Cultura

Confira dez letras imperdíveis do cancioneiro de Aldir Blanc

Compositor escreveu músicas marcantes ao lado de parceiros como João Bosco, Guinga, Moacyr Luz e Cristóvão Bastos
Aldir Blanc Foto: Marco Antônio Teixeira / Infoglobo
Aldir Blanc Foto: Marco Antônio Teixeira / Infoglobo

RIO — Em meio século de carreira, Aldir Blanc assinou centenas de canções . Foram cerca de 500 letras compostas em parceria com João Bosco , Moacyr Luz , Mauricio Tapajós, Guinga e Cristóvão Bastos, entre muitos outros. Do olhar atento do artista surgiu uma obra que transformava tudo em poesia: a violência gritante das grandes cidades, o cheiro de conhaque do beijo apaixonado de um amante, as mazelas e belezas do Rio, o torresmo e a moela do botequim e até camisinha flutuando pelo rio Maracanã. A seguir, confira dez letras marcantes do artista.

Despedida: Aos 73 anos, morre o compositor e escritor Aldir Blanc

"Dois bombons e uma rosa" (Aldir Blanc)

Faço votos de feliz casamento,

parabéns pra você,

prevaleceu seu bom-senso.

Reconheço que era chato

ser a outra eternamente

com encontros marcados

por coisas do tipo

"eu subo na frente?"

Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, Aldir Blanc deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'
Um dos maiores cronistas das mazelas e alegrias do país, Aldir Blanc deixa 500 canções, entre elas 'O bêbado e a equilibrista' e 'Resposta ao tempo'

Finalmente teu garoto

vai ter um pai de primeira,

você mais segurança

e um pingüim na geladeira.

Na cabeceira um relógio,

a hora mais luminosa,

churrascaria aos domingos

dois bombons e uma rosa

A entrevista: Aos 70 anos, Aldir Blanc respondeu perguntas de Elza Soares, Bethânia e outros artistas e amigos

Apenas quero fazer

a necessária ressalva:

jamais comente o passado,

lembre o conselho de Dalva.

Não há xampu, não há creme

que apague ou que desmarque

da tua pele o meu beijo

fedendo a conhaque

" Tiro de misericórdia" (Aldir Blanc/João Bosco)

O menino cresceu entre a ronda e a cana

correndo nos becos que nem ratazana.

Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha

subindo em pedreira que nem lagartixa.

Borel, Juramento, Urubu, Catacumba,

nas rodas de samba, no eró da macumba.

Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,

Mangueira, São Carlos, menino mandando,

ídolo de poeira, marafo e farelo,

um deus de bermuda e pé-de-chinelo,

imperador dos morros, reizinho nagô,

o corpo fechado por babalaôs.

As melhores frases de Aldir Blanc : 'Sou rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto, nessa ordem'

Baixou Oxolufã com as espadas de prata,

com sua coroa de escuro e de vício.

Baixou Cão-Xangô com o machado de asa,

com seu fogo brabo nas mãos de corisco.

Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas

Com todos seus ferros, com lança e enxada.

E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos

e suas abelhas na beira da mata.

E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira

em seu coração de espinhos dourados.

Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar

e um batalhão de mil afogados.

Iansã trouxe as almas e os vendavais,

adagas e ventos, trovões e punhais.

Oxum-Maré largou suas cobras no chão.

Soltou sua trança, quebrou o arco-íris.

Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guizos

lançando a doença pra seus inimigos.

E Nana-Buruquê trouxe a chuva e a vassoura

Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos.

Exus na capa da noite soltara a gargalhada

e avisaram a cilada pros Orixás.

Exus, Orixás, menino, lutaram como puderam

mas era muita matraca e pouco berro.

E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia,

Zumbi menino Lumumba tomba da raia

mandando bala pra baixo contra as falanges do mal,

arcanjos velhos, coveiros do carnaval.

Erudito e popular: Aldir Blanc foi estrela da crônica do Rio de Janeiro

Irmãos, irmãs, irmãozinhos,

por que me abandonaram?

Por que nos abandonamos

em cada cruz?

Irmãos, irmãs, irmãozinhos,

nem tudo está consumado.

A minha morte é só uma:

Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus...

Veja fotos do compositor Aldir Blanc

Grampearam o menino do corpo fechado

e barbarizaram com mais de cem tiros.

Treze anos de vida sem misericórdia

e a misericórdia no último tiro.

Morreu como um cachorro e gritou feito um porco

depois de pular igual a macaco.

Vou jogar nesses três que nem ele morreu

num jogo cercado pelos sete lados

Entre o torresmo e a moela (Aldir Blanc/Maurício Tapajós)

Envelheci, mas continuo em exposição

A ex-mulher me chama de Sardinha de Balcão

Eu digo sempre que melhor que apodrecer ao lado dela

É ir mofando entre o torresmo e a moela

Porque lá em casa a barra era violenta

Eu padecia entre a mostarda e a pimenta

Agora vivo entre o cavaco e o violão

Lá em casa era entre o cutelo e o facão

Quem acordava entre a meleca e a remela

Prefere a vida entre o torresmo e a moela

De barco entre a tempestade e a piração do leme

Levava beiço do Ecad e bico da Capemi

Falavam mal de mim a sogra e a vizinha

Ai, eu penava entre o modess e a calcinha

Quem se amarrou entre cabresto, rédea e sela

Quer descansar entre o torresmo e a moela

Entrei para a política e votei no Leonel

Acabei entre o Agnaldo e a mãe, via Embratel

Pedi desculpa a um general que me deu na costela

O vice disse outra tolice, não lhe dei mais trela:

Entre o sambódromo e o bicheiro, rei da passarela

Quero é sambar entre o torresmo e a moela

"Nítido e obscuro" (Aldir Blanc/Guinga)

A porcelana e o alabastro

Na pele que eu vou beijar

O escuro atrás do astro

Na boca que me afogar

Os veios que há no mármore

Nos seios de Conceição

E desafeto e mais paixão

E porque sim e porque não

Aldir Blanc e João Bosco: Clássicos da MPB e separação histórica marcaram parceria

Porque em você

O que me prende vive livre

Como tudo que há no espelho

Existe mas não tive

O bambual de ouro no dorso do tigre

O farol de Alexandria varando a solidão

Tu me incendeia e o ciúme entra na veia

A paixão ricocheteia

Sobe inté o coração - e é bão!

Pouco existente feito as perna da sereia

O cavalo de São Jorge, pisando a lua cheia

Igual a chuva que há no fundo da baleia

É tão pouca e formoseia o aguarão do mar

O amor vareia: o primeiro virar areia

O segundo sacaneia

Mas o próximo é ilusão - que bão!

Eu quando choro do olho sai meteoro e fogo

De cada poro um vulcão

É dor capaz de tombar a Via-Láctea no mar

Mas cabe dentro do olho

De um grilo no manguezal

Eu quando rio faz frio de calafrio

As moça tem arrupio e terção

É alegria capaz de acovardar lobisome

E quando mais se espera dela

É aí que ela some

Eu jogo truco, dou troco

Sou truculento e turrão

Bato muito firme

Danço jongo candongueiro

Eu mato a cobra

E dispois exibo o pau pra nós dois

Tu se afeiçoa, faz carinho e me enleia

Eu gosto mas me aperreia

O depender de mulher

É sempre nítido e obscuro o que se quer

"Só dói quando rio" (Aldir Blanc/Moacyr Luz)

Só fico à vontade

Na minha cidade

Volta sempre a ela

Feito criminosa

Doce e dolorosa

A minha história escorre aqui

Há quem não se importe

Mas a Zona Norte

É feito cigana lendo a minha sorte:

Sempre que nos vemos ela diz

Quanto eu sofri

E Copacabana

A linda meretriz-princesa,

Loura mãe de santo

Com sua gargantilha acesa…

Ela me ensinou pureza e pecado,

A respiração do mar revoltado…

Rio de Janeiro, favelas no coração

"Dois pra lá, dois pra cá" (Aldir Blanc/João Bosco)

Sentindo frio em minh'alma

Te convidei pra dançar

A tua voz me acalmava

São dois pra lá, dois pra cá

Meu coração traiçoeiro

Batia mais que o bongô

Tremia mais que as maracas

Descompassado de amor

Minha cabeça rodando

Rodava mais que os casais

O teu perfume gardênia

E não me pergunte mais

A tua mão no pescoço

As tuas costas macias

Por quanto tempo rondaram

As minhas noites vazias

No dedo um falso brilhante

Brincos iguais ao colar

E a ponta de um torturante

Band-aid no calcanhar

Eu hoje me embriagando

De whisky com guaraná

Ouvi tua voz murmurando

São dois pra lá, dois pra cá

"Resposta ao tempo" (Aldir Blanc/Cristóvão Bastos)

Batidas na porta da frente

É o tempo

Eu bebo um pouquinho pra ter

Argumento

Mas fico sem jeito, calado

Ele ri

Ele zomba de quanto eu chorei

Porque sabe passar

E eu não sei

Num dia azul de verão sinto vento

Há folhas no meu coração é o tempo

Recordo um amor que eu perdi

Ele ri

Diz que somos iguais

Se eu notei

Pois não sabe ficar

E eu também não sei

E gira em volta de mim

Sussurra que apaga os caminhos

Que amores terminam no escuro

Sozinhos

Respondo que ele aprisiona

Eu liberto

Que ele adormece as paixões

E eu desperto

E o tempo se rói com inveja de mim

Me vigia querendo aprender

Como eu morro de amor

Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança

Que não soube amadurecer

Eu posso, ele não vai poder

Me esquecer

"O bêbado e a equilibrista" (Aldir Blanc/João Bosco)

Caía a tarde feito um viaduto

E um bêbado trajando luto

Me lembrou Carlitos

A lua tal qual a dona do bordel

Pedia a cada estrela fria

Um brilho de aluguel

E nuvens lá no mata-borrão do céu

Chupavam manchas torturadas

Que sufoco!

Louco!

O bêbado com chapéu-coco

Fazia irreverências mil

Pra noite do Brasil

Meu Brasil!

Que sonha com a volta do irmão do Henfil

Com tanta gente que partiu

Num rabo de foguete

Chora

A nossa Pátria mãe gentil

Choram Marias e Clarisses

No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente

Não há de ser inutilmente

A esperança

Dança na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha

Pode se machucar

Azar!

A esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar

"Valsa do Maracanã" (Aldir Blanc/Paulo Emílio)

Quando eu ficar assim

morrendo após o porre

Maracanã, meu rio,

ai corre e me socorre

Injeta em minhas veias

teu soro poluído

de pilha e folha morta,

de aborto criminoso

de caco de garrafa

de prego enferrujado

dos versos do poeta

pneu de bicicleta

Ai, rio do meu Rio,

Ai, lixo da cidade

de lâmpada queimada

de carretel de linha

chapinha premiada

e lata de sardinha

o castigo e o perdão

o modess e a camisinha

o castigo e o perdão

o modess e a camisinha

Ai, só dói quando eu rio,

Maracanã, meu rio

Maracanã, meu rio

Ai, só dói quando eu rio

"Vida noturna" (Aldir Blanc/João Bosco)

Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos

E alguém me pede fogo - é um dos nossos

Eu sigo na chuva de mão no bolso e sorrio

Eu estou de bem comigo e isto é difícil

Eu tenho no bolso uma carta

Uma estúpida esponja de pó-de-arroz

E um retrato meu e dela

Que vale muito mais do que nós dois

Eu disse ao garçom que quero que ela morra

Olho as luas gêmeas dos faróis

E assobio, somos todos sós

Mas hoje eu estou de bem comigo

E isso é difícil

Ah, vida noturna

Eu sou a borboleta mais vadia

Na doce flor da tua hipocrisia