Sociedade

Por Beatriz Herminio, com edição de Luiza Monteiro

No imaginário popular, guerra é um assunto de homens. São eles quem deflagram conflitos, são recrutados para batalhas, entram em campo e sofrem as consequências do combate. Até na infância, brincar de guerra é “coisa de menino.” Mas isso está longe de ser verdade.

Basta olhar para os dois maiores conflitos da atualidade. Na Ucrânia, 43 mil mulheres servem ao exército do país, que desde fevereiro de 2022 vivencia a invasão promovida pela Rússia de Vladimir Putin. Conforme divulgado pelo Ministério da Defesa ucraniano em novembro de 2023, esse número é 40% maior em relação a 2021.

No Oriente Médio, quando o grupo fundamentalista Hamas atacou o território de Israel, no dia 7 de outubro de 2023, dois tanques do batalhão israelense de Caracal entraram em um combate de mais de 10 horas. Ambos estavam ocupados apenas por mulheres.

Soldadas israelenses do 33º Batalhão Caracal, composto apenas por mulheres — Foto: Getty Images
Soldadas israelenses do 33º Batalhão Caracal, composto apenas por mulheres — Foto: Getty Images

Mas há também o outro lado. Até o último dia 18 de janeiro, 70% dos mais de 24.620 palestinos mortos na Faixa de Gaza correspondiam a mulheres ou crianças, de acordo com o relatório The gendered impact of the crisis in Gaza (“O impacto de gênero da crise em Gaza”, em livre tradução), da ONU Mulheres.

“Duas semanas depois que a guerra começou, na minha data de parto, fui para o hospital sabendo que estava arriscando minha vida e a do meu tão esperado bebê... Meu médico decidiu usar uma clínica particular que não estava totalmente equipada, pois era a única solução disponível naquele momento. Arrisquei minha vida e espero não ter trazido meu bebê a este mundo apenas para que ele seja morto sem motivo!”, diz uma mulher de 30 anos, moradora da cidade de Mughraqa, segundo o documento da ONU.

As mulheres palestinas, aliás, têm um histórico relevante de presença nas lutas populares e nas intifadas — levantes contra a ocupação de Israel; a última teve fim em 2005. Leila Khaled, por exemplo, tornou-se conhecida na mídia como um símbolo de resistência. Em 1969, ela foi a primeira mulher a sequestrar um avião.

Nascida na Palestina, refugiou-se no Líbano com sua família aos 4 anos de idade. “As mulheres dão vida. Portanto, elas sentem o perigo ainda mais do que os homens”, disse Khaled em entrevista ao Palestine Chronicle em 2014. “Quando estão envolvidas, elas são mais fiéis à revolução porque defendem a vida de seus filhos também.”

Guerreiras na história

Não é de hoje que a presença feminina se destaca na linha de frente. Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mulheres soviéticas atuaram no enfrentamento à Alemanha de Adolf Hitler. Como em todas as guerras, parte delas se ocupava de atividades como enfermeiras ou lavadeiras, mas também houve exemplos de franco-atiradoras — caso de Lyudmila Pavlichenko, creditada pela morte de 309 soldados nazistas —, aviadoras, militares da Marinha, entre outros cargos importantes.

A ucraniana Lyudmila Pavlichenko atuou como franco-atiradora da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. A ela são creditadas as mortes de 309 soldados nazistas — Foto: Getty Images
A ucraniana Lyudmila Pavlichenko atuou como franco-atiradora da União Soviética na Segunda Guerra Mundial. A ela são creditadas as mortes de 309 soldados nazistas — Foto: Getty Images

Estima-se que 1 milhão de mulheres tenham servido no exército da União Soviética (URSS). Essa participação, contudo, não pressupõe uma igualdade de gênero no fronte. Como relatado no livro A guerra não tem rosto de mulher (1985), de Svetlana Alexijevich, as mulheres soviéticas não tinham acesso a itens de higiene como absorventes ou a fardas e coturnos adequados aos seus tamanhos.

Apesar desses exemplos, historicamente, a maioria das guerras não aconteceu em grandes campos de batalha. “Na Idade Média, as pessoas só entravam em campo se achassem que poderiam vencer. Muitas dessas batalhas eram em cercos, e esse é realmente o lugar onde as mulheres lutaram de forma mais consistente”, explica a historiadora estadunidense Pamela Toler, autora do livro Women Warriors: An Unexpected History (sem edição no Brasil), lançado em 2019.

Nos cercos medievais, as atividades exercidas pelas mulheres se encaixavam no estereótipo atribuído ao papel delas nesses ambientes: levar comida aos soldados, cuidar dos feridos e ajudar a reparar muros, por exemplo. Mas há registros de mulheres que atiravam objetos para atacar o inimigo, prática que foi considerada uma técnica real de batalha. “Ocasionalmente, elas também pegavam em armas e ficavam ao lado dos homens nos parapeitos”, conta Toler, em entrevista a GALILEU.

Um exemplo icônico de mulher que se destacou em um conflito é o de Joana D’Arc (1412-1431), que integrou as forças armadas da França durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453). Mas a maioria das guerreiras femininas da história não se assemelhava a ela. "Comecei pensando que escreveria sobre pessoas que se pareciam mais com Joana D'Arc e menos com sua vizinha do lado em um cerco", relata a historiadora dos EUA a respeito do processo de pesquisa e escrita do seu livro.

A obra conta como as mulheres sempre lutaram em guerras — dos Vikings à Segunda Guerra Mundial, passando por rainhas africanas. “Há algumas histórias muito antigas sobre mulheres que se vestiram como homens no campo de batalha. São antigas o suficiente para que não saibamos se elas faziam isso como a única maneira de chegar lá ou porque era prático”, alega a autora.

Houve um tempo, porém, em que isso realmente foi necessário, sobretudo entre o final do século 18 e início do 19. Um dos exemplos mais recentes de que se tem registro é o da sérvia Milunka Savic, que lutou nas Guerras dos Bálcãs (1912-1913) e na Primeira Guerra (1914-1918). “O fato é que ser homem lhe dava mais opções. Era mais fácil viajar, você recebia melhores salários em lugares que tinham sufrágio universal, podia votar e obter educação”, comenta a escritora.

Na América Latina não era tão diferente. No Brasil, a baiana Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) foi a primeira mulher a se alistar nas forças armadas. Ela lutou nas Guerras de Independência entre 1822 e 1823 por meio da campanha da Bahia. Para se alistar, cortou os cabelos e usou fardas masculinas emprestadas do cunhado. Em agosto de 1823, foi recebida por Dom Pedro I e condecorada como cavaleiro com a Imperial Ordem do Cruzeiro.

Mas não foi apenas se infiltrando entre os homens que as mulheres conquistaram seus espaços em conflitos armados. Muitas delas não somente lideraram exércitos como também formaram frontes abertamente femininos. Na Primeira Guerra Mundial, Maria Bochkareva comandou o Primeiro Batalhão da Morte russo inteiramente feminino. O exército de 300 mulheres enfrentou os alemães na cidade de Smarhon com autorização do então ministro de guerra russo, Alexander Kerensky.

Saindo da Europa, onde hoje é o Vietnã, as Irmãs Trung são consideradas heroínas do primeiro movimento de independência contra a dominação chinesa no século 1. “Elas montaram seu próprio exército; não se juntaram ao exército de outra pessoa”, conta Toler.

As duas expulsaram os chineses por três anos e se autoproclamaram rainhas de um Estado independente, até serem derrotadas pelos chineses no ano 43. “Há um ponto em que um pequeno exército, por mais valente que seja, não se sustenta se for dominado por milhares de pessoas, mas esse é certamente um caso em que as mulheres montaram o exército e o lideraram”, destaca a historiadora.

Além do fronte

Nem sempre a união de mulheres se restringe a defender o próprio país ou combater o inimigo. Na Síria, as Unidades de Defesa das Mulheres, ou YPJ, surgiram como um grupo paramilitar feminino em 2013, a fim de combater as forças do governo sírio em territórios curdos durante a guerra civil, iniciada em 2011.

Os curdos são uma população que teve seu território dividido, majoritariamente, entre quatro países (Turquia, Síria, Iraque e Irã), após a integração do Curdistão a essas regiões a partir de 1923. Desde então, eles têm reivindicado sua independência e criação de um Estado próprio.

Nesse cenário, a YPJ foi formada por mulheres que lutavam no Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e demonstra o influente papel feminino na chamada Revolução Curda. “São casos que fogem das instituições estatais, mas que mostram como as mulheres se organizam e [evidenciam] essa complexidade de que não há só vítimas e heroínas”, analisa Helena Castro, doutora em Relações Internacionais e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Integrantes do grupo paramilitar Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), que atua contra o governo da Síria em territórios do povo curdo — Foto: Getty Images
Integrantes do grupo paramilitar Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), que atua contra o governo da Síria em territórios do povo curdo — Foto: Getty Images

Outro exemplo é a participação central de mulheres indígenas no movimento zapatista no México. Sua atuação está associada ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), criado em 1983 e inspirado em Emiliano Zapata, líder da Revolução Mexicana de 1910. Com estratégia militar de guerrilha, o EZLN fez sua primeira aparição em um levante armado no estado de Chiapas, em 1994. O movimento defende uma gestão democrática do território e a garantia de direitos como trabalho, saúde, educação, democracia e cultura.

No Brasil do século 18, Tereza de Benguela comandou o maior quilombo do Mato Grosso após a morte de seu marido. À frente de decisões políticas, administrativas e econômicas do Quilombo do Quariterê, ela ficou conhecida como Rainha Tereza. Também na América Latina, outros nomes femininos tiveram destaque, como é o caso de Bartolina Sisa, que liderou indígenas contra o domínio espanhol na Bolívia; Micaela Bastidas, com seu papel estratégico na rebelião anticolonial de Tupac Amaru II, no Peru; e Manuela Sáenz, protagonista na emancipação do Equador e uma das líderes da revolução junto a Simon Bolívar.

No século 18, Tereza de Benguela comandou o Quilombo de Quariterê, o maior do Mato Grosso na época, após a morte de seu marido — Foto: Domínio público
No século 18, Tereza de Benguela comandou o Quilombo de Quariterê, o maior do Mato Grosso na época, após a morte de seu marido — Foto: Domínio público

A presença de mulheres em posições de luta, contudo, não as exclui da necessidade de resistir cotidianamente em esferas que vão além do campo de batalha. “Não significa que elas também não sejam vítimas, que elas não estejam sujeitas à violência sexual, ou que não tenham que lidar com o cotidiano do conflito — que é a sua própria sobrevivência, a de seus filhos e todo o processo que envolve o deslocamento de mulheres”, observa Castro.

Vítimas e heroínas

Se muitas mulheres tiveram que se fingir de homens para entrar no exército, hoje a realidade é bem diferente. Apesar de estarem isentas do serviço militar obrigatório, as brasileiras podem servir de forma voluntária nas Forças Armadas como militares de carreira ou temporárias, mas não podem entrar nas áreas de combatentes e armas, como infantaria, artilharia e cavalaria.

Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1943, elas puderam entrar oficialmente para o Exército brasileiro atuando, em sua maioria, como enfermeiras. Já em 1982, a Aeronáutica permitiu a entrada de mulheres em posições de combate — no Exército, isso só aconteceu dez anos depois. Atualmente, contudo, não há mulheres ocupando cargos do Alto Comando.

Em novembro de 2023, a Procuradoria Geral da República ingressou com uma iniciativa no Supremo Tribunal Federal (STF) para mudar as regras que limitam a participação feminina nas Forças Armadas. Como resposta, o Exército enviou um parecer ao STF contra a inclusão de mulheres em áreas mais combatentes, alegando "clara vantagem física dos homens", conforme noticiado pela Folha de S. Paulo em fevereiro.

Nesse sentido, Israel é um dos casos mais emblemáticos: com alistamento feminino obrigatório, 33% dos soldados das forças de defesa israelense são mulheres, das quais 51% estão atualmente servindo. E 92% das unidades têm postos abertos a representantes do sexo feminino.

Nos Estados Unidos, um a cada seis membros em serviço ativo nas forças armadas é mulher, segundo documento do Departamento de Defesa do país, com dados referentes a 2022. Na Guarda Nacional estadunidense, elas são um a cada cinco representantes. Os postos que ocupam estão ligados a engenharia e arquitetura, contabilidade, negócios, serviços administrativos e área jurídica.

Mesmo assim, ninguém está imune a situações de assédio e machismo. “A mulher pode estar liderando um grupo, pode estar na linha de frente, mas também pode ser vítima com relação ao preconceito de seus próprios parceiros ou vítima dentro do confronto em si”, destaca Helena Castro. Na Ucrânia, onde o alistamento feminino é voluntário, a tenente Sikal foi a primeira mulher a denunciar um caso de assédio sexual no exército ucraniano, em 2018. Como relatou ao jornal The New York Times, cada rejeição ao coronel resultava em humilhações, punições e ordens “sem sentido”.

"A mulher pode estar liderando um grupo, pode estar na linha de frente, mas também pode ser vítima com relação ao preconceito de seus próprios parceiros ou vítima dentro do confronto em si”
— Helena Castro, coordenadora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional da Unesp

Na África, em 2016, o antigo vice-líder da República Democrática do Congo foi condenado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra e contra a humanidade. Essa foi a primeira vez em que o estupro foi reconhecido como crime de guerra pelo TPI, criado em 2002.

Até então, a ideia de estupro enquanto arma de guerra vinha sendo debatida principalmente a partir dos conflitos étnicos na antiga Iugoslávia, na década de 1990, e do genocídio em Ruanda. O Fundo de Sobreviventes estima que cerca de 20 mil crianças podem ter sido fruto de estupros no massacre de 1994 no país africano. “A autora argentina Rita Segato fala sobre como a violência contra os corpos das mulheres busca enviar algumas mensagens. É uma violência que envia uma mensagem ao sujeito que está sendo atingido, a mulher vítima: ‘olha, eu te domino, eu te controlo’”, explica Castro.

Em sociedades patriarcais, essa violência também indica aos homens uma incapacidade de proteger as mulheres em uma guerra. “O homem precisa proteger as mulheres e se ele não consegue fazer isso, também vai ser ‘feminizado’, perder esse seu papel, e isso é uma ofensa para ele”, completa. Daí porque é preciso pensar a violência sexual como parte de uma economia política do conflito. No início da guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, mulheres que buscavam fugir do país se tornaram alvos de redes de tráfico e violência sexual preexistentes.

A pesquisadora da Unesp destaca a importância do movimento político-social de mulheres no processo de reforçar instituições internacionais dedicadas a elas. Segundo a ONU, quase 1 milhão de meninas e mulheres foram deslocadas durante o atual confronto na Faixa de Gaza, e estima-se que, a cada hora, duas mães são mortas na região palestina dominada por Israel. “Para as mulheres curdas, por exemplo, se não houver uma igualdade de gênero, se não tiver o combate à violência contra as mulheres, não tem como lutar pela democracia”, diz Castro.

Mulheres e meninas palestinas observam área atingida por ataque de Israel em Rafah, na Faixa de Gaza, em fevereiro — Foto: Getty Images
Mulheres e meninas palestinas observam área atingida por ataque de Israel em Rafah, na Faixa de Gaza, em fevereiro — Foto: Getty Images

A importância da presença de mulheres em negociações na agenda de paz da ONU não está relacionada a levar figuras pacíficas para a política, mas sim permitir que experiências femininas sejam debatidas. Até porque, seja como vítimas, seja como combatentes, guerra é (e sempre foi) assunto de mulher.

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