RIO - A gaveta de Aldir Blanc é esse tipo de lugar: procurando a letra de uma canção gravada, e nunca lançada, ele acabou encontrando outra, totalmente inédita.
A busca foi a pedido de Mariana Baltar. A cantora carioca desejava há tempos gravar um disco dedicado ao letrista de 73 anos. E, claro, queria inéditas. Uma vez “resgatada”, a tal letra esquecida — “A cúmplice das noites”, crônica sobre uma cartomante demasiadamente humana, escrita em 1974 ( leia abaixo ) — ganhou melodia e arranjo de Josimar Carneiro no disco que Mariana lançou recentemente com o grupo Água de Moringa (ele é o violonista do grupo). Esta e as outras nove faixas do disco poderão ser conferidas ao vivo, no primeiro show que a turma apresenta no Rio nesta quarta.
Como Aldir não conseguiu achar a letra de “Os arcos: paixão e morte”, a tal canção que motivou o início das buscas, o jeito foi recorrer a outros envolvidos no trabalho. E a própria gravação acabou encontrada em uma fita de rolo por Rildo Hora, produtor do primeiro disco de João Bosco, de 1973. Foi para aquele álbum, que levava o nome do iniciante compositor mineiro, que a suíte de nove minutos foi registrada em estúdio, e em seguida descartada pela RCA, provavelmente por ser muito longa.
Em 2016: Os 70 anos de Aldir Blanc, o mestre-sala das letras
— Houve uma verdadeira caçada atrás da gravação original — lembra Aldir, por email. — Ela acabou sendo encontrada pelo Rildo Hora nuns arquivos de um sítio. Foi uma tremenda festa.
A história desta obra foi contada aqui no GLOBO em 2016, quando a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, possibilitou que os fãs de João e Aldir (e eles próprios) ouvissem a suíte original . Tudo graças à insistência inicial de Mariana. Ela gravou nova versão e batizou então seu disco com o nome da suíte.
— Fomos encontrar a suíte só na última fita do Rildo. Tinha que ser com emoção! — diverte-se a cantora.
A Lapa e suas assombrações
“Os arcos” é um poema sobre a Lapa e suas assombrações à época do Estado Novo (“Continua atualíssimo”, garante Aldir). Sua versão musicada poderá ser ouvida ao vivo no Rio pela primeira vez nesta quarta. Antes, Mariana e o Água de Moringa a apresentaram em uma turnê que passou por Portugal e França em 2019. Orquestrada na versão original por Luiz Eça, a suíte ganhou arranjo de Josimar para sopros (Rui Alvim), bandolim (Marcílio Lopes), cavaquinho (Jayme Vignoli), violão (Luiz Flavio Alcofra), violão sete cordas (o próprio arranjador) e percussão (André Boxexa).
![Mariana Baltar e o grupo Água de Moringa Foto: Silvana Marques / Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24203484-ca9-28d/FT460B/300/Mariana-Baltar-e-Agua-de-Moringa.jpg)
Mariana convidou o grupo para acompanhá-la no disco pela excelência instrumental conquistada em 30 anos de estrada (celebrados com um disco no ano passado), mas também por conta da intimidade de seus integrantes com a obra de Aldir. Além de Josimar, Vignoli e Alcofra são parceiros do letrista.
— Foi um desafio legal o Josimar fazer o arranjo da suíte. Sempre vimos o Água como uma pequena orquestra brasileira — diz Vignoli, que tem parcerias com Aldir gravadas por gente como Zeca Pagodinho e Walter Alfaiate.
Neste disco, Vignoli emplacou “Oração perdida”, parceria com o letrista e Alcofra que havia sido gravada antes apenas por Valeria Lobão.
— Botar melodia em letras do Aldir que são como crônicas não é uma coisa fácil — conta Vignoli. — Às vezes temos a sorte de ele ligar e declamar pelo telefone, quase cantando. Já dá um caminho.
O disco conta ainda com uma terceira inédita, “Cara e coroa” — parceria de Aldir com Cristóvão Bastos. E Mariana acabou incluindo algumas mais conhecidas, como “Querelas do Brasil” (com Maurício Tapajós) — com autorização de Aldir para incluir Marielle, Amarildo e Maré na listagem de nomes para ilustrar a máxima de que “o Brazil não conhece o Brasil”, imortalizada por Elis Regina.
— Qualquer cantora que vai regravar Elis passa um sufoco, mas achei que tinha uma coerência incluir esta música hoje — avalia Mariana.
É pouco provável que Aldir apareça no show no Centro. Ele anda recluso, mas isso está longe de significar que não vibrou com o disco:
— Idoso quando recebe boa notícia é de que os exames de sangue estão mais ou menos normais. Então, você pode avaliar minha emoção quando ouvi este trabalho. Toda vez que estou mal de saudades dos netos, boto o disco e melhoro!
Em breve Aldir terá mais um motivo para se emocionar. Um documentário sobre sua trajetória, de Hugo Sukman e Marcus Fernando, está em produção. E com ele, quem sabe, apareçam mais inéditas.
Serviço: Onde: Teatro da Firjan Sesi — Av. Graça Aranha 1, Centro (2563-4164). Quando: Hoje, às 19h. Quanto: R$ 34. Classificação: Livre.
A cúmplice das noites
(Letra inédita de Aldir Blanc musicada por Josimar Carneiro)
Quando madame põe cartas,
senhoras sentem tonteiras,
os homens engolem em seco
e se agarram na cadeira.
Se as linhas da mão são lidas,
as virgens tremem de frio,
desmaiam e arranjam desculpas:
“vim de estômago vazio...”
São muitos os que se benzem
diante do casarão
imaginando madame
às voltas com seus segredos:
corujas, sapos, morcegos
fervendo num caldeirão
Outros há que a imaginam
sacrificando animais,
ou - quem sabe - uma criança
raptada em pleno sono
pela Cúmplice das Noites
para horríveis rituais
entre punhais e açoites...
Madame ri, tristemente,
depois que sai, cada dia,
o seu último cliente
O mistério chega ao fim,
Madame rega plantinhas,
Tricoteia, canta valsas,
Toma chá de quebra-pedra
— que faz muito bem pro rim —
Fala com mortos queridos,
Especialmente o marido que tocava bandolim
E aí, às vezes lhe escapa
Uma lágrima, uma só,
(Ai, meu Deus, como era mesmo
Aquele choro do Jacob?)