• Bruno Militão*
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Construção da barreira Rússia-Ucrânia em 2014 (Foto: Reprodução/WikiCommons)

Construção da barreira Rússia-Ucrânia em 2014 (Foto: Reprodução/WikiCommons)

As tensões entre Rússia e Ucrânia voltaram a chamar atenção nas últimas semanas e tiveram seu ápice nesta quinta-feira (24), quando tropas russas invadiram o território ucraniano. Durante pronunciamento televisivo transmitido nacionalmente, o presidente Vladimir Putin anunciou uma “operação militar especial” do país à Ucrânia. Desde então, sirenes e explosões foram ouvidas em cidades ucranianas, com relatos de pelo menos 50 mortos já no primeiro dia de confronto.

Os conflitos na região, em especial entre as duas nações, não são recentes – alguns dos primeiros confrontos datam de séculos atrás, e são muito complexos. A seguir, confira alguns dos momentos mais importantes dos atritos históricos entre os dois países.

1. Russos e ucranianos têm a mesma origem

As populações ucraniana, russa e também bielorrussa compartilham ancestrais comuns: os povos eslavos do oriente. Por volta do século 9 d.C., formaram um estado medieval, chamado Rússia de Kiev, cuja sede era justamente onde hoje fica a capital da Ucrânia, Kiev

Apesar desses laços estreitos, com o tempo foi se construindo uma diferenciação cultural e étnica – o que se vê principalmente pela língua, por exemplo. Apesar de similares, hoje existem sistemas linguísticos diferentes para o russo e o ucraniano.

Uma questão importante para compreender os conflitos atuais é a forma com que essas populações entendem o conceito de nacionalidade. “Na língua russa, por exemplo, há dois termos para se referir a sua população: rossiyane, que são os cidadãos da Federação Russa, independente da origem étnica; e russkies, os russos étnicos, cuja identificação se dá pela origem familiar, pela ancestralidade”, explica o internacionalista e historiador César Augusto de Albuquerque, doutorando em História Social e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP).

2. Historicamente, a região da Ucrânia sempre esteve dominada

Ao longo da história da Europa Oriental, os povos ali presentes passaram por uma série de conflitos, dominação e hegemonias locais. No caso da Ucrânia, o território sempre esteve sob o domínio de algum outro povo — o país já foi parte da Polônia e da Lituânia e, no século 18, uma porção grande foi anexada ao Império Russo.

"Mesmo depois de anexada ao Império Russo – e posteriormente como uma das repúblicas soviéticas –, a Ucrânia possuía uma relativa autonomia", explica Albuquerque. Para ele, não se pode pensar em um momento de início do conflito, já que as relações entre os dois países ocorrem há séculos.

3. A questão da Crimeia

A península da Crimeia, localizada no sul da Ucrânia e cercada pelos mares Negro e de Azov, não era habitada por russos nem por ucranianos étnicos, mas sim pelos tártaros, povos de origem turca. Depois da guerra entre os então impérios Russo e Otomano, a região foi anexada em 1783 ao território da Rússia e, desde então, é controlada pelo país.

Mapa da Europa, com Rússia (vermelho), Ucrânia (verde claro) e a península da Crimeia (verde escuro) (Foto: Reprodução/WikiCommons)

Mapa da Europa, com Rússia (vermelho), Ucrânia (verde claro) e a península da Crimeia (verde escuro) (Foto: Reprodução/WikiCommons)

4. Movimentos de migração

Ao longo de todo o período de domínio russo Crimeia, existiram diversas ondas de migração populacional, voluntária ou involuntária. Esses processos criaram uma complexa rede de povos estrangeiros ali. "Populações foram retiradas de determinados territórios à força; outras migraram e se juntaram em territórios com diversas minorias étnicas”, relata o pesquisador da USP.


Por isso, hoje há muitos ucranianos étnicos morando em territórios dentro da República Federativa da Rússia, assim como muitos russos vivem em áreas das ex-repúblicas soviéticas, caso da Ucrânia. "O leste da Ucrânia é majoritariamente povoado por populações russo étnicas, por exemplo", observa o especialista.

É nesse contexto que ocorreu a "colonização populacional" na Crimeia, principalmente por russos. O território que compreende a península era parte do Império Russo e, com a Revolução Comunista de 1917, passou a integrar a República Soviética da Rússia.

5. Começa o toma-lá-dá-cá

Em 1954, a partir de uma decisão de Nikita Khrushchev, primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética (URSS), a Crimeia deixou de ser parte da Rússia para se transformar em território ucraniano – apesar de ainda compor o conjunto soviético. "Naquele momento isso não representou um efeito tão grande do ponto de vista político, já que todas as Repúblicas estavam unidas sob o controle de Moscou", analisa César de Albuquerque.

O problema se torna latente apenas depois da dissolução da URSS, em 1991. Grande parte dos territórios das repúblicas foram mantidos – e a Crimeia permaneceu como território da Ucrânia independente, embora sua população fosse principalmente de russos. "Havia também um interesse da Ucrânia em manter o território, já que é uma região estratégica do Mar Negro e é onde estava grande parte das frotas soviéticas”, pontua o historiador.

6. Os conflitos se acirram

A partir dos anos 2000, as tensões ficaram mais críticas – inclusive em relação a outras repúblicas da ex-URSS. “Uma série de brigas entre Rússia e os antigos estados soviéticos são de um lado motivados por essas diferenças entre grupos étnicos nas repúblicas e, ao mesmo tempo, o interesse de alguns povos em manter sua autonomia em relação a Moscou”, afirma César de Albuquerque.

A Rússia, por querer resgatar sua influência internacional, como era no auge da Guerra Fria, ainda enxerga a Crimeia como um território importante para sua esfera de influência no jogo geopolítico. A Ucrânia, por sua vez, se divide.

Uma população de origem russa (e mesmo alguns ucranianos) prefere a manutenção da aliança com Moscou e leva em conta os laços ancestrais comuns; já outra parcela do povo, majoritariamente de ucranianos étnicos, entende a aproximação com o Ocidente (em especial com a Europa Ocidental, os EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan) como garantia de sua independência e autonomia recém-conquistadas, e uma forma de evitar o retorno ao domínio russo.

7. “A Primavera Ucraniana”

Uma série de mobilizações contra o governo ucraniano entre 2013 e 2014 levou o nome de Euromaidan. Na época, ocorriam negociações a respeito da entrada da Ucrânia na União Europeia (UE), quando o governo de Viktor Yanukovytch, presidente ucraniano pró-Rússia, decidiu interromper os acordos e aceitar uma aliança com o país de Putin.

A partir daí, diversas manifestações a favor e contra o governo – inclusive com interferências externas – provocaram a derrubada de Yanukovytch e a instalação de um governo interino. Os EUA reconheceram o governo provisório, mas a Rússia não. Como resposta, Putin enviou tropas que ocuparam a região da Crimeia e a anexaram de volta ao país, de forma unilateral.

Ainda em 2014, novas eleições foram feitas na Ucrânia – com exceção da região da Crimeia – e levaram ao poder um governo pró-ocidente

As relações ficaram mais delicadas com a Rússia, que, além de dar suporte a movimentos rebeldes da Ucrânia, realizou um plebiscito na Crimeia. A população teria, em sua maioria, decidido reingressar no território russo. “É um processo cheio de críticas, mas que se assenta na ideia de que as populações dessas regiões são de etnia majoritariamente russa, a qual não concorda com as aproximações com o Ocidente.”

Conflitos fazem parte do xadrez entre países

Para Albuquerque, é curioso perceber que esses conflitos mais recentes reproduzem a lógica belicista entre a Rússia e países do Ocidente – como era na Guerra Fria. “É uma mentalidade que predomina e parece não ter sido superada", constata. “Até mesmo a Ucrânia questiona os lados desse conflito, já que o cerne da disputa muitas vezes não a envolve. Isso deixa um pouco mais claro que se trata muito mais de um jogo internacional do que, de fato, um problema local.”

Para o internacionalista, a manutenção de uma lógica de polarização baseada no período da Guerra Fria é uma visão simplista. “Não temos mocinhos e vilões. Existem diversas disputas e todos estão olhando para os próprios interesses, em especial a Rússia e os Estados Unidos; e nesse quadro, a Ucrânia e outras repúblicas acabam sofrendo mais as consequências.”.

*Com supervisão e edição de Luiza Monteiro.