Passei uma semana vivendo dos restos de comida de restaurantes; valeu a pena?

Durante toda a semana, vivi de marmitas misteriosas como este, entregues por cafés, serviços de delivery e restaurantes de toda Londres. Dentro deles, comida que antes era destinada ao lixo. Em vez disso, resgatei-a usando o Too Good To Go, um aplicativo dinamarquês que está ganhando popularidade, vendendo mais de 120 milhões de refeições no ano passado e se expandindo rapidamente nos EUA [a plataforma ainda não tem versão para brasileiros].

Durante cinco dias, decidi investir meu orçamento semanal de alimentação para comer exclusivamente pelo aplicativo, pagando entre £ 3 e £ 6 [cerca de R$ 21 a US$ 28] por refeições que variam de um punhado de bolos a uma caixa gigante de mantimentos. A meta? Entender o que uma empresa de tecnologia pode me ensinar sobre o desperdício de alimentos na minha cidade.

• Café da manhã: Inglês completo e doces do Hotel Novotel. Custo: £ 4,50 (preço recomendado: £ 16,50)
• Almoço: curry Dahl, nuggets de frango e limonada de framboesa do Leon. Custo: £4,39 (preço recomendado: £12)
• Jantar: nada (estava muito cheia)

Quem abre o aplicativo é apresentado a uma lista de estabelecimentos que têm comida sobrando no momento, ou restaurantes que esperam ter restos em um futuro próximo. É fornecida uma breve descrição do lugar, um preço e um horário. Os usuários pagam pelo aplicativo, mas este não é um serviço de entrega. As sacolas surpresa – os clientes têm apenas uma vaga ideia do que há dentro antes de comprar – devem ser recolhidas pessoalmente.

Comecei minha experiência às 9h30 da manhã de uma segunda-feira, no saguão reluzente do Hotel Novotel, a poucos passos do rio Tâmisa. De todas as opções de café da manhã disponíveis na noite anterior, esta foi a mais conveniente - era no caminho do trabalho e oferecia um horário de coleta que me permitia fazer minha reunião às 10h. Quando digo que cheguei para o Too Good To Go, uma recepcionista de terno acena com a cabeça e gesticula em direção ao bufê de café da manhã.

Esta filial do Novotel é um hotel de £ 200 por noite, mas a equipe não parece relutante com a taxa de entrada de £ 4,50 que paguei em troca das sobras do café da manhã. Uma instituição de caridade para moradores de rua me disse que seus clientes gostam do aplicativo exatamente por esse motivo; comida barata, sem o estigma. Um garçom entrega educadamente minha sacola surpresa de plástico branco com duas caixas de isopor dentro, como se eu fosse qualquer outro convidado.

Abro o pacote em meu escritório. Um está cheio de pequenos folhados, enquanto o outro transborda de um completo café da manhã inglês: dois ovos fritos no topo de uma montanha de ovos mexidos; quatro salsichas disputam espaço com uma multidão de cogumelos. Começo a comer com zelo – um pedaço de ovo frito frio, um bocado de cogumelos, todas as quatro salsichas. Termino com um croissant.

Isso é o suficiente para me fazer sentir intensamente saciada, quase enjoada, então doo os croissants para a cozinha do trabalho e despejo o resto no lixo. Parece um começo decepcionante. Eu deveria estar resgatando alimentos desperdiçados, não jogando-os fora.

• Café da manhã e almoço: pão e bolo do Lumberjack Café. Custo: £3,59 (preço recomendado: £10,50)
• Jantar: curry etíope vegano com pão injera da Light of Africa. Custo: £5,00 (preço recomendado: £15)

Nos dois dias seguintes, vivo como uma coletora de alimentos em minha cidade, moldando meus dias em torno dessas encomendas. Caminho e ando de bicicleta até cafés, restaurantes, mercados, supermercados; para lugares familiares e aqueles que nunca notei.

Algumas sacolas surpresa duram apenas uma refeição, outras podem ser aproveitadas por dias. Na terça-feira de manhã, minha sacola surpresa de £ 3,59 incluiu um bolo pequeno e um pão de massa fermentada levemente estragado, que serve café da manhã por mais três dias. Quando volto ao mesmo café na semana seguinte, sem usar o aplicativo, só o pão custa £ 6,95.

A Too Good To Go foi fundada em Copenhague em 2015 por um grupo de empresários dinamarqueses irritados com a quantidade de comida desperdiçada em buffets do esquema 'coma o que quiser'. A ideia de reaproveitar esses resíduos decolou rapidamente e a missão do aplicativo se expandiu, incluindo restaurantes e supermercados.

Um ano após a fundação da empresa, Mette Lykke estava sentada em um ônibus quando uma mulher lhe mostrou o aplicativo e como ele funcionava. Ela ficou tão impressionada que procurou a empresa para perguntar se poderia ajudar. Lykke é a CEO há seis anos.

“Eu simplesmente odeio desperdiçar recursos”, diz. “E aí estava um conceito 'ganha-ganha-ganha'.” Para ela, os restaurantes saem lucrando porque são pagos por alimentos que, de outra forma, teriam jogado fora; o cliente ganha porque consegue um bom negócio e ao mesmo tempo descobre novos lugares; e o ambiente se beneficia porque, Lykke diz, o desperdício alimentar contribui com 10% das nossas emissões globais de gases do efeito de estufa. Quando os alimentos jogados fora apodrecem em um aterro, libertam metano na atmosfera – domicílios e restaurantes são os dois maiores contribuintes do problema.

• Café da manhã: sobras de torradas do Lumberjack Café.
• Almoço: 2 bolos, 1 muffin e 1 croissant do Clubhouse Café. Custo: £3,17 (preço recomendado: £9,50)
• Jantar: um prato de macarrão com bacon, alho-poró e pesto suspeitamente coerente do Gorillas. Custo: £5,50 (preço recomendado: £15,50)

Mas o aplicativo não me deixa com a impressão de que estou salvando o planeta. Sinto mais como se estivesse em uma caça ao tesouro diária, em busca de alimentos com desconto. Na quarta-feira, o app me leva a um espaço debaixo de uma linha férrea que funciona como depósito do delivery Gorillas. Antes mesmo de eu pronunciar as palavras “Too Good To Go”, um adolescente com uma franja longa emerge silenciosamente do espaço entre as estantes com a sacola da noite: mantimentos, ainda a muitos dias de expirar, que se somam de forma suspeita para criar um refeição completa para duas pessoas.

Por £ 5,50, recebo macarrão fresco, pesto, creme, bacon, alho-poró e um saco de legumes salteados, que meu marido mistura em um único (e delicioso) prato de massa. Parece muito conveniente para ser um desperdício genuíno. Talvez o Gorillas esteja tentando me converter em seu próprio cliente? Quando pergunto à sua controladora, a Getir, como vender alimentos ainda distantes da validade ajuda a combater o desperdício de alimentos, a empresa não responde ao meu e-mail.

Ainda estou pensando em minha experiência com o Gorillas na hora do almoço de quinta-feira, enquanto sigo as instruções do aplicativo até a barraca do mercado de falafel Wowshee, onde outras 14 pessoas já estão em uma fila na rua. Algumas conversas despreocupadas depois, percebo que sou um de pelo menos quatro usuários do Too Good To Good na fila. Ver tantos de nós em um só lugar novamente me faz pensar se os restaurantes estão usando o aplicativo apenas como forma de publicidade.

Mas o proprietário do Wowshee, Ahmed El Shimi, descreve os benefícios do marketing apenas como um “pequeno bônus”. Para ele, o principal atrativo do aplicativo é ajudar a reduzir o desperdício. “Conseguimos vender o produto que iríamos jogar fora seja como for”, diz. “E ao mesmo tempo isso salva o meio ambiente.”

El Shimi, que afirma vender cerca de 20 sacolas surpresa por dia, estima que o uso do app reduz a quantidade de comida desperdiçada pela barraca em cerca de 60%. Quando pago £ 5 por duas porções de falafel – o bastante para almoço e jantar – a empresa recebe £ 3,75 descontando impostos, diz El Shimi. “Não é muito, mas é melhor que nada.”

• Café da manhã: peixe salgado, arroz e legumes da Blessed, recolhidos na noite anterior. Custo: £5,00 (preço recomendado: £15)
• Almoço: falafel e vegetais no pão pita do Wowshee. Custo: £5,00 (preço recomendado: £15)
• Jantar: novamente, o falafel do Wowshee.

Na sexta-feira, último dia de meu experimento, tudo veio abaixo. Dormi mal e acordei tarde. O pão do início da semana está duro como rocha. Como várias minitortas de maçã no café da manhã, que fizeram parte de uma generosa compra de £ 3,09 no supermercado Morrisons, na noite anterior.

Navegando no aplicativo, nada me atrai e, mesmo que agradasse, estou cansada demais para sair de casa e buscar algo. Depois de quatro dias comendo apenas comida desperdiçada, desabo e procuro consolo em ingredientes familiares enterrados em meu armário: dois ovos fritos na minha marca favorita de pão integral com grãos.

O Too Good To Go não serve para sua conveniência. Para mim, o aplicativo foi uma resposta para minha fadiga do almoço no trabalho. Ele me tirou da minha rotina preguiçosa e ao mesmo tempo me ajudou a comer bem - e no centro de Londres - por um orçamento de £ 5. Na fila do falafel, conheci uma colega usuária do aplicativo que me contou como, antes de descobrir o aplicativo, ela comia o mesmo sanduíche do mesmo supermercado no almoço todos os dias. Para pessoas sem acesso a uma cozinha, ele oferece uma conexão com um submundo de sobras quentinhas.

Trata-se de um daqueles raros aplicativos que realmente melhoram a vida para além do seu celular. Mas a empresa poderia fazer um trabalho melhor ainda ao quantificar, para os usuários conscientes, até que ponto as suas contribuições ajudam a combater o desperdício alimentar, e tranquilizá-los de que o sistema não pode ser sequestrado por restaurantes que simplesmente tentam alcançar novos clientes.

Não consigo ver quantas sacolas cada estabelecimento vende por dia ou que impacto o aplicativo está causando na pilha de comida destinada ao lixo. Tudo o que recebo é um número vago que me diz que “evitei” 41 quilogramas de CO2, equivalente a 8.970, sem que me digam o que esse número significa ou como foi calculado.

• Café da manhã: pão, morangos, peras, tortas de maçã e laranjas do supermercado Morrisons. Custo: £ 3,09 (preço sugerido: £ 10)

No dia em que devo terminar este artigo, vou usar mais uma vez o Too Good To Go. Desta vez o destino é uma delicatessen, a 15 minutos a pé do escritório. Saio com uma caixa de isopor de £ 5 - desta vez sem sacola - contendo uma mistura eclética do bufê de saladas e sobras da correria da hora do almoço. Debaixo de uma pilha de legumes, descubro macarrão, arroz, meia batata assada e uma coxa de frango. A aleatoriedade da seleção faz com que pareça comida que realmente teria sido desperdiçada e, satisfeita, ando o mais rápido possível de volta ao escritório para comer.

*Esta história apareceu na edição Julho/Agosto 2024 da WIRED magazine UK. Leia aqui a versão original