Saúde mental
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Por Isabella Marinelli (@isabellamarinelli)

Laudo médico: cansada. Não é raro que mulheres troquem esse tipo de queixa nos grupos de amigas. Mas não se trata da simples sensação de mal poder esperar para soltar o corpo na cama e, finalmente, relaxar. Em cenários normais, uma boa noite de sono ou o período de férias dariam conta de resolver. Mas e quando não passa? Há muitos fatores envolvidos, que vão do âmbito pessoal à organização da sociedade atual. E é quando a gente encara que há uma estrutura por trás da exaustão que avançamos na direção do que realmente pode combatê-la. Primeira parada: trabalho e múltiplas jornadas.

Em 2022, uma pesquisa conduzida pela empresa Gattaz Health & Results, liderada pelo presidente do conselho diretor do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, Wagner Gattaz, mostrou que um a cada cinco profissionais brasileiros sofre com a síndrome de burnout, estafa diretamente ligada à ocupação. No mesmo ano, uma análise da Pulses, empresa de soluções para medir clima e performance nas empresas, ainda apontou que cerca de 85% das mulheres relatam cansaço extremo.

"Nós suportamos a divisão social e sexual do trabalho de formas distintas. Dentro de jornadas duplas, triplas ou quádruplas, somadas à necessidade de estarmos cada vez melhores e mais dispostas, a sociedade ainda nos coloca em uma situação de nunca estarmos satisfeitas ou prontas"

Quem introduz é Alessandra Benedito, professora de direito do trabalho, direitos humanos e economia do trabalho na Fundação Getulio Vargas. O cenário piora quando fazemos um recorte racializado. "Para quem é negra, a jornada começa mais cedo. Boa parte dos lares monoparentais é sustentada por um único membro, que é esta mulher. Ela encara mais cedo o peso de ter que entregar tal responsabilidade econômica e, quando no ambiente de trabalho, também é mais cobrada para provar competência em razão das estruturas racistas", completa Alessandra.

Coloque na equação outros fatores, como o acúmulo da carga mental doméstica (aquela lista de tarefas infinitas, frequentemente herdadas de alguém que se furta de cumpri-las), a economia do cuidado e traços mais profundos do mercado de trabalho, como a insegurança causada pela informalidade. Bomba. Segunda parada: o lado de fora. Mesmo longe do espaço de trabalho, a hiperestimulação que vem das redes sociais também engorda o espírito competitivo, a necessidade de provar produtividade e a exibição de performance. Dos mantras de coaches financeiros que pregam o "trabalhe enquanto eles dormem" à sensação de agilidade ao acelerar um áudio do WhatsApp, somos incentivadas a um estado constante de atenção, disponibilidade e alto rendimento.

"Assim como há uma pressão de um lado para organizar a nossa vida com a gramática da produção e do trabalho, por outro, a gente parece ter desaprendido a descansar e a cultivar seriamente as práticas que imponham essa descontinuidade", argumenta o psicanalista Christian Dunker, professor titular da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A partir daí, vem a pergunta de milhões: como podemos recuperar a capacidade e o direito ao descanso?

Exaustas S.A. — Foto: Getty Images
Exaustas S.A. — Foto: Getty Images

PAUSAR É PRECISO

"O cansaço crônico prejudica os nossos neurotransmissores. É necessário praticar o descanso e o ócio para que corpo e cabeça se reestabeleçam, tenham energia novamente. A criatividade, por exemplo, depende de processos passivos e inconscientes que ocorrem na mente. Não à toa, é comum que uma boa ideia venha no banho ou quando estamos quase dormindo", explica a neuropsicóloga Carla Guth, especializada em terapia cognitiva. O problema é que a lógica de produtividade pode se manifestar em culpa por parar.

"Quando a gente entra no estado emocional que considera os nossos problemas como tão importantes a ponto de a gente não pausar nunca, é indicação de um processo de comprometimento da saúde mental", introduz a psicóloga Adriana Drulla. Segundo ela, o primeiro passo para começar a desatar esse nó é entender que o excesso de cobranças e a dificuldade de realizá-las no tempo e na forma desejados não são sinais de inadequação. "Numa sociedade competitiva, estamos inclinados a pensar que realinhar expectativas e pedir ajuda são sinais de fraqueza. Na verdade, quando fazemos isso, passamos a trabalhar com o que é possível, e isso é extremamente importante", argumenta.

Em outra medida, também vale o questionamento sobre o quanto queremos aceitar essa lógica dentro da autorresponsabilidade que nos cabe. "Eu me preocupo que a gente queira seguir a velocidade da internet e o mito da produtividade. De certa forma, descansar é resistir diante deste cenário também", argumenta Iza Dezon, pesquisadora de tendências e CEO da agência de consultoria estratégica Dezon, responsável pela série digital A Morte dos Mitos, que trata, entre outros temas, do direito ao descanso.

Exaustas S.A. — Foto: Getty Images
Exaustas S.A. — Foto: Getty Images

PROBLEMA DE TODOS

A palavra sustentabilidade significa a capacidade de desenvolver determinado processo com segurança, respeito e estabilidade. De olho nela, está em alta no ambiente empresarial a sigla ESG. Do inglês, significa "environmental, social and governance" e corresponde às práticas ambientais, sociais e de governança; a partir desse conjunto é que concluímos se uma empresa é socialmente consciente, sustentável e bem gerenciada. Por isso, dentro do pilar "S", a discussão sobre saúde mental e sobre novos jeitos de se trabalhar, incluindo conversa sobre pausa e descanso, é inadiável – e já caminha ao redor do mundo.

Em 2021, o Parlamento Europeu reconheceu o direito à desconexão digital do trabalho. Na ocasião, o texto indicou que as interrupções no tempo livre podem ter impacto negativo na saúde e no descanso. Entre as garantias, prevê-se que as legislações dos países devem garantir que os trabalhadores que invocam o direito a desligar sejam protegidos de repercussões negativas relacionadas a isso e tenham canais para recorrer em caso de descumprimento. Até então, Bélgica, Itália, Espanha e França já o reconheciam; a última foi pioneira no tema, em 2016.

Outro exemplo recente é o projeto The 4-Day Week Global, que testou a jornada reduzida envolvendo 3.330 funcionários de 73 empresas com atuação no Reino Unido. Na pesquisa, conduzida por uma equipe multidisciplinar da Universidade de Cambridge e da Boston College, nos Estados Unidos, foram avaliados 2.900 funcionários de 61 empresas britânicas entre junho e dezembro de 2022. A adoção levou a uma queda de 71% nos índices de burnout. Cerca de 39% dos colaboradores também disseram estar menos estressados e 54% afirmaram ter menos emoções negativas. Para 15% deles, nenhuma quantia os faria voltar à semana de cinco dias tradicional.

Na mesma seara, nos Estados Unidos, a teóloga Tricia Hersey é uma voz ativa no assunto. Ela lidera o The Nap Ministry, movimento pelo direito ao descanso e seu livre exercício como forma de resistência. No livro Rest Is Resistance: a Manifesto (ainda sem tradução no Brasil), que se tornou best-seller do The New York Times, detalha o quanto ele é fundamental para sair do "modo sobrevivência" e ter qualidade de vida, especialmente quando falamos em recortes racializados.

No Brasil, o direito à desconexão, por exemplo, está previsto num projeto em trâmite assinado pelo senador Fabiano Contarato (REDE/ES). O conteúdo visa, entre outras propostas, limitar o contato profissional com os funcionários fora do horário de expediente como forma de assegurar o tempo de folga. Só isso não basta, mas é um caminho: para que o descanso seja viável e assegurado, além das escolhas pessoais, é preciso reparar desigualdades tanto com políticas públicas quanto em instituições privadas.

"A regulamentação de licenças parentais igualitárias e tipificação de outros tipos de abuso no ambiente de trabalho, como aqueles relacionados ao excesso de demandas e funções, são bons começos práticos", argumenta Iza. "Não há mais espaço ou, no mínimo, a longevidade será curtíssima para quem não levar os princípios ESG a sério e para além do marketing. O foco sempre deve estar nas pessoas. As organizações são formadas de pessoas, e o resultado da produção delas é também para as pessoas", finaliza Alessandra. Um desafio coletivo está lançado.

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