compartilhados".
"Geramos valor compartilhado, criando microempreendedores –pessoas capazes de construir seus pr�prios neg�cios", ele explicou. Segundo Westcott, uma empresa como a Nestl� pode aumentar o bem-estar de comunidades inteiras, "transmitindo mensagens positivas sobre nutri��o".
O portf�lio de alimentos da Nestl� � vasto e diferente daquele de alguns fabricantes de lanches, que fazem pouco esfor�o para focar sua aten��o sobre produtos saud�veis. Ele inclui o Nesfit, um cereal de gr�os integrais; iogurtes com baixo teor de gordura, como o Molico, que cont�m uma quantidade relativamente modesta de a��car (seis gramas), e uma linha de cereais para beb� servidos com leite ou �gua e que s�o fortificados com vitaminas, ferro e probi�ticos.
Mike Gibney, o nutricionista e consultor da Nestl�, disse que a empresa merece cr�dito por ter reformulado produtos mais saud�veis.
Mas, dos 800 produtos que a Nestl� afirma que podem ser comprados atrav�s de suas vendedoras, Celene diz que suas fregueses se interessam geralmente por apenas cerca de duas d�zias, virtualmente todos produtos a�ucarados como chocolates Kit Kat; Nestl� Grego Frutas Vermelhas –um copo de iogurte de 100 gramas que cont�m 17 gramas de a��car– e Chandelle Pa�oca –um pudim com sabor de amendoim em um copinho do mesmo tamanho que o do iogurte e que cont�m 20 gramas de a��car, quase o limite di�rio m�ximo recomendado pela Organiza��o Mundial de Sa�de.
At� recentemente, a Nestl� patrocinava um barco fluvial que entregava dezenas de milhares de caixas de leite em p�, iogurte, flan de chocolate, bolachas e doces a comunidades isoladas na bacia amaz�nica. Desde julho, quando o barco foi desativado, propriet�rios particulares de barcos passaram a suprir a demanda.
Barry Popkin, professor de nutri��o na Universidade da Carolina do Norte, comentou: "Por um lado, a Nestl� � l�der mundial em f�rmula infantil sol�vel em �gua e em muitos produtos l�cteos. Por outro lado, ela vai at� o interior profundo do Brasil vender seus doces � popula��o."
Popkin acha o marketing de porta em porta emblem�tico de uma nova era insidiosa em que as empresas procuram chegar a todas as portas, em um esfor�o para crescer e tornar-se fundamentais para comunidades no mundo em desenvolvimento. "Elas n�o est�o deixando um cent�metro de terreno descoberto", ele comentou.
Defensores da sa�de p�blica j� criticaram a Nestl� no passado. Na d�cada de 1970 a multinacional foi alvo de um boicote nos Estados Unidos por fazer marketing agressivo de f�rmula infantil em pa�ses em desenvolvimento, algo que, segundo nutricionistas, prejudicava o aleitamento materno, a op��o mais saud�vel.
Em 1978 o presidente da Nestl� Brasil, Oswaldo Ballarin, foi convocado para depor em audi�ncias altamente divulgadas no Senado dos EUA sobre a quest�o da f�rmula infantil e declarou que as cr�ticas eram obra de atividades da igreja que visavam "prejudicar o sistema de livre empreendimento".
Nas ruas de Fortaleza, onde a Nestl� � admirada por seu pedigree su��o e a alta qualidade que se considera que seus produtos possuem, raramente se ouvem opini�es negativas sobre a empresa.
A casa de Joana d'Arc de Vasconcellos, 53, outra vendedora da Nestl�, � cheia de bichinhos de pel�cia da empresa e certificados emoldurados que ela recebeu em aulas de nutri��o patrocinadas pela companhia.
O lugar de destaque na sala de sua casa � ocupado por fotos emolduradas de seus filhos aos 2 anos, cada um deles posando diante de uma pir�mide de latas vazias de f�rmula infantil da Nestl�. Quando eles cresceram, ela trocou a f�rmula por outros produtos Nestl� para crian�as: Niko Kinder, um leite em p� para crian�as pequenas; Chocapic, um cereal com sabor de chocolate, e o achocolatado Nescau.
"Quando meu filho era nen�, ele n�o gostava de comer –at� que comecei a lhe dar alimentos da Nestl�", ela conta com orgulho.
Joana tem diabetes e hipertens�o. Sua filha de 17 anos pesa mais de 117 quilos, tem hipertens�o e s�ndrome de ov�rio polic�stico, uma desordem hormonal fortemente ligada � obesidade. Muitos outros parentes dela t�m um ou mais problemas de sa�de frequentemente ligados a dietas pobres: sua m�e e duas irm�s (diabetes e hipertens�o) e seu marido (hipertens�o). O pai de Joana morreu tr�s anos atr�s depois de perder os p�s devido � gangrena, uma complica��o da diabetes.
"Cada vez que vou ao centro de sa�de, a fila para quem tem diabetes est� saindo pela porta", ela contou. "� dif�cil encontrar algu�m aqui que n�o tenha um diab�tico na fam�lia."
Joana tentou anteriormente vender Tupperware e produtos da Avon de porta em porta, mas muitas de suas freguesas n�o pagavam pelo que compravam. Seis anos atr�s, depois que uma amiga lhe falou do programa de vendas diretas da Nestl�, Joana agarrou a oportunidade.
Ela diz que os fregueses nunca deixaram de lhe pagar.
"As pessoas precisam comer", explicou.
A IND�STRIA SE IMP�E
Em maio de 2000, Denise Coutinho, ent�o diretora de nutri��o do Minist�rio da Sa�de, estava numa festa de Dia das M�es na escola de seus filhos quando seu celular tocou. Era o chefe de rela��es governamentais da Nestl�. "Ele estava chatead�ssimo", ela se recorda.
O motivo de preocupa��o da Nestl� era uma nova pol�tica que o Brasil havia adotado e estava tentando levar � Organiza��o Mundial de Sa�de. A recomenda��o, se a medida tivesse sido adotada, teria sido que crian�as em todo o mundo devem ser amamentadas por seis meses, em lugar da recomenda��o anterior de entre quatro e seis meses.
"Dois meses a mais pode n�o parecer grande coisa, mas � muito dinheiro envolvido. S�o muitas vendas", disse Coutinho, que deixou seu cargo em 2004 e hoje � consultora independente de nutri��o junto � ONU, entre outros organismos.
Ela disse que, no final, as companhias de f�rmula infantil conseguiram paralisar a nova pol�tica por um ano. Perguntada sobre o que Coutinho relatou, a Nestl� disse que "acredita que o leite materno � a nutri��o ideal para os beb�s" e que apoia e promove as diretrizes da OMS.
Seria dif�cil exagerar o poder econ�mico e o acesso pol�tico de que desfrutam os conglomerados de alimentos e bebidas no Brasil, que empregam 1,6 milh�o de pessoas e s�o respons�veis por 10% do produto econ�mico nacional.
Em 2014, empresas de alimentos doaram US$158 milh�es a parlamentares brasileiros, um valor tr�s vezes superior ao doado em 2010, segundo a Transpar�ncia Internacional Brasil. Um estudo divulgado pela organiza��o no ano passado concluiu que mais de metade dos atuais deputados federais brasileiros foram eleitos com doa��es da ind�stria de alimentos –antes de o Supremo Tribunal proibir as contribui��es corporativas, em 2015.
O maior doador isolado aos candidatos congressionais foi o grande frigor�fico brasileiro JBS, que deu US$112 milh�es a candidatos em 2014. A Coca-Cola doou US$6,5 milh�es em contribui��es de campanha naquele ano, e o McDonald's, US$561 mil.
Assim, estava preparado o palco para uma batalha pol�tica monumental quando, em 2006, o governo quis promulgar regulamentos � ind�stria aliment�cia visando reduzir a obesidade e doen�as. As medidas, que surgiram em decorr�ncia da pol�tica anterior em rela��o ao aleitamento, inclu�am alertas publicit�rios para avisar aos consumidores sobre alimentos com altos teores de a��car, sal e gorduras saturadas, al�m de restri��es de marketing visando reduzir a atratividade de alimentos altamente processados e bebidas a�ucaradas, especialmente as voltadas �s crian�as.
Seguindo o exemplo dos esfor�os bem-sucedidos do governo para limitar a propaganda de cigarros, as novas regras teriam impedido marcas como Pepsi e KFC de patrocinar eventos esportivos e culturais.
"Achamos que o Brasil poderia ser um exemplo para o resto do mundo, um pa�s que p�e o bem-estar de seus cidad�os acima de tudo", falou Dirceu Raposo de Mello, ent�o diretor da Anvisa. "Infelizmente, a ind�stria aliment�cia n�o tinha a mesma posi��o."
As empresas de alimentos assumiram perfil discreto, unindo-se por tr�s da Associa��o Brasileira das Ind�strias da Alimenta��o (Abia), um grupo de lobby cujo conselho de vice-presidentes inclu�a executivos da Nestl�, da Cargill, gigante americana de carnes processadas, e da Unilever, o conglomerado aliment�cio europeu respons�vel por marcas como Hellmann's, �leo Mazola e Ben & Jerry's. A Abia se negou a dar declara��es para este artigo.
Nos primeiros dias das audi�ncias p�blicas, a ind�stria parecia estar negociando as normas de boa f�, mas ativistas de sa�de dizem que, nos bastidores, advogados e lobistas das empresas travavam uma campanha em v�rias frentes para fazer o processo todo descarrilar.
Acad�micos financiados pela ind�stria come�aram a aparecer na televis�o para atacar os regulamentos propostos, tachando-os de economicamente destrutivos. Outros especialistas escreveram editoriais em jornais sugerindo que a pr�tica de exerc�cios f�sicos e a aten��o maior dos pais poderiam ser mais eficazes que regulamentos no combate � obesidade infantil.
Analistas dizem que a palavra de ordem mais poderosa da ind�stria foi sua den�ncia das restri��es propostas � publicidade de produtos aliment�cios, que ela qualificou de censura. A acusa��o ganhou resson�ncia especial em vista das quase duas d�cadas de ditadura militar que haviam terminado em 1985.
Segundo Vanessa Schottz, uma ativista nutricional, em uma reuni�o, um representante da ind�stria de alimentos acusou a Anvisa de tentar subverter a autoridade parental, dizendo que as m�es t�m o direito de decidir o que d�o de comer a seus filhos. Em outra reuni�o, ela recordou, um representante da ind�stria de brinquedos se levantou e atacou as regras de marketing propostas, dizendo que elas privariam as crian�as brasileiras dos brinquedos que �s vezes acompanham as refei��es de fast food. "Falou que est�vamos matando o sonho das crian�as", Scottz recordou. "Ficamos estarrecidos."
No final de 2010, acuada pelas cr�ticas da ind�stria, a Anvisa revogou a maioria das restri��es propostas. O que restou foi uma �nica proposta exigindo que os comerciais inclu�ssem um aviso sobre alimentos e bebidas pouco saud�veis.
Ent�o come�aram os processos judiciais.
Ao longo de v�rios meses, um grupo d�spar de entidades representativas da ind�stria moveu 11 processos judiciais contra a Anvisa. Entre os querelantes estavam a associa��o nacional de produtores de biscoitos, o lobby dos produtores de milho e uma alian�a de companhias de chocolate, chocolate em p� e doces. Algumas das a��es alegavam que os regulamentos violavam a prote��o constitucional da liberdade de express�o; outros diziam que a Anvisa n�o tinha o direito de regular as ind�strias aliment�cia e publicit�ria.
Embora defensores da sa�de p�blica digam que as a��es judiciais n�o foram inteiramente inesperadas, eles foram pegos de surpresa pela rea��o do advogado-geral da Uni�o, Lu�s In�cio Adams, nomeado para o cargo pelo presidente.
Pouco depois de as regras propostas terem sido publicadas oficialmente, em junho de 2010, Adams tomou o partido da ind�stria. Algumas semanas mais tarde um tribunal federal suspendeu os regulamentos, citando o parecer escrito de Adams, que sugeriu que a Anvisa n�o tinha a autoridade para regular as ind�strias aliment�cia e publicit�ria. Adams se negou a dar declara��es para este artigo.
Dirceu Raposo de Mello, o ex-presidente da Anvisa, diz que ficou at�nito com a mudan�a de postura de Adams, em vista do apoio de longa data da Advocacia Geral da Uni�o � Anvisa. Sete anos mais tarde, com a maioria dos 11 processos ainda em aberto, os regulamentos permanecem congelados.
"A ind�stria deu a volta no sistema", disse Raposo de Mello.
Enquanto isso, a ind�stria de alimentos e bebidas ficava mais agressiva em seu esfor�o para neutralizar a Anvisa, que via como sua maior advers�ria.
Em 2010, no meio da batalha contra os regulamentos propostos pela ag�ncia, um grupo de 156 executivos da ind�stria levou suas queixas � campanha de Dilma Rousseff, que concorria � Presid�ncia.
Marcello Fragano Baird, cientista pol�tico em S�o Paulo que estudou a campanha do lobby aliment�cio contra os regulamentos nutricionais, disse que Dilma prometeu aos executivos que interviria junto � Anvisa. "Ela prometeu que depois de eleita 'faria uma faxina na casa'", ele disse, acrescentando que soube do encontro por meio de entrevistas com participantes.
Dilma venceu a elei��o e, pouco depois de tomar posse, substituiu Raposo de Mello por Jaime C�sar de Moura Oliveira, aliado pol�tico de longa data e ex-advogado da subsidi�ria brasileira da Unilever.
Um porta-voz de Dilma se negou a disponibiliz�-la para uma entrevista.
Em 2012 a Anvisa abrigou uma exposi��o itinerante de combate � obesidade em sua sede. Intitulada "Emagrece, Brasil", a exposi��o prop�s o exerc�cio f�sico e a modera��o como as chaves para o combate � obesidade, mas ignorou em grande medida as evid�ncias cient�ficas dominantes sobre o perigo do consumo excessivo de a��car, refrigerantes e alimentos processados.
O patrocinador da exposi��o? A Coca-Cola.
ALIMENTOS IRRESIST�VEIS, DIETAS GORDUROSAS
Mais de 1.600 quil�metros ao sul de Fortaleza, os efeitos das mudan�as nos h�bitos alimentares s�o evidentes numa colorida sala de aula de uma creche de S�o Paulo, a maior cidade brasileira. Mais de cem crian�as lotam as salas todos os dias, cantando o alfabeto, brincando e tirando sonecas em grupo.
Quando foi criada, no in�cio dos anos 1990, a miss�o da creche dirigida por uma ONG brasileira era simples: aliviar a subnutri��o de crian�as dos bairros mais pobres da cidade, que n�o recebiam comida suficiente.
Hoje em dia muitas das crian�as que frequentam a creche s�o gordinhas, e as nutricionistas da institui��o observam que algumas s�o preocupantemente baixas para sua idade, em consequ�ncia de dietas com alto teor de sal, gordura e a��car, mas carentes dos nutrientes necess�rios para o desenvolvimento saud�vel.
Administrado pelo Centro de Recupera��o e Educa��o Nutricional, o programa inclui crian�as pr�-diab�ticas de 10 anos de idade com esteatose hep�tica perigosa, adolescentes com hipertens�o e crian�as pequenas t�o malnutridas que t�m dificuldade em andar.
"Estamos recebendo at� mesmo beb�s, algo que nunca antes vimos", falou Giuliano Giovanetti, que cuida das comunica��es da entidade. "� uma crise para nossa sociedade. Estamos criando uma gera��o de crian�as com defici�ncias cognitivas e que n�o v�o alcan�ar seu potencial pleno."
Quase 9% das crian�as brasileiras eram obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, segundo estudo recente do Instituto de M�tricas e Avalia��o da Universidade de Washington. Isso coloca o pa�s a pouca dist�ncia dos Estados Unidos, onde 12,7% das crian�as eram obesas em 2015.
Os n�meros s�o ainda mais alarmantes nas comunidades atendidas pelo centro: em alguns bairros, 30% das crian�as s�o obesas e outras 30% malnutridas, segundo dados da pr�pria organiza��o, que constatou que 6% das crian�as obesas tamb�m est�o malnutridas.
Os �ndices crescentes de obesidade est�o ligados principalmente a melhoras econ�micas, na medida em que as fam�lias com renda aumentada aderem � conveni�ncia, ao status e aos sabores oferecidos pelos alimentos processados.
Pais e m�es ocupados alimentam seus filhos pequenos com macarr�o instant�neo e nuggets de frango congelados, frequentemente acompanhados de refrigerante. Estudos revelam que o arroz, feij�o, salada e carnes
grelhadas, a base da dieta brasileira tradicional, est�o sendo abandonados.
O problema � agravado pela viol�ncia galopante nas ruas, que mant�m as crian�as pequenas presas dentro de casa.
"� perigoso demais deixar meus filhos brincarem na rua. Por isso eles passam todo o tempo livre sentados no sof�, jogando videogames e assistindo � TV", falou Elaine Pereira dos Santos, 35, m�e de dois filhos de 9 e 4 anos, ambos acima do peso.
Isaac, 9, pesa 62 quilos e s� pode usar roupas de adolescentes. Elaine, que trabalha na farm�cia de um hospital, encurta as cal�as para ele.
Como muitas m�es brasileiras, ela ficou contente quando Isaac come�ou a ganhar peso, quando era pequeno, pouco depois de ter provado sua primeira batata frita do McDonald's. "Sempre achei que beb� gordinho � melhor", ela disse. Elaine ficava feliz em satisfazer os h�bitos alimentares de Isaac, incluindo sa�das frequentes para restaurantes de fast food e quase nenhuma fruta ou verdura.
Mas, quando Isaac come�ou a ter dificuldade em correr e a queixar-se de dores nos joelhos, Elaine percebeu que algo estava errado. "O mais dif�cil � a goza��o das outras crian�as", ela disse. "Quando sa�mos para fazer compras, at� os adultos apontam e olham para ele" ou o chamam de gordinho.
Na creche em S�o Paulo, enfermeiras acompanham o desenvolvimento f�sico e cognitivo das crian�as, enquanto nutricionistas ensinam os pais a preparar refei��es saud�veis e de baixo custo. Para algumas crian�as, a cozinha experimental do centro oferece sua primeira introdu��o a repolhos, ameixas e mangas.
Um dos desafios fundamentais � convencer os pais de que seus filhos est�o doentes. "Diferentemente do c�ncer ou outras doen�as, essa � uma defici�ncia que n�o � vis�vel", explicou Juliana Dellare Calia, 42, nutricionista da organiza��o.
Embora membros da equipe digam que o programa conquistou avan�os significativos em termos de mudar o modo como as fam�lias se alimentam, muitas crian�as ter�o que lutar contra a obesidade pela vida inteira. Isso acontece porque, segundo sugere um conjunto crescente de pesquisas, a m� nutri��o infantil pode provocar modifica��es metab�licas permanentes, reprogramando o corpo para que ele converta calorias excedentes em gordura corporal mais facilmente.
"� a resposta do corpo ao que ele entende como fome", disse Dellare Calia.
O DINHEIRO FALA MAIS ALTO
Ao mesmo tempo em que especialistas em nutri��o lamentam a crise crescente de obesidade –e os potenciais custos m�dicos de longo prazo–, um aspecto da revolu��o dos alimentos processados no Brasil � ineg�vel: a expans�o da ind�stria produz benef�cios econ�micos para pessoas de v�rios n�veis sociais.
A Nestl�, que afirma empregar 21 mil pessoas no Brasil, lan�ou h� dois anos um programa de aprendizado que j� ofereceu treinamento profissional a 7.000 pessoas com menos de 30 anos.
Perto da base da "cadeia alimentar" est� Celene da Silva, a vendedora de Fortaleza, que v� o futuro com otimismo, n�o obstante seus problemas crescentes de sa�de. Sua vida tem sido uma luta desde que ela abandonou a escola, aos 14 anos, quando engravidou de seu primeiro filho. Hoje ela fala em arrumar os dentes que faltam e prejudicam seu sorriso hesitante e em comprar uma casa decente, que n�o tenha goteiras quando chove forte.
Ela agradece � Nestl�.
"Pela primeira vez na minha vida sinto esperan�a e tenho independ�ncia", ela disse.
Celene tem consci�ncia da liga��o entre sua dieta e seus problemas persistentes de sa�de, mas insiste que seus filhos est�o bem nutridos, apontando para os produtos da Nestl� em sua sala. Ser vendedora da Nestl� tem outra vantagem: os biscoitos, chocolates e pudins que frequentemente alimentam sua fam�lia s�o comprados ao atacado.
Com uma lista crescente de fregueses, Celene agora visa um novo objetivo, um que, afirma, vai aumentar seu neg�cio ainda mais.
"Quero comprar uma geladeira maior."
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US$158 milh�es foi a quantia doada em 2014 por empresas aliment�cias a membros do Congresso brasileiro, valor tr�s vezes superior a 2010
1,6 milh�o de pessoas s�o empregadas por conglomerados de alimentos e bebidas no Brasil
270% foi o aumento, de 1980 a 2015, do n�mero de crian�as brasileiras obesas
300 mil brasileiros por ano recebem o diagn�stico de diabetes tipo dois, condi��o fortemente vinculada � obesidade. O �ndice de obesidade no pa�s quase dobrou, chegando a 20%, e a parcela de pessoas com sobrepeso quase triplicou, alcan�ando 58%.
Tradu��o de CLARA ALLAIN
Livraria da Folha
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