História

Por Marilia Marasciulo

Thomas Geve tinha 13 anos quando chegou a Auschwitz-Birkenau em junho de 1943. Depois de quase cinco anos migrando, fugindo e se escondendo da ascensão do nazismo na Alemanha, Geve e sua mãe foram forçados a se entregar e transportados em um dos últimos trens que saíram de Berlim levando judeus para os campos de concentração.

Na época, ninguém sabia ao certo o que acontecia por lá — e os boatos eram tão aterrorizantes que, mesmo quem soubesse, tinha dificuldades para acreditar. Mas Geve esteve lá; e sobreviveu não só para escrever seu relato, mas também para desenhar o que testemunhou. O resultado é uma coleção de ao menos 80 ilustrações que carregou consigo após a libertação, transformadas no livro O Menino que Desenhou Auschwitz, recém-traduzido e publicado no Brasil em abril pela Alta Life Editora.

“Depois da libertação, eu continuei no campo por outros dois meses. Eu desenhei e colori 85 desenhos para o meu pai, para que ele soubesse exatamente o que aconteceu”, conta Geve, hoje com 93 anos, em entrevista à GALILEU. “Comecei a transformar os desenhos em palavras para escrever livros, porque tinha certeza de que o mundo deveria saber o que aconteceu com os jovens que cresceram nos campos. Também senti que poderia detalhar como as pessoas sobreviveram nos campos ao ajudarem umas às outras e desejando um futuro melhor.”

Fotografia pessoal de Thomas Geve aos 16 anos, já liberto, na Suiça — Foto: Acervo Pessoal/Reprodução
Fotografia pessoal de Thomas Geve aos 16 anos, já liberto, na Suiça — Foto: Acervo Pessoal/Reprodução

Para Geve e sua família, a Segunda Guerra Mundial começou em 1933, quando Hitler assumiu o poder. Nascido em Stettin, região do rio Oder que atualmente pertence à Polônia, Geve tinha três anos quando precisou se mudar com a família para Beuthen, terra natal de seu pai. Médico e cirurgião, ele havia perdido a licença devido às leis discriminatórias que começavam a vigorar na nova Alemanha de Hitler.

Certa manhã, em 1938, o garoto acordou com o barulho de vidros quebrados, passos urgentes e vozes agitadas. Ao espiar pela janela, viu que um grupo de guardas nazistas enchiam um carro estacionado em frente à sapataria com “todos os tipos de tesouros”. “Obviamente, era um roubo”, escreve Geve. Ao longo do dia, mais notícias chegaram: a sinagoga da cidade estava em chamas; pilhas de livros eram lançadas a fogueiras nas ruas; lojas de judeus estavam sendo saqueadas; e centenas de judeus estavam sendo presos. Era o dia 9 de novembro, hoje conhecido como a Noite dos Cristais, programa realizado contra os judeus por paramilitares da SA e civis de toda a Alemanha nazista.

Quem conseguiu escapar da Alemanha, assim o fez. Entre eles o pai de Geve, que planejava levar a família para a Inglaterra assim que se estabelecesse por lá. Isso só aconteceria seis anos depois e, infelizmente, sem a matriarca, que faleceu em Auschwitz.

Adolescência aprisionada

Com o pai na Inglaterra, Geve e sua mãe se mudaram para Berlim, para o apartamento dos avós. Os anos que seguiram foram um misto de tentativa de conciliar as necessidades da infância (estudar, brincar, socializar) com uma guerra que cada vez mais ameaçava sua liberdade e vida. Ele trabalhou em um cemitério, mudou-se para apartamentos e cômodos cada vez menores, viu amigos e conhecidos serem presos, e racionou alimento. Em junho de 1943, a situação se tornou insustentável e, apegados à ideia de que os campos de trabalho do Leste talvez não fossem tão ruins, Geve e sua mãe decidiram se entregar.

Em um dos desenhos, Geve ilustrou a entrada no campo de concentração de Auschwitz, em Birkenau — Foto:  Thomas Geve/Acervo Pessoal
Em um dos desenhos, Geve ilustrou a entrada no campo de concentração de Auschwitz, em Birkenau — Foto: Thomas Geve/Acervo Pessoal

Nem em seus piores pesadelos poderiam ter imaginado o que viria a seguir. Dos 346 judeus que chegaram ao campo juntos com Geve, 136 foram mortos logo na chegada. Ele e sua mãe foram separados, e só tiveram breve contato novamente meses depois em bilhetes clandestinos e um breve encontro.

Pelos 22 meses seguintes, Geve enfrentou fome, frio e trabalho árduo na escola de pedreiros de Auschwitz. Mas, surpreendentemente, fez amigos — como “Kurt Pequeno”, “Kurt Alto” e “Gert Atrevido”, que estão entre as pessoas a quem dedica o livro. “As pessoas me perguntam se estou feliz com a nova edição do livro. Não há nada de feliz sobre o passado. Mas é bom que os 40 prisioneiros que me ajudaram a sobreviver voltam à vida nos meus livros que estão em todos os cantos do mundo”, afirma.

Geve tinha 15 anos quando finalmente começou a conhecer a liberdade. Em 8 de maio de 1945, a Alemanha assinou o documento de rendição, formalizando a vitória dos Aliados. Na data, Geve estava em Buchenwald, um dos maiores campos de concentração do nazismo, localizado na região centro-leste da Alemanha. Meses antes, diante da aproximação dos Aliados a Auschwitz (que foi libertado em 27 de janeiro), Geve foi um dos prisioneiros transferidos para o campo Gross-Rosen em uma das Marchas da Morte. De lá, foi deslocado para Buchenwald, onde passou pelo menos outros três meses preso, até a libertação do campo em 11 de abril.

E é essa história de amizade, generosidade e cooperação que o autor faz questão de destacar. “Muitas pessoas escreveram sobre as atrocidades cometidas, sobre como as pessoas foram assassinadas, ou onde, ou quem foi assassinado”, explica. “Tudo isso está fora do meu livro, porque queria que as pessoas soubessem como nós vivemos. Meu livro é sobre como as pessoas sobreviveram, não sobre como elas morreram.”

Embora livre, o rapaz não tinha para onde ir — muito menos forças para seguir tal jornada. Foi então que começou a desenhar, copiando documentos nazistas e fazendo listas. “Durante os dias e as semanas seguintes, só desenhava. Comecei fazendo os contornos de cada imagem com meu lápis e, posteriormente, acrescentei a aquarela que recebera de um dos soldados norte-americanos que se interessou por meu trabalho”, escreve no livro. “Acrescentei escritos, mapas e listas. Cenas dos dias idos ganharam vida novamente — a chegada, a seleção, as punições, a comida, as doenças, as fileiras intermináveis de cercas, o trabalho, as chamadas, o inverno, as revoltas, as forcas, a evacuação, os Katyushas [foguetes usados pelo Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial] e muito mais. A experiências de 22 meses de minha vida em três campos de concentração estava apenas aguardando até explodirem para fora do meu cérebro incansável.”

Dois meses depois, junto com outros 400 adolescentes sobreviventes dos campos, aceitou o convite do governo suíço para passar seis meses no país se recuperando. E foi lá que, com a ajuda da Cruz Vermelha, localizou seu pai. Em 17 de novembro de 1945, voou para a Inglaterra onde recomeçaria a vida junto do patriarca.

Viver para contar

Hoje, Thomas Geve tem 93 anos e participa de eventos para contar sua experiência e lutar contra intolerâncias e preconceitos — Foto: Acervo pessoal
Hoje, Thomas Geve tem 93 anos e participa de eventos para contar sua experiência e lutar contra intolerâncias e preconceitos — Foto: Acervo pessoal

Discreto, Geve não gosta de falar sobre sua vida pessoal — Thomas Geve, aliás, é um pseudônimo. “A gente não sabia do que ele passou até sermos muito mais velhos”, conta sua filha, Yifat, em entrevista à GALILEU. “Nós sabíamos que ele é um sobrevivente do Holocausto, porque ele tem um número em sua mão, e em Israel todos sabem o que isso significa. Mas não lemos o livro ou seu testemunho até muito mais tarde.”

Formado em Engenharia, ele se mudou para Israel em 1950, onde, durante 60 anos, participou da construção de casas e assentamentos, entre outros projetos. “As mesmas habilidades que aprendi quando garoto na escola de pedreiros em Auschwitz, que tinha o objetivo de me transformar em um construtor do império da morte do Terceiro Reich, agora me serviam para ajudar na reconstrução do novo estado judaico”, escreve no epílogo de 2020, lançado com a nova edição do livro. “Essa foi minha pequena vingança particular e outra vitória.” As outras vitórias incluem um casamento, três filhos, nove netos e uma bisneta.

Mesmo sem revelar detalhes de sua vida pessoal, porém, participou de diferentes eventos em Israel para sobreviventes do Holocausto— nos anos 1980, em um deles, reencontrou “Gert Atrevido”, um de seus amigos de Auschwitz. E isso o motivou a se tornar mais ativo: doou os desenhos para o memorial do Holocausto Yad Vashem, que uma década depois viraram um documentário na Alemanha e, nos anos 1990, começou a viajar pela Europa para falar sobre o seu passado. Com a pandemia de Covid-19 e a idade avançada, Geve encerrou as viagens e passou a contar com a ajuda da filha, Yifat, que o auxilia a participar de eventos online e a continuar em contato com a mídia no mundo todo.

“Ser filha de um sobrevivente do Holocausto afeta a sua vida de muitas formas”, explica Yifat. “Eu vou levar o relato dele para a frente, e espero que as próximas gerações também o façam. A gente não pode mudar o passado ou o que aconteceu. Mas é nossa habilidade e responsabilidade de dar a ele um significado. Então, é importante pensar sobre o passado, aprender sobre ele, pensar sobre o que ele representa para a nossa a vida. E refletir sobre o que podemos fazer agora para evitar que tragédias como essa aconteçam de novo.”

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