Mulheres da nossa época

Por Louise Bragado, Época NEGÓCIOS


Patricia Hill Collins é uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos Estados Unidos e no mundo — Foto: Artur Renzo/Divulgação
Patricia Hill Collins é uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos Estados Unidos e no mundo — Foto: Artur Renzo/Divulgação

Uma das mais influentes pesquisadoras do feminismo negro nos Estados Unidos e no mundo, Patricia Hill Collins defende a educação crítica como uma das ferramentas de transformação social. "A inovação e o pensamento crítico é que movem a sociedade para frente. Isso que é bom para um país - quando você tem cidadãos educados para criticar, questionar e criar soluções", afirma Hill Collins, que é professora emérita de Sociologia da Universidade de Maryland e ex-chefe do Departamento de Estudos afro-Americanos na Universidade de Cincinnati.

Uma atitude crítica não está restrita apenas à comunidade escolar - pais, professores, alunos e pesquisadores -, mas a toda a sociedade. No mundo corporativo, por exemplo, ainda há muito o que fazer para que as empresas reflitam a real diversidade presente na sociedade brasileira. "Se a cada ano você contrata os mesmos dez homens brancos que contratou no ano anterior, o que pode fazer de diferente?", questiona a educadora.

Autora dos livros Pensamento Feminista Negro, Interseccionalidade, em co-autoria com Sirma Bilge, e Bem mais que ideias - A interseccionalidade como teoria social crítica, publicados no Brasil pela Editora Boitempo, Hill Collins está no país desde meados de maio a convite do Programa de Pós-Gradução em Ciências Sociais da EFLCH/Unifesp, com apoio da FES Brasil, Reconexão Periferias - FPA, Fundação Tide Setubal e Fulbright Brasil. Ministrou aulas abertas no campus Guarulhos da Unifesp sobre interseccionalidade, solidariedade política, raça, gênero e violência, entre outros temas.

Também participou de painel na Feira do Livro de São Paulo e estará presente na segunda edição do Festival LED, evento gratuito realizado pela Globo e pela Fundação Roberto Marinho, em parceria com a plataforma Educação 360 – Conferência Internacional de Educação, da Editora Globo. O festival, cujo tema deste ano é Educação, começa nesta sexta-feira (16) e vai até amanhã, no Museu do Amanhã e no MAR, no Rio de Janeiro. No evento, Hill Collins vai participar do encontro "Educação crítica: uma janela para novas possibilidades", com a apresentadora do Saia Justa e cantora Larissa Luz.

"Esta é minha viagem mais longa ao Brasil. Estou aqui há um mês, trabalhando em questões sobre educação crítica com os estudantes da Unifesp, que são maravilhosos, inteligentes e cheios de energia, e também com os membros do comitê da faculdade", contou, em entrevista exclusiva a Época NEGÓCIOS. Na conversa, a professora e socióloga fala sobre educação crítica, a influência do educador brasileiro Paulo Freire em seus estudos, interseccionalidade, pensamento feminista negro e o papel das empresas na promoção de equidade racial e de gênero. Confira a seguir os principais trechos.

Época NEGÓCIOS - O tema do seu painel no festival LED é "educação crítica". Quais são os fundamentos de uma educação crítica? Qual a diferença para a educação convencional?

Patricia Hill Collins - Uma educação crítica prepara as pessoas para entender o mundo em que elas estão, para refletir se é este o mundo em que querem estar, e para entrar em ação. É uma educação que empodera as pessoas, e não apenas despeja conceitos para que se encaixem na sociedade existente. A educação crítica estimula o pensamento crítico para que se construa uma nova sociedade e um novo jeito de viver.

Você também vai abordar a influência do educador brasileiro Paulo Freire em seus estudos sobre racismo. Como o trabalho de Paulo Freire conversa com o trabalho de Patricia Hill Collins?

O livro "Pedagogia do oprimido" foi muito importante para mim. Eu estava estudando para me tornar uma professora e minha questão central era 'como seria uma educação de qualidade para a juventude negra nos Estados Unidos?' Que tipos de perguntas deveríamos fazer, e como podemos pensar fora da caixa em termos de educação? Encontrei o livro, que argumentava que pessoas de grupos oprimidos precisam de uma educação na qual podem desenvolver uma alfabetização crítica em relação à sociedade em que vivem. Ele estava falando sobre como a análise crítica da sociedade é um caminho para a liberdade como indivíduo e como grupo. É uma ideia muito poderosa.

Quando aprendi mais sobre Freire, que ele era brasileiro e havia escrito "Pedagogia do oprimido" em exílio, e que o livro não havia nem mesmo sido publicado em português inicialmente, sendo publicado em outras línguas, considerei aquelas ideias ainda mais poderosas. Porque ele era alguém que estava vivendo o seu material, o seu trabalho. Ele estava dizendo algo tão perigoso e poderoso que não poderia ser dito nem mesmo em seu país de origem, considerando o que estava acontecendo naquela época no Brasil.

Alguns grupos de extrema direita consideram Paulo Freire uma espécie de "inimigo", embora ele seja um educador reconhecido internacionalmente e patrono da educação brasileira. Por que o pensamento crítico é considerado tão perigoso por alguns setores da sociedade?

A questão é que alguns grupos mantêm seu poder garantindo que outras pessoas não possam pensar criticamente, e não reconhecem que a inovação e o pensamento crítico é que movem a sociedade para frente. Isso que é bom para um país - quando você tem cidadãos educados para criticar, questionar e criar soluções para os problemas sociais. Mas se você está preocupado em preservar seu próprio poder, ou se está preocupado que alguém desafie seu modo de pensar, ou, ainda, considera que você está certo e todos os outros estão errados, então é muito difícil ouvir alguém que desafia você.

Qualquer ideia que desafie o poder já organizado pode ser muito ameaçadora, mesmo que ela não esteja tentando fazer isso. Não acho que as pessoas que são pensadores críticos estejam dizendo "queremos destruir tudo". Eles podem estar dizendo "podemos trabalhar juntos para resolver o problema". Mas, para isso, você tem que ter espaço para a conversa crítica, onde você discute e leva a sério os pontos de vista um do outro, e é assim que você tende a levar as soluções adiante. Por isso que Paulo Freire pode ser considerado muito ameaçador. Ele é poderoso, e suas ideias são poderosas e ameaçam as pessoas que se preocupam apenas consigo mesmas.

É possível exercitar o pensamento crítico na vida cotidiana?

Com certeza. Na realidade, se você está em situações de perigo, isto é, quando o fato de você dizer algo pode colocá-lo em perigo, ou até matá-lo, você encontra maneiras muito sofisticadas de ser crítico. Pessoas de grupos oprimidos têm todos os tipos de linguagem em código. Quando eu era estudante, na 6ª série, um livro trazia um capítulo sobre escravização, e uma linha dizia: "Mas os escravizados eram felizes, e sabemos disso porque eles cantavam o tempo todo". Aquelas canções não se tratavam de felicidade, eles estavam sempre codificando mensagens nessas canções, era uma resistência em código. Eu sabia que aquele livro estava errado, mas eu não sabia como dizer isso quando estava no ensino fundamental. Então, isso que é aprender a pensar por si mesmo. O grande pensador Malcolm X disse algo fundamental: "A coisa mais importante que você pode fazer é aprender a pensar por si mesmo". Portanto, pensar criticamente na vida cotidiana é sempre pensar por si mesmo.

Anteriormente, você mencionou inovação, que está diretamente relacionada à diversidade e é uma preocupação crescente das empresas. Qual o papel das organizações na promoção da equidade racial e de gênero?

As empresas precisam se dar conta de que, quando você não tem talentos diversos trabalhando para você, simplesmente não se tem as melhores pessoas. Porque quando você tem uma força de trabalho diversa, você acessa as ideias e a inovação que precisa para melhorar. Se a sua equipe tem dez pessoas que são exatamente as mesmas, que frequentaram as mesmas escolas, viveram nos mesmos bairros e até mesmo se parecem muito fisicamente, elas pensam da mesma forma e não conseguem enxergar os erros umas das outras, porque são os mesmos erros. E, então, não conseguem enxergar possibilidades para a empresa, porque não ocorre a elas.

No Brasil, 90% dos CEOs são homens brancos. O que falta para uma mudança efetiva de cenário, especialmente nas posições de liderança?

Estamos em um momento em que pessoas que estiveram separadas por um longo período de tempo estão agora juntas, compartilhando espaços - pensando em setores da indústria que não empregavam mulheres, ou pessoas negras, ou pessoas da comunidade LGBTQ+. Estamos em um momento de transição, no sentido de realmente entender o que significa ter uma força de trabalho diversa. Então, ainda estamos contando nos dedos, se perguntarmos para as empresas "quantas pessoas negras você emprega, quantas mulheres emprega?". Ainda há aquele sentimento de que é algo que precisa ser forçado.

O que precisamos é de uma visão em que cada liderança na companhia diga: "Penso que podemos ser uma companhia melhor se tivermos mais pessoas que efetivamente nos tragam diferentes perspectivas". Isso em qualquer setor -- telecomunicações, moda... Traria uma grande variedade de ideias inovadoras, mais rápidas, mais baratas, em novos mercados.

Eu diria para as empresas que estão pensando nisso que, em vez de ficarem com medo, ou preocupadas em como vai funcionar, vocês deveriam estar pensando em maneiras de encontrar os melhores talentos para as demandas que precisam, e então se perguntar: "As regras que estamos usando para recrutar talentos são as melhores? Estamos procurando nos lugares certos, fazendo as perguntas certas?" Se a cada ano você contrata os mesmos dez homens brancos que contratou no ano anterior, o que pode fazer de diferente? Não porque esses dez homens brancos sejam pessoas ruins, mas porque a atitude em si é parcial, limitada. Como empresa, você pode fazer melhor.

Uma das suas obras mais conhecidas, "Pensamento feminista negro", é um clássico dos estudos feministas negros. Pode falar sobre os pontos de convergência entre o feminismo negro nos Estados Unidos e no Brasil?

No meu entendimento, basicamente, as condições que mulheres negras enfrentam no Brasil e nos Estados Unidos são muito similares. São histórias muito semelhantes em termos de história da escravização e do ponto de vista de compartilharem uma cultura africana, além da opressão de gênero, porque o racismo não é isento de gênero - ele assume formas específicas de gênero para as mulheres, em termos de violência. Por outro lado, são histórias muito diferentes do ponto de vista da história colonial, que nos Estados Unidos terminou antes. Então, as mulheres negras estadunidenses e brasileiras enfrentam os mesmos problemas, mas com experiências diferentes. Uma coisa que vejo como significativamente diferente tem a ver com a retenção de uma visão de mundo africana no Brasil. Eu acho que as sensibilidades são as mesmas nos Estados Unidos, mas não houve um evolutivo histórico reivindicando saberes africanos ou mesmo cultos religiosos africanos, como o candomblé. Quando venho ao Brasil, é muito diferente para mim, e, ao mesmo tempo, é muito familiar em termos dos problemas aqui e de como as pessoas abordam esses problemas.

Seu livro mais recente lançado no Brasil, "Bem mais que ideias" (2019), apresenta a interseccionalidade como uma teoria social crítica. O que significa, hoje, pensar "interseccionalidade"?

Bem mais que ideias foi escrito porque, à medida em que "interseccionalidade" se tornou mais conhecido como um termo de poder, todo mundo estava usando, e eu estava encontrando pessoas dizendo: "Em minha pesquisa, eu uso a teoria interseccional", e eu pensava: "É mesmo?". Então, eu olhava para as referências do estudo e a pessoa tinha lido um artigo e assumiu que entendeu do que se trata interseccionalidade. Meu ponto não é citar um ou outro artigo, mas o fato de rapidamente alguém assumir que algo é interseccional sem antes fazer o trabalho que precisa ser feito no embasamento de uma teoria social crítica, isto é: pensar sobre o que é ser crítico, pensar sobre a análise crítica, pensar sobre como uma teoria precisa ser crítica.

As pessoas passaram a usar o termo porque as ajudava a serem publicadas, porque era uma tendência. Eu pensei: não, não. Preciso escrever sobre interseccionalidade. Sou a pessoa que está na posição histórica, educacional e de capital cultural para fazer isso, então fiz. O livro foi uma maneira de dizer: "Você terá que ler todos esses livros antes de assumir essa posição de novo", e de proteger as pessoas que estão trabalhando nisso.

Então, interseccionalidade é isso, precisamos falar sobre as intersecções de onde estamos. Existem muitos projetos interseccionais em muitos lugares, que não são apenas sobre brancos e negros, podem ser sobre diferenças religiosas, de idade. Digamos que você quer ter uma agenda antirracista. Você não pode apenas falar sobre raça, porque raça afeta homens e mulheres de maneira diferente, ou adultos e crianças de maneira diferente. Meu próximo livro começa falando sobre as pessoas que fazem um trabalho anti-violência e que estão chegando na interseccionalidade, porque perceberam que é uma forma útil de pensar violência na intersecção com o racismo.

Pode-se dizer que o mesmo aconteceu com o termo "empoderamento"?

Sim. É um ótimo exemplo. Quando o termo "empoderamento" é usado para vender produtos, ele se afasta totalmente da noção de empoderamento coletivo. E aí voltamos aos negócios. A empresa usa aquela linguagem e convence as pessoas que ressoam com essa linguagem de que algo que elas gostam significa a mesma coisa que empoderamento, e elas podem não perceber. Então, se sentem empoderadas porque estão usando um batom. Espere um minuto, é exatamente isso? De forma alguma. Empoderamento se trata do empoderamento do indivíduo dentro do contexto do empoderamento do grupo, ambas as coisas. É algo muito diferente de despir o indivíduo, que se torna um consumidor, torna-se um amontoado de características que você usa para que possa, de alguma forma, comercializar algo para aquela pessoa, e ter um mercado segmentado.

Minha próxima luta é pelas palavras "família" e "comunidade", porque são palavras que estão sendo utilizadas para dizer, por exemplo, "minha família é melhor". Você não pode usar essa palavra para alegar que existe uma família universal, e certamente não pode usá-la para atacar famílias que não são como a sua.

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