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Por Depoimento A Mel Meira; Fotos Gui Urban; Image Dealers/Divulgação


Com mais de vinte anos de experiência, Eli Iwasa é uma figura extremamente ativa e relevante na cena da música eletrônica no Brasil. Inspiração para muitas mulheres do mercado, que ainda é predominantemente masculino, a DJ e empresária paulistana continua mais forte do que nunca, provando que os padrões sexistas da indústria não têm mais espaço. "Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível é muito poderoso", diz. Além disso, por conta da pandemia, ela se viu diante de um dos maiores desafios da sua carreira. Sem poder fazer eventos, festas ou apresentações, ela mergulhou em um profundo processo de autoconhecimento para, enfim, enxergar a sua força. Aqui, ela compartilha um relato sensível sobre tudo isso e mais um pouco:

"Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível é muito poderoso" (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour
"Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível é muito poderoso" (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour

"Nasci em São Paulo, em uma família de descendentes de japoneses, e recebi uma criação rígida e conservadora. Não havia artistas entre os Iwasa ou Komatsu. Todos escolheram profissões bem tradicionais, como meu pai tanto sonhou para mim e para meu irmão. Enquanto minha mãe nos dava asas para sonhar, meu pai desejava que eu assumisse os negócios da família. Mas, contrariando todas expectativas, a boa filha e aluna se tornou uma adolescente rebelde, que anos depois, descobriu o universo da música eletrônica, os clubs, as raves... guardou o diploma da ESPM na gaveta e resolveu fazer disso sua vida. Fiz minha primeira festa em 1999 e nunca olhei pra trás. Hoje, tenho dois clubs de sucesso em Campinas, o Caos e o Club 88, que cumprem um papel importante para fomentar a cena na região e no Brasil, e uma carreira sólida como DJ, que me leva aos principais clubs do país, a festivais como Rock In Rio, Time Warp e DGTL, e turnês pela América do Sul e Europa, e acabei de me juntar ao time da Ford Models Brasil.

Representatividade

Demorou muito tempo para ver DJs mulheres em grandes festivais e clubs importantes em um número expressivo ou em bons horários. O cenário atual, com nomes como Peggy Gou, Nina Kraviz e a brasileira Anna, traz mulheres ocupando os principais horários nos line ups e recebendo cachês equivalentes aos colegas homens. Levando em conta os meus 20 anos de carreira, foi incrível ver essa mudança acontecendo, mas é fato que existe uma diferença gigantesca de oportunidades. Não é por falta de talento ou capacidade, pelo contrário!

Em um mercado que é predominantemente masculino, muitos promoters ou bookers acabam não pensando em como a representatividade é importante. É valioso ocupar estes espaços, ter uma voz e inspirar outras meninas a correrem atrás de seus sonhos, a se tornarem DJs ou produtoras, a se inscrevem em cursos de engenharia de áudio ou se dedicarem a profissões técnicas. Tive poucas referências femininas quando comecei. Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível, é muito poderoso, e, para mim, o lado mais gratificante do meu trabalho é saber que ele toca outras pessoas de uma maneira transformadora.

Como artista, era questionada o tempo todo se era capaz, se era talentosa o suficiente, se eu sabia tocar... Ouvi de gente poderosa que ser sexy ou feminina demais não ajudava a ser respeitada. Também ouvi que “tocava bem para uma mulher” ou "tocava como um homem” como se isso fosse um elogio. Passei muito tempo sem encontrar outras meninas nos line ups ou apenas encarando horários de abertura, já que, por muitos anos, eram esses os slots reservados para as DJs mulheres. Nunca me abati, e usei isso como uma força propulsora para me motivar ainda mais a perseguir cada um dos meus objetivos. Meu pai sempre me falou que não tenho medo de nada: me jogo, peito os desafios, mergulho de cabeça no que me move, quebro a cara de vez em quando, caio, mas sempre me levanto. Sempre fortalecida.

Felizmente, a transformação também está acontecendo nos bastidores. Vejo cada vez mais mulheres abrindo suas próprias agências de DJs, produtoras de eventos, de management. Juntas, percebemos que somos muito mais fortes, com nosso jeito de negociar, de lidar com as situações, equilibrar diversos papéis e frentes, e, especialmente, de trabalhar de forma colaborativa. Algumas das iniciativas mais legais da cena são a Mamba Negra (São Paulo), a 101ø (Belo Horizonte), a Levels (Porto Alegre) e as agências Alliance, Havona e Liminal, com mulheres liderando.

O dia a dia

"Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível é muito poderoso" (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour
"Ver outra mulher fazendo ou conquistando algo que você julgava inatingível é muito poderoso" (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour

Hoje, com os dois clubs, sinto que meu trabalho vai além de uma boa curadoria ou de uma experiência memorável como festa. Temos a responsabilidade em fazer parte da mudança, não só proporcionando entretenimento, mas também oportunidades. É sobre dar espaço, criar diálogo e levantar questões relevantes. É um processo constante de desconstrução e aprendizado. O nosso compromisso precisa ir além e inspirar a evolução do pensamento, sendo um vetor de transformação de todo o universo que gira ao nosso redor e das pessoas que acompanham o que fazemos. Tenho a sorte de contar com sócios que compartilham da mesma visão. A música eletrônica tem como base valores como respeito e igualdade, mas, muitas vezes, isso não corresponde à realidade.

O Caos e o Club 88 são sonhos de quatro amigos apaixonados por música eletrônica que se tornaram realidade. Fora de um contexto pandêmico, trazemos artistas que admiramos e respeitamos para nossa cidade para fortalecer a produção cultural na região metropolitana de Campinas.

As pessoas têm a falsa impressão que todo dono de club ou festa fica rico facilmente. A conta pode até parecer simples quando você vê um lugar com milhares de pessoas comprando ingressos e drinks no bar. Porém, só a gente sabe da dificuldade que é trabalhar com algo que está às margens da produção cultural no Brasil, sem apoio, que é vista por grande parte da população, especialmente no interior de São Paulo, como coisa de “maluco”. São entraves burocráticos, uma carga gigantesca de impostos, riscos enormes, uma cultura predominante do VIP… Sem contar as oscilações do dólar, que quase inviabilizam a contratação de artistas internacionais e achatam a margem de lucro.

Já ganhei dinheiro? Sim! Já quebrei? Também. Tive momentos em que questionei minhas escolhas, especialmente a mudança para Campinas. Mas me reergui muitas vezes, de ver minha mãe partir tão cedo, o fim de um negócio ou de um casamento. Quando olho para trás, reconheço a importância de ter atravessado cada um dos desafios. Talvez, nada disso teria acontecido se não tivesse tido a coragem para mudar de cidade. E, com certeza, não teria o sentimento tão grande de realização se não tivesse seguido meu coração e decidido viver de música desde muito nova.

Trabalho na pandemia

fOto por Jorge Alexandre | @jorgealexandre 2019 © (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour
fOto por Jorge Alexandre | @jorgealexandre 2019 © (Foto: Divulgação) — Foto: Glamour

A indústria de clubs e eventos é uma das que foi mais afetadas pela pandemia, e lidamos com um cenário difícil, sem um plano de retomada, ajuda do governo ou linhas de crédito. Estamos abandonados como todo o setor da cultura no país. Nunca enfrentamos uma crise global com essa proporção, o que nos força a repensar todo um modelo de mercado e suas bases tão frágeis. Mas, além disso, é preciso também buscar soluções que nos permitam atravessar esse tudo isso e nos reinventar.

Explorei novos caminhos musicais, mostrei outros lados do meu repertório, resgatei, com emoção, memórias afetivas de discos preciosos. O processo de digitalização se acelerou e reforçou a importância dos conteúdos online – o que seria de nós durante a quarentena sem os livestreams, os sets, os podcasts? Mesmo com o retorno do presencial em algum momento, a diversificação vai ser fundamental para os núcleos e artistas. A renda pode vir de diversas fontes e não somente de apresentações e eventos ao vivo, sejam assinatura em canais do Twitch ou YouTube, merchandising, festas virtuais ou parcerias com grandes marcas.

Sou uma sonhadora. E esse meu otimismo sofreu duros golpes nesses seis meses de isolamento social, oscilando entre dias com esperança por uma sociedade melhor e sensação de impotência.

Apesar do peso de tudo o que enfrentamos agora, coloquei na minha cabeça que tentaria lidar com essa situação da melhor maneira possível. Produzi incessantemente, organizei meus discos, terminei a leitura de livros abandonados há meses e curti a minha casa e a Paçoca (minha cachorrinha) como nunca antes. Aprendi muito, especialmente sobre mim mesma. Foi a chance de parar e pensar em tudo que precisava mudar – o que pode ser também doloroso. Mas, pude constatar o quão forte eu sou, capaz de me adaptar a esse turbilhão de acontecimentos – mais do que imaginava – e o quanto estou sempre disposta a encarar tudo de frente, me recompor, me reinventar, me renovar. Cair e levantar quantas vezes for preciso.

É, acho que meu pai sempre teve razão."

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