Sociedade

Por Christiaan Harinck* | The Conversation

O atual conflito na Ucrânia frequentemente suscita paralelos com a Primeira Guerra Mundial. É uma comparação feita por políticos, jornalistas, analistas e militares.

A cobertura nos últimos meses de inverno [no Hemisfério Norte], por exemplo, concentrou-se em como os ucranianos estão lutando em trincheiras lamacentas em Bakhmut, enquanto a Rússia sofre com quase os mesmos níveis de baixas do conflito do século passado. Não é surpresa que os comentaristas se voltem para essas comparações.

O retorno da guerra em todo seu poder destrutivo para a Europa despertou essa memória cultural na sociedade ocidental em larga escala. Infelizmente, essas comparações são muitas vezes inúteis.

Muitas das comparações com a Primeira Guerra Mundial enfatizam a natureza não moderna do que está acontecendo nos campos de batalha da Ucrânia. Isso leva a ignorar a natureza moderna do que está acontecendo, mesmo em Bakhmut, potencialmente subestimando a Rússia e superestimando as diferenças entre as forças russas e ucranianas. E, o mais importante, ao fazer esse tipo de comparação histórica, nos distanciamos dos horrores e da violência da guerra.

Guerra antimoderna e moderna

É impressionante quantas das comparações da Primeira Guerra Mundial sublinham a natureza grosseira do esforço militar da Rússia e o aparente fracasso, frieza e irracionalidade dos generais da Rússia. Nessas comparações, a Primeira Guerra Mundial não serve como referência da guerra moderna, mas como a imagem assombrada da guerra industrial primitiva de mais de um século atrás.

O recente filme premiado da Netflix Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, ajudou a trazer essa imagem da Primeira Guerra Mundial à tona novamente. O que é tão característico da Primeira Guerra e que parece tão pouco moderno é sua falta de progresso. Quatro anos de luta em pequenas faixas de terra com pouco para mostrar.

Espera-se que a guerra convencional moderna seja acelerada, como a Operação Tempestade no Deserto em 1991 e a segunda invasão estadunidense ao Iraque em 2003 (se convenientemente ignorarmos os anos de insurgência que se seguiram). Ou ainda como os pilotos de caça no filme Top Gun: Maverick, para fornecer outra referência cinematográfica.

Embora tenhamos visto drones e outras ferramentas de guerra de alta tecnologia nos noticiários, não vimos muito progresso no avanço da linha de frente. Em vez disso, vimos imagens de trincheiras e lemos sobre baixas maciças.

Os planejadores militares ocidentais estão obcecados com guerras curtas há décadas. Uma razão para isso é a crença em resultados rápidos fornecidos pela tecnologia moderna. No entanto, a guerra na Ucrânia é moderna no sentido de que é o que se espera nas circunstâncias e condições dadas, quando exércitos equiparados se encontram no campo de batalha e (ainda) não têm força suficiente para superar totalmente o outro.

Subestimar os objetivos da Rússia

Uma das consequências de usar a comparação da Primeira Guerra Mundial pode ser não entender o que os russos estão tentando alcançar. O não moderno está, é claro, intimamente associado não apenas à guerra em geral, mas especialmente à conduta da Rússia.

Não quero sugerir que a conduta tática e operacional da Rússia na guerra, especialmente durante os últimos meses de inverno, tenha sido impressionante e bem-sucedida – muito pelo contrário. Mas ao vincular a conduta da Rússia a uma imagem estereotipada dos combates da Primeira Guerra Mundial, podemos parar de analisar todo o contexto.

A condução da guerra pela Rússia está cheia de erros. Mas também é racional quando vista sob o contexto de uma força militar mal-preparada e rapidamente expandida, da dinâmica da política russa e da ideologia do regime.

No nível operacional e tático, a comparação da Primeira Guerra Mundial pode levar as pessoas a subestimarem o que a Rússia pode estar tentando alcançar e como ela tenta adaptar sua estrutura de força e prática tática no campo de batalha. Pode-se também perder de vista o preço que a luta atual pode estar cobrando das forças “mais modernas” da Ucrânia.

Por fim, ao nos concentrarmos tão fortemente no fracasso e no sucesso no campo de batalha (e vendo isso através do prisma de uma imagem estereotipada da Primeira Guerra Mundial), podemos perder as interpretações russas de sucesso estratégico e político. Embora tomar Kiev e não perder Kherson seja mais atraente do que a alternativa para o Kremlin, é sensato questionar como a liderança russa entende a guerra.

É uma guerra contra a Ucrânia ou uma guerra contra o Ocidente que acontece na Ucrânia e sobre ela? E, como resultado, o que a Rússia precisa alcançar no campo de batalha para atingir seus objetivos estratégicos e políticos, tanto a curto, médio e longo prazo?

Embora o campo de batalha e o sucesso estratégico e político estejam relacionados, essa conexão é tudo menos direta. Pode ser que, em sua avaliação atual da situação, um impasse no leste da Ucrânia sirva ao propósito e aos objetivos (revistos) do Kremlin.

Desvinculando-se da realidade

Para alguns, a guerra na Ucrânia é um retorno à barbárie do abate industrial do início do século 20. Serve como uma acusação à guerra e ao regime de Putin, mas também enfatiza nossa própria modernidade. Isso não deveria acontecer em 2023.

Mas esse é um pensamento perigoso e enganoso, pois isola o que está acontecendo na Ucrânia de nossos tempos. O que vemos na Ucrânia não é um show de terror histórico, é a cara feia da guerra moderna em grande escala. Nas últimas décadas, a sociedade ocidental tornou-se estranhamente inconsciente do que acontece em uma guerra moderna. A guerra na Ucrânia nos confronta com esses horrores.

Não é que as potências ocidentais ou outras potências não tenham travado guerras nos últimos 50 anos. Mas, como a maioria delas foi de escala relativamente pequena e foi travada além do Ocidente (com exceção das guerras dos Bálcãs na década de 1990) e contra potências não ocidentais (ou entre potências não ocidentais), a cobertura dessas pessoas e sociedades alvos de armas de guerra modernas tem sido limitada. Agora, com a guerra muito mais perto de casa (no que diz respeito à Europa) e entre forças equiparadas, estamos começando a ver os custos de uma guerra moderna .

Quando as gerações futuras procurarem algo para comparar os horrores de suas novas guerras, elas podem não escolher os Campos de Flandres e, em vez disso, recorrer ao que aconteceu nos campos de Chernihiv, Sumy, Kharkiv, Luhansk, Donetsk e Kherson na década de 2020. Tenho certeza de que os ucranianos irão.

*Christian Harinck é professor de história das relações internacionais e da guerra na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos.

Este artigo foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation.

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