Luiza
Publicidade

Por Por Luiza Brasil (@mequetrfismos); Ilustração Domitila de Paulo


Querida Dona Ivone Lara, antes de tudo, de onde a senhora estiver, peço as bênçãos para as minhas ancestrais! Lembro que a primeira vez que ouvi a música “Sorriso Negro”, composição de Adilson Reis dos Santos, Jair Carvalho e Jorge Philomeno Ribeiro, foi na sua voz:

“Um sorriso negro/
Um abraço negro/
Traz felicidade/
Negro sem emprego/
Fica sem sossego/
Negro é a raiz da liberdade”.

“Mesmo diante de tantos desafios, viramos sementes” (Foto: Arte Domitila de Paulo) — Foto: Glamour
“Mesmo diante de tantos desafios, viramos sementes” (Foto: Arte Domitila de Paulo) — Foto: Glamour

Ao ouvir aquele sambinha que deu nome ao seu álbum de compasso lento de 1981, com versos fortes e retumbantes, pensei: como uma música com palavras simples e rimas ingênuas pode se tornar hino para a negritude brasileira? A resposta é simples: a mensagem é um levante para a nossa autoestima. Quanto tempo de nossas vidas vimos nossa imagem nos livros de história sendo associada apenas ao açoite? Quando representados na mídia tradicional, éramos exotificados e ridicularizados na imagem do “malandro bebum”? E para nós, mulheres negras, como era ver o corpo ser exemplar apenas na hipersexualização, como se fôssemos permissivas aos abusos?

Em 2020, como a senhora já deve saber por aí, ser negre no Brasil ainda não é fácil! Além de todas as consequências do racismo estrutural de um país que “aboliu” a escravização há apenas 132 anos, lidamos com um governo que subestima a pauta and com as redes sociais, que eram aliadas e estão se tornando vilãs invisíveis.

Por um acaso, entreouvido por aí, já escutaste falar em “shadowban”, Dona Ivone? Calma, vou te explicar. Sabe aqueles aplicativos de celular para fazer fotos inspiradoras, vídeos engraçadinhos que fazem com que crianças, jovens e adultos fiquem no celular o tempo todo mostrando o seu dia a dia? Então, eles estão bloqueando o conteúdo, fazendo o engajamento de publicações reduzir, principalmente de ativistas sociais, de gênero e raciais, a senhora acredita? Esse tal de algoritmo tem feito uma bagunça danada nos nossos pensamentos!

“Negro é uma cor de respeito/
Negro é inspiração/
Negro é silêncio, é luto/
Negro é a solidão/
Negro que já foi escravo/
Negro é a voz da verdade/
Negro é destino, é amor/
Negro também é saudade”.
E por falar em saudade, sim,

D. Ivone, muitas mães pretas ainda choram a morte prematura de seus filhos. Segundo relatório produzido pela Rede de Observatórios de Segurança, publicado em julho de 2020, os negros são 75% dos mortos pela polícia e, entre as vítimas de feminicídio, somos 61%. Porém, esses números, sinônimos de dor e sofrimento pela partida de João Miguel, Ágatha Félix e todas as vidas negras que são ceifadas a cada 23 minutos, não aparecem apenas como mais uma estatística. Agora, ganham as ruas com gritos por justiça e por medidas de ordem práticas para a construção de uma sociedade antirracista.

Nem tudo está perdido! Sabe uma das coisas mais inspiradoras de todo esse movimento “Vidas Negras Importam”? É que, mesmo diante de tantos desafios, viramos sementes e, quando árvores, somos frondosas! Da luta e resistência de mulheres como a senhora, Dandara dos Palmares, Elza Soares, Lélia Gonzalez, Zezé Motta, Benedita da Silva, Tereza de Benguela, Ruth de Souza, Zileide Silva, Carolina de Jesus, Antonieta de Barros e Marielle, surgiram Djamila Ribeiro, Monique Evelle, Marta, Dríade Aguiar, Liniker, Samantha Almeida, Luanda Vieira, Mahmundi, Camilla de Lucas, Igi Ayedun, Diane Lima, Magá Moura, Gabb Cabo Verde, Domitila de Paulo e eu, Luiza Brasil, entre tantas outras que estão sendo o que querem, inventando seus lugares na sociedade.

Pois é, Dona Ivone Lara, estamos em uma construção de mundo para que mais “joias raras” como o seu corpo e o seu legado ocupem espaços, alcancem posições de destaque, não se percam na invisibilização seletiva e acolham dentro de si a importância do sorriso e da felicidade enquanto conquista e liberdade.

@mequetrefismos Luiza Brasil é jornalista, fashionista, crespa assumida e ativista racial. Aqui, na coluna Caixa Preta, compartilhará insights sobre moda, comportamento y otras cositas más... (Foto: Arquivo Pessoal) — Foto: Glamour
@mequetrefismos Luiza Brasil é jornalista, fashionista, crespa assumida e ativista racial. Aqui, na coluna Caixa Preta, compartilhará insights sobre moda, comportamento y otras cositas más... (Foto: Arquivo Pessoal) — Foto: Glamour
Mais recente Próxima Luiza Brasil: "Sobonfu, conte comigo para tudo!"
Mais de Glamour