Men of the Year

Por Guilherme Henrique (@guicostah)

Os 600 lugares do Teatro Municipal Candinha Dórea, em Itabuna, na Bahia, estavam praticamente lotados na noite de 1º de novembro. Por volta das 20 horas, o rapper Mano Brown, 53, adentrou o palco, ovacionado, para receber o título de doutor honoris causa pela Universidade Federal do Sul da Bahia — um reconhecimento pelas três décadas de atuação no grupo Racionais MC’s, a mais importante formação de rap do país, ao lado de KL Jay, Edi Rock e Ice Blue.

Homenageado por sua “autenticidade e por representar a voz dos moradores da periferia”, segundo a comissão organizadora, o músico teve a trajetória exaltada durante o evento. O jovem negro que cresceu no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, nem sequer terminou o ensino médio. “Nunca fui um aluno concentrado e não gostava de estudar”, lembra, em entrevista à GQ Brasil. Ainda assim, tornou-se um dos principais compositores nacionais ao denunciar a discriminação racial e a violência policial a partir do fim dos anos 80.

Ao longo da conversa, o cantor, eleito Ícone no Men Of The Year 2023 e uma das capas da edição de dezembro, salientou que não é o mesmo de trinta anos atrás. Antes desinteressado, agora se vê capaz de passar horas pesquisando temas que o atraem, como a história do continente africano e suas ramificações culturais e religiosas.

Tudo começou pouco antes da pandemia, quando ele viajou à Bahia para investigar o próprio passado a partir da família da mãe, Ana Soares, natural de Riachão do Jacuípe. A pesquisa pessoal se expandiu e o artista quis dar vazão ao conhecimento. Criou um podcast, o Mano a Mano, em parceria com o Spotify, que, durante quatro temporadas e 64 episódios, recebeu nomes como Glória Maria, Regina Casé e Emicida e virou um dos mais ouvidos do país.

Gilberto Gil chamou Brown de “neoerudito” no encontro que tiveram em julho. O “Mano a Mano” faturou em 2023 o prêmio de melhor podcast pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), repetindo o feito de 2022. As homenagens, no entanto, não deixam o rapper deslumbrado.

“O nosso maior prêmio é colocar os pretos para estudar. Essa é a luta dos Racionais, do Sabotage, do Facção Central, do MV Bill, do Dexter, do RZO, do Djonga, do Emicida e de tantos outros. O nosso maior prêmio; o resto é disfarce e teatro. Roupa da Louis Vuitton, Gucci, isso vira entretenimento, mas não a finalidade. Precisamos colocar o nosso povo no caminho do conhecimento, porque essa é a riqueza que vai nos libertar.”

O rapper paulistano é líder do Racionais MC's, maior grupo de rap do país — Foto: Pedro Dimitrow
O rapper paulistano é líder do Racionais MC's, maior grupo de rap do país — Foto: Pedro Dimitrow

Confira a íntegra da entrevista com o rapper

Em um dos episódios do Mano a Mano, você falou sobre encontrar documentos de parentes antigos na Bahia. Ao mesmo tempo, tem estudado sobre ancestralidade. Como as duas coisas se conectam?
Um mês antes de começar a pandemia, viajei à Bahia, em Riachão do Jacuípe, terra da minha mãe. Ouvi algumas coisas sobre a possibilidade de descobrir quem era meu pai, porque havia um homem com quem minha mãe tinha se relacionado em um período condizente com minha idade, e achei que realmente poderia ser ele. Fiz o teste de DNA e deu negativo. Minha mãe já tinha morrido, e o que ela me contou sobre a minha história era muito pouco. Estudei em um colégio adventista durante sete anos, e lá a grande maioria das crianças tinha família, com pai, mãe, irmão, casa própria e carro. Fui criado em outra realidade, na qual raras eram as famílias com homem dentro de casa. Quando viajei à Bahia, fiquei curioso para saber quem era meu pai, uma curiosidade que nunca tive, até por certa amargura. Preferi negar a existência dele a me frustrar ao procurá-lo. E o fato de minha mãe elogiá-lo também não ajudava em nada.

O que você carrega desse menino que estudou em colégio adventista?
Tristeza.

Já fez algum teste de ancestralidade ou tem vontade de fazê-lo?
Já fiz. Deu divisão meio a meio entre África e Europa. Apareceu uma mancha grande na Península Ibérica. O lado africano veio da região da Etiópia e do Sudão. Quando saiu o resultado, lembrei de ter lido algo na Bíblia sobre essa área e os kush, que depois descobri ser um povo da pré-história. Fiquei curioso para entender melhor e comecei a estudar teologia, sobretudo a parte racial, para saber como o negro entra na Bíblia. Vou conhecendo a história e percebo que a África tem muito mais a ver com a gente do que imaginamos.

Como você estuda? Leitura? Vídeo?
Para falar a real, já nem enxergo muito bem para ficar lendo de óculos. Fico mais na internet, porque consigo ouvir enquanto faço outras coisas. Volto na mesma aula umas dez vezes, porque estudo por conta própria e não tenho limite de horário. Se gosto do assunto, fico o dia inteiro pesquisando. Nunca fui um aluno concentrado na escola e não gostava de estudar. Era péssimo. Só que, agora mais velho, descobri que sou aplicado, não tenho preguiça e quero aprender o máximo possível.

Você já viajou para a África?
Não, mas vou em 2024. Preciso visitar Angola, Moçambique e Cabo Verde. Quero conhecer o leste do continente também. O brasileiro é formado por negros que vieram da parte ocidental, como Nigéria, Benin e Congo, mas também por uma parcela do Sudão e do sul da Etiópia, que partiram para a Bahia.

Gilberto Gil o apelidou de “neoerudito”. Gostou?
Mano, eu nem sabia o que era isso. Dá até medo, porque tenho o Gilberto Gil como referência máxima na cultura negra brasileira. Ouvir isso dele me tira do chão e me desequilibra. Não vou conseguir ser o Mano Brown de sempre e não posso abraçar essas ideias (risos). Tem que manter a rua. Levar o que aprendeu para a rua e o que aprendeu na rua não se pode esquecer.

Você recebeu o título de doutor honoris na Bahia e na Unicamp. Estar em espaços acadêmicos ganhou relevância para você. Por quê?
Porque essa conquista não é nossa, mas de muita gente que lutou para que o tema se tornasse relevante. Os Racionais criaram a música, mas o movimento de colocar o grupo na universidade foi feito pelo nosso povo. Mais do que estar lá nessas duas oportunidades, o importante é ver os meus lá dentro. Eu, Kleber (KL Jay), Edi Rock, Ice Blue, a nossa felicidade é ver a faculdade cheia de preto, debatendo as coisas da nossa raça, independentemente de quem será premiado. Fico lisonjeado pelo reconhecimento, mas trata-se de uma conquista coletiva, que inclui todo o movimento do rap. Para o aluno negro, ter ímpeto e vencer o medo de tentar entrar na faculdade já se mostra uma conquista. Depois, existe a dificuldade de se sentir parte daquele ambiente. Na Bahia, havia uns 500 alunos negros, cotistas, ex-presidiários. Essa é a luta dos Racionais, do Sabotage, do Facção Central, do MV Bill, do Dexter, do RZO, do Djonga, do Emicida e de tantos outros. O nosso maior prêmio; o resto é disfarce e teatro. Roupa da Louis Vuitton, Gucci, isso vira entretenimento, mas não a finalidade. Precisamos colocar o nosso povo no caminho do conhecimento, porque essa é a riqueza que vai nos libertar.

Mano Brown busca nos estudos o conhecimento sobre si e a história do povo preto — Foto: Pedro Dimitrow
Mano Brown busca nos estudos o conhecimento sobre si e a história do povo preto — Foto: Pedro Dimitrow

Recentemente, viralizou um vídeo seu em uma escola estadual de São Paulo cantando “Vida Loka Parte 1”. Rap, trap e funk têm conseguido dialogar com os mais jovens em busca dessa conscientização sobre raça, por exemplo?
Acredito que sim. Rap e trap têm falado sobre o orgulho negro e a nossa identidade. O funk cumpre um papel importante também. Os funkeiros estão se conscientizando sobre vários aspectos. Não podemos esquecer que eles também são vítimas, moleques que venceram fazendo música e não tiveram acesso à faculdade. Eles também vivenciam processos de aprendizado, como eu passei na idade deles. Sou um cara otimista nesse sentido, e acho que vivemos algo irreversível com o Brasil na vanguarda da discussão racial. Muita gente plantou a semente e eu fui um dos que regaram. A próxima geração de negros precisa ser melhor que a nossa, e não falo isso em autodepreciação. A gente lutou para que os pretos que vierem tenham mais tempo para pensar

Esses dias você postou uma foto em Ilhéus, na Bahia, comemorando o fato de não pensar em nada. Qual a importância do ócio criativo?
Aquilo ali durou duas horas no máximo. Depois daquele momento, fui receber o prêmio e saí da universidade com a mente carregada de emoção, gratidão e sabendo que a responsabilidade tinha aumentado muito. Doutor, mano! Nunca mais posso ser pego com maconha; documento do carro não pode atrasar e, se alguém me xingar, não posso revidar. É a minha vida tomando uma direção que ainda não conheço. Precisarei aprender a viver assim. Os outros falaram que agora sou doutor. Mas o que ele faz?

No episódio do podcast com a Conceição Evaristo, há uma fala sobre como o homem negro tem dificuldade em demonstrar sensibilidade. Por quê?
Quando se vive em uma guerra constante, fica difícil demonstrar sensibilidade. Basta observar a figura do Mano Brown, aquela que as pessoas olham e dizem: “não gosto, é arrogante”, mesmo sem me conhecer. O mundo é intolerante conosco. O branco estar de cabeça erguida é normal, mas o preto não. Sinto isso pessoalmente, como se precisasse andar com um atestado de merecimento pelos prêmios que recebo. Poucos são os negros que conseguem fugir do estigma de valentão da quebrada para virar o cara inteligente que cuida da própria vida. Admiro quem conseguiu escapar disso cedo na carreira.

Pode dar um exemplo?
O Emicida. Nunca quis ser o valentão, e isso o fez enxergar a vida de uma maneira ampla. E tem mais: a partir dele, o rap mudou. Precisava aparecer um cara com essa visão. O gênero estava asfixiado, e os Racionais sobreviviam com pouco ar. Eu estava na favela vivendo e analisando a transformação social, política e musical. Ali, em 2009, 2010, o povão consumindo, com outra perspectiva, e as ideias que a gente cantava nos anos 90 não faziam mais parte da vida.

Você mudou?
Não sou o Brown de trinta anos atrás. Carta de alforria foi assinada em 1888. E não vem apontar o dedo dizendo que me vendi para o sistema. Para com isso, pelo amor de Deus. Me vendi para quem?

O que você mais tem ouvido do público nos shows dos Racionais?
Isso está foda, porque agora é tudo festival. Não existe mais o contato de antigamente. Estamos perdendo a chance de analisar o país se movimentando por meio dos shows.

Isso é bom ou ruim para a música? Entendo que essa atmosfera dos festivais é, no mínimo, discutível.
Discutível é um bom termo, porque pode ser que esse novo formato seja aquele que salvará a indústria. Festivais, multidões, camarotes, classes sociais bem delimitadas dentro do baile. Show rolando e o pessoal de costas para o palco no camarote tirando selfie, enquanto aquele que realmente gosta do seu som mal consegue ver o palco. É a transformação no mundo da música, que agora acontece mais na internet e menos no corpo a corpo, como era nos anos 90 e 2000. A gente fumava maconha na rua e era tirado de vagabundo, mas é no beco que você sabe o que vai acontecer, o que o povo quer e o parâmetro de sonho do moleque.

O último álbum dos Racionais, Cores e Valores, é de 2013, e o Ice Blue disse em uma entrevista que um novo disco pode sair em breve.
A fatídica entrevista...

Como esse intervalo de dez anos influencia as letras do grupo para esse possível trabalho?
Muita coisa mudou e, conforme os Racionais ficam mais velhos, escrever vai se tornando mais difícil. Não é tudo que queremos cantar novamente, já deu a cota. Querem transformar o rap em religião, e isso está errado. A música da liberdade é o rap, então por que tem um pessoal no segmento querendo ser doutrinário e dominar as mentes como se elas estivessem em uma prateleira?

Por que é mais difícil escrever hoje?
Porque o meu critério se transformou e estou mais exigente comigo mesmo. Crio minhas coisas e aprecio o momento. Será diferente (o álbum), porque também sei que igual aos Racionais não há e não vai haver. Nem melhor nem pior, mas somos diferentes. Será um som que me deixa com vontade de continuar. Qualquer situação que me obrigue a fazer aquilo de que não gosto é como se eu estivesse trabalhando outra vez como office boy, batendo cartão às 8 da manhã.

Mano Brown é autor de sucessos do rap brasileiro, como "Fórmula Mágica da Paz" e "Jesus Chorou" — Foto: Pedro Dimitrow
Mano Brown é autor de sucessos do rap brasileiro, como "Fórmula Mágica da Paz" e "Jesus Chorou" — Foto: Pedro Dimitrow

Você está estudando inglês. Pensa em cantar em outro idioma?
Acabei de gravar uma música em espanhol. La Plata, um feat com October London. Misturo espanhol, português e inglês. É a junção da América.

Brown, e a moda? Qual é a importância da roupa no lance da autoestima?
A roupa não vai resolver nada, é só um anestésico. E não é algo de fácil acesso, não podemos brincar com isso. “Ah, todo mundo precisa usar Armani.” A vida não é assim. Muita gente gosta, beleza, mas não vai deixar de comer e beber para vestir uma grife. Exaltar isso soa até desproporcional para a realidade do nosso povo. Sempre falei sobre marcas, sonhos, e a molecada dá um jeito, mesmo com pouco dinheiro. “É necessário sempre acreditar que o sonho é possível”, como cantamos em “A Vida É Desafio”, mas com responsabilidade.

Na sua conversa com Baco Exu do Blues e Rincon Sapiência, discutiu-se muito sobre se cuidar mentalmente e fazer terapia. Isso é um tabu entre as pessoas do seu convívio?
Eu mesmo não tenho coragem de ir à terapia, apesar de já terem me indicado. Sou um baú de segredos, mano. Não sei como seria isso. Acho que nem existiria o Mano Brown se eu fosse emocionalmente resolvido. Uma amiga me disse que tenho energia caótica. Nem bom nem ruim, mas caótico, assim como Exu.

Como é ser tão exaltado?
Há muita crítica também. Dizem que ganhei o prêmio de honoris causa como um favor do Lula por apoiá-lo na eleição. Recebo críticas de evangélicos, bolsonaristas e até mesmo amigos que envelheceram e acabaram caretas. Mas é isso, as pessoas mudam. Eu também mudei, porque se continuasse com o pensamento de quando tinha 20 anos não teria chegado nem aos 30, muito menos aos 53. Eu não tinha cabeça para ser nada, e não falo isso por falsa modéstia. Vejo muitos dos nossos vivendo a mesma situação e a sociedade os enxerga como preguiçosos. Eu fui esse cara sem luz nenhuma. Um menino bom assediado pelo mal.

E hoje você é a referência.
Continuarei sendo o mesmo cara. E talvez o mesmo cara não seja o doutor que as pessoas esperam, porque se trata de um comportamento que não condiz com esse título. Sou o “doutor do caos”, morô? Mas vou melhorar diariamente para honrar esse prêmio, porque isso não é brincadeira. A minha vida mudou e não quero errar.

"Objetivo é pôr os pretos para estudar", diz Mano Brown ao analisar qual deve ser o foco dos rappers — Foto: Pedro Dimitrow
"Objetivo é pôr os pretos para estudar", diz Mano Brown ao analisar qual deve ser o foco dos rappers — Foto: Pedro Dimitrow

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