Cultura Obituário

Morre o compositor Aldir Blanc, aos 73 anos, de complicações causadas pela Covid-19

Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, ele deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'
O compositor e escritor Aldir Blanc Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O compositor e escritor Aldir Blanc Foto: Leo Martins / Agência O Globo

RIO — Autor de versos memoráveis da música brasileira , cronista das tristezas e alegrias do país, Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus , Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril.

O compositor deu entrada no CER Leblon no dia 10 de abril, com infecção urinária e pneumonia. Ele chegou a ser entubado em uma sala da unidade de saúde por falta de vagas em UTI. Apenas no dia 20, a família conseguiu transferi-lo para um leito de terapia intensiva no Pedro Ernesto.

Em sua homenagem, amigos e fãs estão organizando cantorias na noite desta segunda-feira.

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Cartomantes, pés-rapados, meretrizes, vagabundos, marujos, corações partidos, morro, asfalto, mares, uma enfermeira do Salgado Filho, o beijo com cheiro de conhaque deixado na pele da amante, bêbados, equilibristas, o corpo, lá, estendido no chão. Nada passava despercebido pelo empático olhar atento de Aldir Blanc. Gaiato como sempre, ele costumava dizer que era “rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto, nessa ordem”.

Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, Aldir Blanc deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'
Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, Aldir Blanc deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'

Por meio de uma poesia suja e sublime, sagrada e profana, terna e impiedosa, o compositor construiu como poucos um retrato rico e fidedigno da alma brasileira, agregando tanto o belo de sua inventividade quanto o grotesco de sua violência. “Amoroso e colérico”, como o próprio cronista se definia.

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Cria da Zona Norte, o compositor absorveu o coração do subúrbio carioca desde o berço. Da Vila Isabel de sua infância, passando pelo Estácio, bairro onde nasceu — no dia 2 de setembro de 1946 — e viveu uma dura adolescência, até o apartamento da Muda: “meu bairro começa na Vila Mimosa e acaba no Alto da Boa Vista.”

Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril. Moradores de um bairro da zona sul do Rio homenagearam Aldir. Uma salva de palmas feita pela janela foi registrada e publicada nas redes sociais.
Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril. Moradores de um bairro da zona sul do Rio homenagearam Aldir. Uma salva de palmas feita pela janela foi registrada e publicada nas redes sociais.

Curioso e observador, logo se embrenhou pelos encantamentos das ruas, dos tipos humanos e das manifestações culturais de sua cidade, cultivando suas principais paixões desde cedo: o futebol do Club de Regatas Vasco da Gama, o samba da Acadêmicos do Salgueiro, a vida boêmia, as pequenas e deliciosas histórias do cotidiano, a visão crítica e ácida sobre política e desigualdades sociais, e a poesia, que começou a escrever aos 16 anos.

O frasista Aldir Blanc : 'Sou rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto, nessa ordem'

O amor pela palavra foi herdado do avô, que lhe presenteava com gibis e livros de bolso. Quando garoto, ele sonhava ser baterista, compositor popular e escritor, influenciado por nomes como Rubem Braga e Sergio Porto, mestres da crônica, esse gênero tão brasileiro e tão carioca no qual Aldir também se destacaria. "Boa literatura precisa de mau gosto, mau humor, pitadas de mau-caratismo, e de muitos outros males — e maltes", resumiu ao GLOBO em 2006.

Em 1966, Aldir ingressou na faculdade de Medicina, especializando-se na área de psiquiatria. Mas abandonaria a carreira de vez em 1973, um ano depois do lançamento de “Agnus sei”, parceria abre-alas de sua obra com João Bosco pelo projeto Disco de Bolso da revista “O Pasquim” — a estreia dos parceiros havia sido quando Elis Regina gravou “Bala com bala”, pouco antes. O lado A do disco, dedicado a um nome consagrado, trazia “Águas de março”, de Tom Jobim, marcando uma simbólica passagem de bastão para a nova geração da MPB — o nome do compacto era "O tom de Antonio Carlos Jobim e um tal de João Bosco".

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O encontro com Bosco representou um casamento perfeito: de um lado, o rico lirismo do letrista; do outro, a sofisticação rítmica e harmônica do violão e das melodias do então desconhecido músico mineiro. Ao lado dele, Aldir construiria uma das mais prolíficas e contundentes parcerias da história da música popular em todo o mundo.

Juntos, escreveram clássicos como “Bala com bala”, “Caça à raposa”, “Linha de passe”, “Cabaré”, “Kid Cavaquinho”, “O mestre-sala dos mares”, “De frente pro crime” e “O bêbado e a equilibrista”, que, na voz de Elis Regina — uma das principais intérpretes do duo —, se tornou o hino pela campanha pela anistia .

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Em mais de 50 anos de carreira, todos dedicados às letras — seja como compositor, escritor ou cronista —, Aldir escreveu cerca de 500 canções, sem contar outras centenas nunca gravadas ou perdidas (segundo suas contas, foram mais de 1.300). Além de Bosco, criou músicas com nomes como Guinga, Sílvio da Silva Júnior, César Costa Filho, Jayme Vignolli, Hélio Delmiro, Djavan, Cristóvão Bastos (com quem fez o clássico "Resposta ao tempo", sucesso na voz de Nana Caymmi), Edu Lobo e Sueli Costa. Não à toa ninguém menos que Dorival Caymmi definiu o letrista como o "ourives do palavreado".

Assim como Guinga, que já confessou que estava quase desistindo da música quando Aldir aceitou compor com ele, foi Moacyr Luz,  parceiro a partir dos anos 1980, quem complementou sua poesia como apenas Bosco havia sido capaz. Juntos, eles escreveram dezenas de canções, entre elas, crônicas apaixonadas e agridoces sobre a cidade. Da obra de Aldir, aliás, o  Rio emerge em canções como “Centro do coração”, “Só dói quando Rio”, “Do um ao seis” e “Saudades da Guanabara” (com Paulo César Pinheiro), lançada por Beth Carvalho em seu disco homônimo de 1989, que viria a se tornar um standard em rodas de samba cariocas.

Com um apetite voraz pela palavra, tanto a cantada quanto a escrita, Aldir ainda lançou discos como “Rios, ruas e paraísos” (1984, com Maurício Tapajós), “Aldir Blanc - 50 anos” (1996) e “Vida noturna” (2005), publicou livros — “Rua dos Artistas e arredores” (1978), “Porta de tinturaria” (1981) e “Vila Isabel, inventário da infância” (1996), entre outros — e escreveu crônicas, críticas e artigos para veículos de imprensa como O GLOBO, "O Pasquim", "Jornal do Brasil", “O Dia”, a revista "Bundas" e o site “No”.

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Autor do livro “Aldir Blanc: resposta ao tempo”, o jornalista Luiz Fernando Vianna falou ao GLOBO em 2013 sobre a dualidade entre doçura e tristeza presente em toda a obra do compositor:

— É esse paraíso da infância, mas com a doença da mãe pairando, o inferno da adolescência, o novo paraíso da primeira juventude, o inferno da perda das filhas gêmeas ( em 1974, as meninas prematuras morreram ao nasce r)... Emoções intensas na vida de um cara sensível e obcecado por leituras. Deu o caldo que deu.

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Por ocasião do lançamento do "Songbook" de João Bosco, o último produzido por Almir Chediak, em 2001, Aldir e Bosco retomaram o contato, a amizade e a parceria, que havia sido rompida em 1983 — de acordo com o provocador Aldir, "aí teve a famosa briga que não houve, nunca teve briga. As outras 36 versões sobre a briga são todas verdadeiras."

Em 2005, na época do lançamento de "Vida noturna", primeiro disco solo de Aldir como cantor, produzido por Moacyr Luz, seu outro principal companheiro de canções resumiu o motivo da grandeza de seus versos:

— Ele observa o mundo que está em volta dele, a vida que está acontecendo e nada escapa ao Aldir — disse ao GLOBO João Bosco. — Ele faz isso com um brilhantismo de quem não teme a morte. Canta a vida o tempo todo e só utiliza a morte quando precisa dela para fazer um verso. A morte para ele é o trecho de uma calçada onde ele cai. A morte coincide com o paralelepípedo e é apenas um detalhe do cenário. Ninguém mais consegue escrever com essa total liberdade de alguém que não teme nada.

Segundo Aldir dizia, "o poeta-letrista tem o dever de tentar cair no anonimato". Em 2006, ele contou ao GLOGO uma das grandes alegrias que um compositor popular pode ter: "A coisa mais bonita é um sujeito assobiar no ônibus a canção que você fez, ou, como me aconteceu uma noite na Estudantina, um cara ouvir a cantora da orquestra atacar “Dois pra lá, dois pra cá” e largar o copo dizendo pra si mesmo — e tenho certeza absoluta de que ele não sabia que o autor estava do lado —:'Vou dançar. Essa é a minha música.'" Em outras palavras, ele resumia: "defeco para a visibilidade".

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Nos últimos anos, Aldir, que sofria de diabetes, vivia recluso em seu apartamento, na Tijuca. Distante da bebida que fez companhia em tantos momentos, ele se dedicava a filhas e netos com vigor. O envelhecer gerava reflexões divertidas e bonitas, como era bem de seu feitio. Em 2016, quando fez 70 anos , disse ao GLOBO que chegar a essa idade era “como ser atropelado por um caminhão-cegonha que, em vez de transportar carros, transporta guindastes e tratores. Difícil levantar no dia seguinte”.

Um ano depois, também ao GLOBO, ele resumiu a relação que tinha com sua maior musa inspiradora:

— Sem a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro não existiria nenhum compositor popular chamado Aldir Blanc. Devo tudo a ela.