• Texto: Marília Marasciulo | Edição: Luiza Monteiro
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Quem foram as czarinas que governaram a Rússia por quase 100 anos (Foto: Getty Images)

Quem foram as czarinas que governaram a Rússia por quase 100 anos (Foto: Getty Images)

Em toda a história russa, nunca as mulheres tiveram tamanha importância política quanto no século 18: durante três quartos do período, o país foi governado por regentes do sexo feminino. Não à toa, essa época é denominada por historiadores como a era das czarinas. “Foi um fenômeno muito interessante, e o papel delas na história da Rússia e da Europa foi bem importante”, observa o historiador e jornalista Vladimir Fedorovski, autor de As Czarinas: As Mulheres que Fizeram a Rússia, traduzido para o português e lançado em agosto no Brasil pela editora Agir.

Usando documentos e depoimentos inéditos, Fedorovski traçou os perfis dessas mulheres em narrativas repletas de ambições, conflitos e paixões — quase como um Game of Thrones da vida real. Embora o conceito de czarina para o autor não se restrinja às mulheres que ocuparam o posto mais alto do poder político (ele considera, por exemplo, que as esposas de czares também poderiam ser czarinas), são as histórias de Catarina I, Anna Ioannovna, Isabel Romanov e Catarina II (a Grande) que mais chamam a atenção.

“Se pararmos para pensar, no Brasil só tivemos uma mulher presidente. Nos Estados Unidos, nenhuma. E na Rússia, várias foram governantes. Como as mulheres regeram um país gigante como a Rússia, que é também um dos mais conservadores do mundo?”, indaga a historiadora Thaiz Senna, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em história russa.

Há três séculos, quase 90% do país era feudal. “Eles tinham costumes do tipo botar um chicote do lado da cama da noiva para o noivo usá-lo quando achasse necessário. Esse era o nível de machismo e patriarcalismo da Rússia”, ilustra Senna. E os exemplos persistem até no século 21: em 2017, o presidente, Vladimir Putin, sancionou uma lei que permite a violência doméstica uma vez por ano.

"Como mulheres regeram um país gigante como a Rússia, que é também um dos mais conservadores do mundo?"

Thaiz Senna, pesquisadora da UFF e especialista em história russa

Apesar desse histórico, as czarinas ascenderam ao poder e realizaram transformações — ainda que poucas em prol das mulheres — que contribuíram para moldar a Rússia. “Acho que temos muito a aprender com essas histórias. Em todo o mundo a política tem sido desacreditada, mas creio que as mulheres podem fazer muito mais”, avalia Fedorovski. “Todas essas mulheres exerceram o poder com um espírito de equipe que é muito relevante para a história moderna.”

Ironicamente, porém, tudo começou com um homem: Pedro, o Grande, que comandou a Rússia de 1682 até 1721. Ao mesmo tempo em que mantinha políticas machistas que relegavam as mulheres à condição de “objetos”, o czar buscou modernizar a Rússia e torná-la mais parecida com a Europa Ocidental. Por razões desconhecidas, ele não gostava do filho, seu herdeiro natural, e determinou que os czares poderiam passar a escolher quem seriam seus herdeiros — ou herdeiras. Uma ousadia sem precedentes e que contribuiu para a era das czarinas. Especialmente porque, antes de morrer, Pedro I se esqueceu de apontar quem o sucederia.

A primeira Catarina

Catarina I reinou por um breve período, entre 1725 e 1727, mas foi o suficiente para avançar no desenvolvimento de São Petersburgo e reduzir os exorbitantes gastos militares da Rússia. (Foto: Getty Images)

Catarina I reinou por um breve período, entre 1725 e 1727, mas foi o suficiente para avançar no desenvolvimento de São Petersburgo e reduzir os exorbitantes gastos militares da Rússia. (Foto: Getty Images)

Com a morte do czar, em 8 de fevereiro de 1725, houve brigas, discussões e mortes, “até que um rufar de tambores no pátio do palácio atraiu todo mundo às janelas”, descreve Vladimir Fedorovski no livro. O príncipe Repnin ficou indignado: “quem se achou no direito de convocá-los?”. Ao que se seguiu a resposta do comandante da guarda: “Excelência, é uma ordem expressa da nossa soberana, a imperatriz Catarina, a quem o senhor mesmo, eu e todos os súditos fiéis devemos obediência imediata e incondicional”. Os soldados, muitos em lágrimas, então exclamaram: “Nosso Paizinho morreu, mas nossa Mãezinha está viva!”. E assim Catarina I foi proclamada “autocrata com todas as prerrogativas do seu falecido esposo”.

O reinado de Catarina I começou no mesmo dia da morte de Pedro I e durou até 17 de maio de 1727. Nascida Marta Skavronski, filha de camponeses da Livônia (que hoje inclui territórios de Estônia e Letônia), ela foi uma czarina improvável. Conheceu Pedro I com 22 anos e virou sua amante. Em 1707, eles se casaram em uma cerimônia discreta, o que causou um alvoroço: além de a esposa oficial do soberano ainda estar viva, o casamento de um czar com uma camponesa estrangeira e analfabeta não era bem-visto.

Por isso, só em 1712 a união entre eles foi oficialmente celebrada, e a jovem foi rebatizada e recebida na Igreja Ortodoxa — tornou-se, então, a czarina Catarina Alexeievna, apadrinhada pelo herdeiro do trono, Alexei, filho da ex-esposa de Pedro I. Com uma paixão expressada em longas cartas, hoje guardadas em arquivos históricos, o casal teve 12 filhos, mas só dois chegaram à idade adulta.

"Todas essas mulheres exerceram o poder com um espírito de equipe que é muito relevante para a história moderna"

Vladimir Fedorovski, autor de autor de "As Czarinas: As Mulheres que Fizeram a Rússia"

Sob o governo de Catarina I, a Rússia continuou se modernizando. A regente investiu na nova capital, São Petersburgo, construindo as primeiras pontes da cidade. “Na minha opinião, ela foi a czarina mais fascinante. Era uma camponesa e virou esposa de um czar, e aí deu ideias a Pedro I. A sugestão de construir São Petersburgo veio dela”, revela Fedorovski. A czarina também reduziu consideravelmente os gastos militares, que consumiam quase 65% do orçamento governamental — não à toa: o exército russo na ocasião da morte de Pedro I era o maior da Europa. O alívio nos impostos deu a ela a fama de uma líder justa e razoável.

Novela da vida real

Anna Ioannovna reinou de 1730 até sua morte, dez anos depois. O período é marcado por episódios dignos de novela na corte russa e fortes alianças militares. (Foto: Getty Images)

Anna Ioannovna reinou de 1730 até sua morte, dez anos depois. O período é marcado por episódios dignos de novela na corte russa e fortes alianças militares. (Foto: Getty Images)

Em 1727, aos 43 anos, Catarina I morreu de tuberculose e foi sucedida por Pedro II, seu enteado (filho de Alexei). O governo dele também foi curto: faleceu de varíola em 1730, e o controle da Rússia passou para as mãos de Anna Ioannovna, sobrinha de Pedro I. Escolhida pela nobreza comandada pelo príncipe Dmitri Galitzine — que esperava que a czarina servisse como um fantoche no trono e acatasse todas as decisões dos nobres —, Anna protagonizou uma grande reviravolta.

Ao ser coroada, literalmente rasgou os papéis que assinara concordando em ter os poderes limitados e se tornou uma autocrata. “Colocaram o poder na mão dela porque era mulher e parecia mais frágil, não esperavam que ela fizesse o que fez”, comenta Thaiz Senna.

Talvez como vingança ou passatempo, Anna gostava de humilhar o alto escalão da nobreza. Um exemplo parece até enredo de filme macabro: ela obrigou o príncipe Dmitri Galitzine a se casar com uma de suas criadas, ambos vestidos de palhaço, e a passarem a lua de mel em um palácio de gelo. Tudo isso durante o inverno russo. O final foi trágico: os dois acabaram morrendo.

"Em todo o mundo a política tem sido desacreditada, mas creio que as mulheres podem fazer muito mais"

Vladimir Fedorovski, jornalista e historiador

Mas seu reinado de uma década não foi marcado apenas por armações novelescas. Ioannovna obteve diversos aliados alemães e conseguiu levar os limites da Rússia até a Ásia Central. A czarina chegou a declarar guerra ao Império Otomano, embora a disputa não tenha ido para a frente, pois o imperador da Germânia fez um acordo com os turcos, obrigando a Rússia a devolver outros territórios. As disputas só seriam resolvidas décadas depois, no reinado de Catarina II.

Pela cultura e a ciência

O reinado de Isabel Romanov durou 20 anos e entrou para a história pela abolição da pena de morte, criação do senado e investimentos em ciência e cultura. (Foto: Getty Images)

O reinado de Isabel Romanov durou 20 anos e entrou para a história pela abolição da pena de morte, criação do senado e investimentos em ciência e cultura. (Foto: Getty Images)

Antes do reinado da segunda Catarina, que ficaria conhecida como a Grande, a Rússia foi comandada durante 20 anos por outra mulher igualmente importante: Isabel Romanov, filha de Pedro I e Catarina I. Pouco antes de morrer aos 47 anos, em 1740, Anna Ioannovna determinou que seu sobrinho, Ivan VI, fosse seu sucessor. Mas ele tinha apenas 1 ano de idade, e o comando da Rússia ficou, portanto, sob a regência de sua mãe, Anna Leopoldovna.

Não durou muito. Pouco após a morte de Ioannovna, Isabel Romanov obteve apoio da população e deu um golpe, enviando o pequeno Ivan VI e Anna Leopoldovna para um calabouço. Em 1742, aos 33 anos, Isabel coroou a si mesma na Catedral da Anunciação. Embora seu reinado tenha começado com uma demonstração de autoridade, as décadas seguintes foram marcadas por uma forte modernização da Rússia. Entre as reformas realizadas pela czarina estavam a abolição da pena de morte e a criação de um senado. Mas foi principalmente na cultura que Isabel prosperou e se destacou.

Fluente em italiano, alemão e francês, sua corte tinha forte inspiração francesa — não à toa, autores como Tolstói e Dostoiévski escreveram trechos inteiros no idioma romântico em seus livros. Seus bailes suntuosos ficaram conhecidos em toda a Europa, e reza a lenda que ela possuía 15 mil vestidos de baile, milhares de pares de sapatos e inúmeras meias de seda. Além das festas, promoveu também as artes e a ciência: fundou a Universidade de Moscou, em 1755; o primeiro teatro profissional russo, em 1756; a Academia de Artes da Rússia, em 1757; e concluiu a construção da Academia de Ciências de São Petersburgo.

Sem poder ter filhos, Isabel adotou o sobrinho, Pedro III. Decepcionada com o péssimo temperamento e o aspecto físico do garoto, considerou que um casamento seria a solução. Escolheu como noiva a alemã Sofia de Anhalt-Zerbst, sobrinha de Carlos Augusto de Holstein (a quem Isabel havia sido prometida, mas nunca se casou, pois ele morreu antes do noivado). Quando se mudou para a Rússia a fim de selar o matrimônio, Sofia recebeu uma nova identidade da Igreja Ortodoxa: Catarina Alexeievna, mas entrou para a história como Catarina, a Grande.

Azar no amor, sorte na política

Catarina II governou a Rússia entre 1762 e 1796, e entrou para a história como “a Grande” pelos seus feitos grandiosos no país. (Foto: Getty Images)

Catarina II governou a Rússia entre 1762 e 1796, e entrou para a história como “a Grande” pelos seus feitos grandiosos no país. (Foto: Getty Images)

O casamento de Catarina II com Pedro III foi um fracasso total. “Se eu tivesse um marido que se fizesse amar”, escreveu ela, “lhe teria sido fiel a vida inteira, pois não tenho a menor tendência para a devassidão. Deus é minha testemunha. Minha grande infelicidade é não saber se essa inclinação é um vício ou uma virtude”. Ela esperou oito anos para de fato trair Pedro III, que é descrito por Fedorovski como “sorrateiro e vil, além de ter o rosto marcado pela varíola e ser ainda e sempre feio”. E ela só o fez por sugestão de Isabel, que se preocupava com o fato de que Catarina II não engravidava (Pedro III era também infértil).

Mas, se a traição foi motivo de dúvidas, Catarina II não hesitou ao depor o marido. Seis meses depois de Pedro III ser coroado czar da Rússia após a morte de Isabel, sua esposa arregimentou um golpe e, possivelmente, o assassinato do cônjuge. Em 9 de julho de 1762, foi coroada imperatriz da Rússia, dando início a um lendário reinado que durou até sua morte, em novembro de 1796. “Ela foi a mais importante para a construção da Rússia”, opina Fedorovski.

"Catarina, a Grande, foi a [czarina] que mais promoveu a emancipação feminina, que teve avanços maiores do que o costume"

Thaiz Senna, historiadora

Catarina II continuou a modernizar e a investir na expansão do país. “Ela também era estrangeira e veio de formas não convencionais para o czarismo, mas por que foi ‘a Grande’? Porque conseguiu conquistas que nem alguns homens conseguiram, em áreas que mulheres não ousavam tocar, principalmente militares”, justifica Thaiz Senna. Durante seu reinado, ela acrescentou cerca de 518 mil quilômetros ao território russo: entre outras regiões, Nova Rússia, Crimeia, Ucrânia e Belarus, vencendo o Império Otomano e a República das Duas Nações (que unia Polônia e Lituânia).

Mecenas das artes e ciências, correspondia-se com filósofos como Voltaire, Diderot e d’Alembert, além de economistas e cientistas da época. “Apesar dos pesares, Catarina, a Grande, foi a que mais promoveu a emancipação feminina, que teve avanços maiores do que o costume, ainda que muito limitados”, analisa a pesquisadora da UFF. Em 1764, por exemplo, criou o Instituto Smolny, primeira instituição de educação que mulheres da aristocracia poderiam frequentar. Também elegeu a amiga Catarina Dashkova como diretora da Academia Russa das Ciências, primeira mulher na história a liderar uma academia científica nacional. Apesar de não ser cientista, Dashkova recuperou o prestígio da instituição

Tal legado, porém, foi rapidamente apagado após a morte de Catarina II, vítima de um derrame aos 67 anos. Paulo I, seu único filho e herdeiro, adotou como uma de suas primeiras medidas a instituição de leis para determinar a sucessão do trono russo, proibindo que mulheres voltassem ao comando. O século das czarinas chegava oficialmente ao fim.

Desde então, o país avançou pouco tanto em relação a políticas voltadas para mulheres quanto à democracia. Na visão de especialistas, não seria exagero classificar Vladimir Putin — que ocupa a presidência do país desde 2012 — como uma espécie de czar moderno. “Certa vez, em uma entrevista, alguém teria perguntado a ele se uma mulher poderia governar a Rússia de hoje”, lembra Senna. “Ao que ele respondeu: claro, a Rússia é um país avançado.” A internet, porém, não perdoou e rapidamente surgiram memes com o que críticos consideraram uma resposta mais condizente com a realidade: “não, porque eu não sou mulher.”