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Por Por Paula Jacob (@pjaycob); Fotos Netflix/Divulgação


Sensação tem nome e sobrenome: O Gambito da Rainha. E por mais que nós, brasileiros, tenhamos um pouco de dificuldade com o nome da minissérie – vários memes rolando solto com as "pernas finas" da rainha Elizabeth –, podemos concordar que foi uma das melhores séries do streaming deste ano. Presente no top 10 da Netflix desde o seu lançamento, a produção conta a história de Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), jovem prodígio no xadrez que sonha em se tornar uma grande mestre do esporte. Detalhe, tudo isso nos anos 1960, época em que as mulheres eram destinadas apenas a casar e ter filhos.

Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Com roteiro baseado no livro homônimo de Walter Tevis, O Gambito da Rainha é recheado de grandes acertos, desde a força feminista que fica nas entrelinhas da história até o combo visual de direção de arte, figurino e maquiagem. "Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real", diz Anya Taylor-Joy em entrevista à Glamour.

Se você faz parte do grupo que ainda não assistiu, não tema que será uma coisa chata ou distante da realidade, só porque está falando sobre xadrez. A direção de Scott Frank é sensacional. Com um quê de David Fincher misturado com a esquisitice que a gente ama de Tim Burton, ele dá o tom ideal para fazer você maratonar tudo em um dia só; ficar tensa nas cenas de competição mesmo que não haja nenhuma ação física tão grandiosa; e torcer por Beth em todos os momentos, dos melhores aos piores de sua vida. A seguir, Anya Taylor-Joy conta mais sobre o processo de dar vida à personagem e o impacto da série na vida real:

Beth Harmon enfrenta Vasily Borgov (Marcin Dorocinski) no campeonato russo de xadrez (Foto: Phil Bray/Netflix) — Foto: Glamour
Beth Harmon enfrenta Vasily Borgov (Marcin Dorocinski) no campeonato russo de xadrez (Foto: Phil Bray/Netflix) — Foto: Glamour

Você estava esperando o fenômeno que a série virou? Existe alguma possibilidade de ter uma segunda temporada?
Não sou muito boa com números, então não consigo processar a quantidade de pessoas que já assistiu a série. Meu cérebro explodiu com tamanha visibilidade, com as pessoas se preocupando com a Beth, carregando a sua história por aí. O projeto foi muito pessoal tanto para mim quanto para o Scott, então me sinto honrada com tudo isso. Sobre uma segunda temporada: aprendi na vida o "nunca diga nunca", mas a série foi pensada só em sete episódios, então, por enquanto, é o que temos.

Além da série, o seu nome entrou na roda de comentários. Como você se sente com essa visibilidade toda?
Primeiro: gritos internos! Honestamente, eu não sei como estou me sentindo, são muitas coisas juntas. Me sinto sortuda. Estava gravando até ontem, mas ainda recebo ligações de pessoas dizendo "sua vida mudou", "você está vendo tudo isso que está acontecendo?". Mas penso que ainda sou a mesma pessoa, minha realidade é muito similar a de antes, ainda consigo fazer tudo o que eu gosto, viver a minha vida. Posso dizer que, ao fazer filmes ou séries, sinto que estou no caminho certo, fazendo papéis pelos motivos certos. Nenhum lugar no mundo me faz sentir tão realizada quanto um set de filmagem.

Cena da aposta de xadrez rápido com três tabuleiros diferentes (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Cena da aposta de xadrez rápido com três tabuleiros diferentes (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Como foi a preparação para o papel, considerando o xadrez e o período de 1960?
Os personagens chegam de diferentes maneiras. Nunca tive um método de atuação padrão para todos os papéis que interpretei. Porém, a Beth tinha algo de diferente, parecia uma voz que sempre existiu na minha cabeça. Apesar de sermos muito diferentes, temos algumas similaridades muito fortes. No minuto que terminei de ler o livro [de Walter Tevis], ela já estava lá. Durante as gravações, as coisas foram tomando mais forma, fui aprendendo com ela, tentando separar quais eram as emoções da personagem e quais eram as minhas. Mas, depois de um tempo, percebi que se ela estava tendo um dia ruim, eu também teria.

Para a parte do xadrez, ganhei um livro enorme sobre as táticas, os jogos, as movimentações. Li, estudei e… Cheguei no set para gravar e mudaram o jogo. Fiquei desesperada (risos). Passei a aprender os movimentos dos jogos que iríamos gravar cinco minutos antes das cenas. Minha memória a curto prazo é muito boa e, como bailarina, também consigo gravar os movimentos – afinal, o xadrez é uma dança que você faz com os dedos. No fim das contas, eu amava fazer isso, me divertia, principalmente com o xadrez rápido. O meu maior orgulho nas filmagens foi fazer a cena de xadrez rápido com os três tabuleiros – gravamos tudo de primeira, fiquei muito feliz!

Marielle Heller é Alma Weathley, mãe adotiva de Beth (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Marielle Heller é Alma Weathley, mãe adotiva de Beth (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Quem é a sua maior crítica?
Eu mesma! Minha pior inimiga. Sou muito crítica comigo mesma, e a Beth é assim também. Ao interpretá-la, tinha conversas com ela na minha cabeça do tipo "você não pode se tratar assim, precisa ser mais gentil consigo mesma". E aí pensava "ops, não posso dar esse conselho para ela, senão faço o mesmo comigo". Passei a prestar mais atenção em mim.

A atriz mirim Isla Johnston interpreta Beth Harmon na infância. Durante a sua vida no orfanato, ela aprendeu a jogar xadrez com o zelador, Mr. Schaibel (Bill Camp) (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
A atriz mirim Isla Johnston interpreta Beth Harmon na infância. Durante a sua vida no orfanato, ela aprendeu a jogar xadrez com o zelador, Mr. Schaibel (Bill Camp) (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

2020 foi um ano muito difícil para o mundo, mas a sua carreira seguiu forte, com o sucesso de O Gambito da Rainha, o anúncio do papel principal em Furiosa, de George Miller. Como você se sente?
Eu nunca (jamais!) poderia ser grata por uma doença que virou a vida de todo mundo de cabeça para baixo, prejudicou famílias… Não sou louca nesse nível. Mas, eu sou grata pelo espaço que me deram ao longo desses últimos cinco anos, em todos os projetos. Tenho muita sorte de poder trabalhar em diversas coisas, uma depois da outra. Só que isso não me deixou respirar, fiquei todo esse tempo sem saber direito o que estava acontecendo. Eu aprendia com um personagem, crescia com ele, e aí tinha que sair disso para ir a outro, sem tempo de elaborar o que havia sido aquela experiência. No começo do lockdown, ter o tempo de sentar e processar os últimos anos da minha vida foi essencial. Me sinto grata, percebi o quanto cresci e amadureci com tudo isso.

Jolene (Moses Ingram) e Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), amigas que se conheceram no orfanato (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour
Jolene (Moses Ingram) e Beth Harmon (Anya Taylor-Joy), amigas que se conheceram no orfanato (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour

Qual a sensação de perceber que você se tornou inspiração para jovens meninas?
É super emocionante! E uma das coisas mais maravilhosas da internet é poder ver as fanarts da audiência, encontrar (virtualmente) tanta gente talentosa ao redor do mundo, produzindo coisas lindas. É bonito perceber que quando algo chega nesse patamar de sucesso, não é mais sobre você, é sobre o todo, muito mais inclusivo.

Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Beth é uma personagem forte, nos anos 1960, ambiciosa, jogando xadrez. Como você enxerga essa potência?
Uma das coisas que mais gosto nela é que, por conta da sua super inteligência e talento, ela era uma mulher nos anos 1960 que não recebeu um livro de modos para se comportar como uma mulher dos anos 1960, dizendo a ela o que deveria ou não fazer; o que ela tinha direito ou não de conquistar. Beth é uma personagem genuinamente consciente de seu lugar social. Quando a perguntavam sobre "ser uma mulher no xadrez" ou faziam questão de ressaltar que ela só era interessante porque era uma mulher, ela sabia que, no fundo, isso não importava – e deixava claro. Eu espero que seja para esse tipo de sociedade que a gente esteja caminhando. Com movimentos como o #MeToo, estamos levando o pensamento para frente, para um mundo em que, independente do seu gênero, você merece o seu espaço. Para Beth, não era um problema ela ser mulher, ter nascido mulher, era da sociedade, que é sexista desde sempre. Há muito trabalho ainda a ser feito, mas sinto feliz em ver as vozes sendo amplificadas.

Um dos looks emblemáticos da passagem de Beth Harmon pela Rússia (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour
Um dos looks emblemáticos da passagem de Beth Harmon pela Rússia (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour

Outra coisa que chama bastante atenção na série é o figurino. Como você trabalhou com ele para desenvolver a personagem?
Como atriz e como audiência, acho muito legal quando é possível enxergar a evolução de um personagem, porque ela faz isso ou aquilo. Com isso, um bom cinema, na minha opinião, é quando você usa todas as ferramentas disponíveis ao seu favor para contar a história. Gabriele Binder [figurinista] e eu nos demos muito bem. Discutíamos a todo momento sobre as escolhas de Beth de acordo com os momentos da vida dela.

Um dos looks da fase mais "musical" de Beth (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Um dos looks da fase mais "musical" de Beth (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Na primeira fase, quando ela começa a ganhar dinheiro, qual roupa ela iria querer? Aquela que fizesse as meninas da escola gostarem dela. Depois de perceber que não era esse grupinho o que ela gostaria de fazer parte, ela começa a flertar com a música. Daí vamos para um lado mais do jeans, que estava em alta, com uma atmosfera cool, meio tomboy. E aí a série acaba na Rússia, lugar onde vejo a Beth sendo, finalmente, ela mesma. As roupas que ela usa nesse período, com um aspecto bem forte, minimalista, quase militar, são 100% a essência da personagem. O que me fez muito bem. É a primeira vez que a Beth Harmon não está fingindo ser quem não é através dos looks. Foi muito divertido contar essa história também pelo figurino.

Na final do US Open de xadrez, Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) enfrenta o campeão nacional, Benny (Thomas Brodie-Sangster) (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour
Na final do US Open de xadrez, Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) enfrenta o campeão nacional, Benny (Thomas Brodie-Sangster) (Foto: COURTESY OF NETFLIX) — Foto: Glamour

A série traz à tona discussões sobre desigualdade de gênero e sexismo no xadrez. O que você pensa a respeito disso?
O mundo sempre foi sexista. Estou feliz que vivemos em uma sociedade que tem pessoas puxando as mudanças para frente. Vai demorar? Sim, mas me sinto feliz em ver as pessoas escutando umas às outras, porque não adianta a gente gritar e gritar se ninguém vai ouvir. Também fico feliz em ver mulheres e homens sendo reeducados no que é ou não é aceitável em uma sociedade, e espero que a gente chegue no ponto em que a desigualdade é totalmente inaceitável.

Falando especificamente sobre o xadrez: acho muito difícil você pensar em ser alguma coisa se você não viu ninguém parecido com você chegando lá. Por isso é importante a diversidade de elenco, uma discussão que temos em todos os projetos ultimamente. Quando fui ver Mulher Maravilha no cinema pela primeira vez, fiquei arrepiada com a cena de ação com todas as mulheres juntas. Percebi ali que nunca tinha visto aquilo antes – e isso é muito poderoso. Dentro da comunidade do xadrez, diversas meninas ao redor do mundo talvez nunca tenham pensado em ser uma grande mestre do xadrez, porque isso sequer era uma possibilidade para elas. Mas, agora, vendo na TV, espero que elas percebam que elas podem querer o que elas quiserem.

Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Na série, Beth Harmon luta bastante contra o vício em calmantes e álcool. Como foi colocar esse assunto em pauta?
A partir de experiências minhas e de pessoas próximas, sabia como queria contar a história do jeito certo. Os vícios, independente qual seja, sempre funcionam no começo. Porém, em algum momento, aquilo para de "funcionar" e você sabe que a qualquer hora a pessoa vai ruir. Para mim, era fazer com que a audiência entendesse os motivos pelos quais a Beth usava os calmantes e o vinho, e o quanto os momentos eram diferentes. Às vezes ela bebia porque ela se sentia sozinha, outras vezes porque estava celebrando; tomava as pílulas porque achava que elas eram a fonte da sua genialidade, outras vezes era só para não sentir as coisas que ela não sabia lidar.

Além disso, era muito importante que nada disso fosse glamourizado. Muitas vezes, em filmes ou séries, tudo se resume ao "sexo, drogas e rock n' roll", como se fosse algo descolado e divertido. Mas a realidade de uma pessoa viciada é muito triste, solitária, é uma degradação lenta da sua alma, do seu coração – espero que tenhamos conseguido deixar isso claro na série.

Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour
Anya Taylor-Joy, de 'O Gambito da Rainha': Se você não escreveu uma personagem feminina que seja complexa, você não escreveu uma pessoa real (Foto: Netflix/Divulgação) — Foto: Glamour

Dito tudo isso, qual a importância de você fazer e também assistir filmes e séries com personagens femininas complexas?
Eu acho que tem espaço para tudo no cinema. A arte pode querer fazer coisas mais contemplativas, escapistas – e eu amo isso. Mas também entendo (e percebo) a audiência cada vez mais interessada em ver gente que seja relacionável e reconhecível na tela. E se você como escritor e roteirista não escreveu uma personagem feminina que seja complexa em 3D, você não retratou uma pessoa de verdade. Não é que os homens são essas criaturas diferentes, complexas, misteriosas e as mulheres são feitas de papelão – isso é ridículo. A boa escrita é sobre pessoas reais, complexas, com falhas, que sejam interessantes, com um lado sombrio em algum nível – porque todos temos aquele espaço ruim dentro de nós. O mundo quer ver realidade.

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