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Cultura

Erudito e popular, Aldir Blanc foi 'estrela da crônica do Rio de Janeiro'

Compositor também escreveu livro sobre o Vasco e se aventurou pela literatura infantil; a paixão pelo futebol era tema frequente em sua prosa
O compositor e escritor Aldir Blanc em 2016 Foto: Leo Martins / Agência O GLOBO
O compositor e escritor Aldir Blanc em 2016 Foto: Leo Martins / Agência O GLOBO

SÃO PAULO – Com a voz embargada, o escritor Marcelo Moutinho recorda o trecho de “Vila Isabel, inventário da infância”, um dos livros publicados pelo compositor Aldir Blanc, morto nesta segunda-feira (4), aos 73 anos : “Agora, essa aqui, dentro da caixa d’água, é a lua da Zona Norte . Põe a mão nela... Isso. Viste? É trêmula e tépida como as mulheres”.

– Essa imagem, o reflexo da lua numa caixa d’água da Zona Norte, que surge na conversa do Aldir menino como avô, diz muito da literatura dele, de como ele olhava para as coisas. É uma imagem lírica e demasiado humana – diz Moutinho. – Nas letras e nas crônicas, o Aldir tinha esse olhar suburbano, capaz de trafegar pela linguagem grosseira das ruas e tirar dela imagens líricas.

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Numa resenha publicada na revista “Quatro Cinco Um”, o historiador Luiz Antonio Simas comparou o último livro de Moutinho, “Rua de dentro” (Record), a canção “O rancho da goiabada”, parceria de Blanc com João Bosco . Como Blanc, Moutinho é um autor que aprecia perambular pelas ruas suburbanas do Rio. Quando, junto com Simas, organizou "O meu lugar", a antologia de crônicas sobre os bairros do Rio, publicada em 2015 pela Mórula Editorial, incluiu um texto de Blanc, “Na rua até hoje...”, sobre Vila Isabel. Em 2017, voltou a convidar Blanc para um projeto literário: “Conversas de botequim”, livro que reúne contos inspirados em canções de outro poeta da vila, “Noel Rosa” . O conto de Blanc empresta do título do samba “Feitiço da vila”.

– O Aldir era um cronista das ruas, do bar da esquina, da conversa jogada fora que está no cerne da crônica carioca – diz Moutinho.

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Conhecido pela poesia de suas canções, Blanc sempre escreveu prosa. Em 1978, publicou “Rua dos Artistas e arredores”, reunião de crônicas escritas para “O Pasquim”, no qual ele recordava a infância em Vila Isabel e os malandros que circulavam por lá, como Esmeraldo Simpatia é Quase Amor, virou nome de bloco de Carnaval. Outro tema frequente nas crônicas de Blanc era o futebol – ele era vascaíno roxo. Em 2009, ele publicou, pela Ediouro, o livro “Vasco – a cruz do bacalhau”, escrito em parceira com o jornalista José Reinaldo Marques .

Blanc também publicou outras antologias de crônicas, como “Porta de tinturaria” (1981), “Brasil passado a sujo: a trajetória de uma porrada de farsantes” (1993), “Um cara bacana na 19ª” (1996) e “Rua dos Artistas e tansversais”. Em 2008, publicou “Guimbas”, uma coleção de aforismos. Em 2009, estreou na literatura infantil com “Uma caixinha de surpresas”, sobre dois meninos vizinho: um goleiro e um atacante.

Em 2016, “Rua dos Artistas e arredores” foi reeditada pela Mórula como parte da coleção “Aldir 70”, que celebrava o septuagésimo aniversário do compositor. A Mórula também reeditou “Vila Isabel, inventário da infância” e “Porta de tinturaria” e lançou duas antologias de crônicas inéditas em livro: “O gabinete do doutor Blanc: sobre jazz, literatura e outros improvisos”, reunião de textos que haviam saído na revista eletrônica “No”, e “Direto do balcão” compilação de colunas publicadas na imprensa. Blanc escreveu em veículos diversos, como O GLOBO, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e revista “Bundas”.

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– As crônicas do Aldir são atemporais – afirma Marianna Araujo, da editora Mórula. – Ele contava as pequenas histórias do brasileiro comum com muita elegância. Com uma sutileza que era só dele, falava daquele sujeito que ia todo dia ao mesmo botequim, pedia a mesma bebida e a mesma empada e contava a mesma piada.

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Lirismo e grosseria

O escritor Alberto Mussa , que revirou o passado do Rio em seu “Compêndio mítico do Rio de Janeiro” (Record) , afirma que Blanc participa de uma linhagem de cronistas cariocas (natos ou naturalizados) que remonta ao século XIX.

O Aldir é parte de uma grande tradição de cronistas do Rio de Janeiro , um gênero que começou com Joaquim Manuel de Macedo e seguiu com Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio , com o capixaba Rubem Braga e o mineiro Fernando Sabino – diz. – O Aldir foi um cronista que viveu intensamente o sentimento das ruas do Rio, da cultura popular do futebol, do samba e macumba. Ele tirou sua verdade literária da vivência que tinha dos temas sobre o quais versava. Com uma voz própria e bem humorada, ele foi uma dessas estrelas que brilhou na crônica do Rio de Janeiro.

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O crítico literário e editor Paulo Roberto Pires , que editou as crônicas de Blanc na revista eletrônica “No.”, lembra que o compositor era apaixonado por jazz e literatura policial e sabia como poucos juntar o erudito e o popular.

– Ele brincava: “Quando conheci minha garota, disse a ela: ‘sou capaz de ler “Ulysses” (de James Joyce) e de dar com ele nos teus cornos” – recorda Pires, que chama a prosa de Blanc de “anárquica”. – Lembro de, ainda moleque, ter lido uma crônica dele no “Pasquim” sobre o malandro que convence uma mulher a dar para ele, mas quando ela tira a roupa, ele fica afobado, sem saber se vai por cima ou por baixo e acaba gozando na grama (risos) . O texto termina com a frase: “O apressado come cru e o imbecil nem cru come”. É de uma grosseria irretocável e de uma elaboração literária foda!

Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril. Moradores de um bairro da zona sul do Rio homenagearam Aldir. Uma salva de palmas feita pela janela foi registrada e publicada nas redes sociais.
Aldir Blanc morreu nesta segunda-feira, 4 de maio, aos 73 anos. Com infecção generalizada em decorrência do novo coronavírus, Aldir estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 20 de abril. Moradores de um bairro da zona sul do Rio homenagearam Aldir. Uma salva de palmas feita pela janela foi registrada e publicada nas redes sociais.

'Hei de torcer até morrer'

Na Ediouro, Pires editou uma antologia de crônicas de Blanc, o livro de aforismo “Quimbas” e também “Vasco – a cruz do bacalhau”.

– A minha total deficiência em futebol era motivo de sacanagem – lembra. – Ele não se conformava que eu não tivesse time.

Em outubro de 1993, Blanc publicou, na revista “Placar”, o poema “É uma doença”, sobre sua paixão pelo Vasco: “Naquela tarde, aos dez anos, não esquecerei: / Fui para a Rua dos Artistas / Me gripei, caí de cama, / Doido, com 40 graus / Encolhido dentro de um pijama / Contraí esta doença: ser Vasco da Gama”.

– O futebol está presente em toda obra do Aldir, sobretudo nas crônicas, onde ele pensava o cotidiano. Não havia como refletir sobre o cotidiano sem passar pelo futebol – afirma Luis Eduardo Veloso, professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), autor da dissertação de mestrado, “Aldir Blanc e o futebol: uma leitura deste esporte num time de crônicas do ourives do palavreado”,

Veloso lembra que, numa crônica, o compositor zombou que quem acusava o futebol de ser pão e circo e prometeu torcer até morrer.

– Ele termina a crônica “Até morrer”, publicada em “Brasil passado a sujo” dizendo: “Futebol é isso – incoerência, farsa, delírio. Por essas e outras é que hei de torcer, hei de torcer até morrer. A torcida brasileira é toda assim, a começar por mim”.