O Congresso Nacional acabara de ser fechado pelo AI-5 da ditadura militar, em dezembro de 1968, e veio a ordem para que os fotógrafos que trabalhavam no comitê de imprensa recolhessem suas coisas e saíssem do prédio. No momento em que arrumava suas gavetas, o repórter-fotográfico da sucursal da Folha em Brasília, Roberto Franca Stuckert, na época com 25 anos de idade, foi abordado pelo repórter de política da revista Veja José Carlos Bardawil (1943-1997).
Começou ali a saga de uma fotografia da Folha que se transformou em uma das capas históricas de Veja. Por causa dela, a edição da revista foi apreendida e tanto Bardawil quanto Stuckert quase acabaram presos.
O sobrenome Stuckert é associado à fotografia em Brasília há quase seis décadas. Roberto, 76, trabalhou mais de 13 anos na sucursal da Folha, de 1º abril de 1965 a janeiro de 1979. Ao deixar o jornal, tornou-se o fotógrafo oficial do presidente general João Figueiredo (1979-1985).
Roberto é hoje chamado de Stucão, mas antes era conhecido como Stuquinha, já que também é filho de um fotógrafo, Eduardo. Segundo Roberto, são 33 fotógrafos na história da família, incluindo seu pai, avô, sete tios e seus filhos Ricardo, o Stuquinha, e Roberto Stuckert Filho, o Stuca, que também se tornaram os fotógrafos oficiais dos presidentes Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016), respectivamente.
Nascido em 23 de maio de 1943 em João Pessoa (PB), Stuckert começou a cobrir esportes por volta dos 16 anos de idade no então Diário Carioca, onde seu pai trabalhava. Para não perder nenhum gol no Maracanã, ele cobria uma trave e seu pai, a outra. Em abril de 1960, seu pai o despachou para Brasília, que seria inaugurada naquele mês, e o tornou chefe da fotografia da sucursal do Diário.
Na capital cheia de oportunidades, o rapaz de 17 anos e seu pai criaram uma agência de imagens, a Stuckert Press, que passou a atender vários veículos. Cinco anos depois, aos 22 anos de idade, Stuckert começou na Folha a convite do então diretor da sucursal, Claudio Coletti.
“Eu tinha o maior orgulho do mundo, batia no peito e dizia: 'Eu sou repórter-fotográfico da Folha de S.Paulo’. Vocês não imaginam o que significa isso. E dava trabalho, hein? Eu dava muito trabalho a todos os repórteres que trabalhavam ali”, disse Stuckert.
“A Folha tinha um time de futebol famoso, eu entrei como zagueiro. Era a única diversão que tinha. A sucursal era uma irmandade, uma coisa maravilhosa. Trocávamos padrinhos dos filhos. Fui a São Paulo, conheci a sede e comecei a me entusiasmar pela Folha. Acho que fui o primeiro fotógrafo do jornal em Brasília. A minha funcional era de número 002. A sucursal era a mais temida de Brasília, era um time forte, um time de orgulho. Os fotógrafos ficavam loucos porque todo mundo ia atrás de mim para saber o que a gente estava fazendo.”
Stuckert disse que quando o então publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), ia a Brasília procurava falar com ele. “O seu Frias me admirava porque eu sempre fui um cara certo, justo. Se era para fazer o furo eu fazia, não tinha conversa. Às vezes me pagavam o dobro [para sair do jornal], mas eu ficava na Folha porque gostava. O velho Frias dizia: ‘Você é um grande repórter da Folha, então continue assim, você é honesto, fala a verdade. A Folha quer a verdade, a justiça, quer a coisa correta. Não importa, se tem corrupção fala tudo, que a gente banca’. Esse era o propósito dele, era um homem de personalidade.”
Dois anos depois do golpe militar de 1964, numa data que Stuckert não sabe dizer com exatidão, o então ministro da Guerra, Artur da Costa e Silva (1899-1969), que viria a ser presidente da República em 1967, foi fazer uma visita oficial ao Congresso Nacional. Stuckert estava pautado para cobrir o evento e resolveu chegar mais cedo. “Eu sempre tive essa ideia como repórter fotográfico: você chega sempre antes da pauta porque as coisas acontecem antes do fato real.”
Stuckert foi às galerias para obter uma visão geral do plenário. Nesse momento, viu Costa e Silva, sozinho, mirando as cadeiras vazias nas quais deveriam estar os deputados federais. Clicou a câmera Leica na vertical, sem flash. “Peguei a foto pensando que ia dar Primeira Página na Folha. Mandei. A Folha colocou lá dentro, na página interna. E eu fiquei com essa dor, sentida, porque eu queria dar uma Primeira Página”, disse Stuckert. De qualquer forma, ele fez uma cópia da foto e a guardou.
O tempo passou até que Costa e Silva, o ex-ministro, se tornou presidente e, em dezembro de 1968, decretou o fechamento do Congresso. A gota d’água foi justamente a falta de apoio à ditadura pelos parlamentares, que rejeitaram a cassação do deputado Márcio Moreira Alves (1936-2009). Nesse contexto, a foto de dois anos atrás adquiria um novo significado.
Quando Stuckert recolhia suas coisas nas gavetas, o repórter Bardawil viu a cópia da foto. Ele estava fazendo para a Veja uma reportagem sobre a crise política. “Ele [me] perguntou que foto era essa. Eu contei. Ele disse: ‘Mas essa é a foto! Inclusive a Veja está fazendo uma reportagem e vai ser política e eu estou com a matéria toda, mas não temos foto. Você não vende ela?’ Eu digo: ‘Vendo, vamos conversar’.”
Feito o acordo, a dificuldade era fazer a foto chegar à Redação da Veja em São Paulo. Bardawil decidiu que iria levá-la pessoalmente, de avião. Protegeu a imagem com um papel especial e a enrolou no próprio corpo, na barriga. “Ele foi rezando para não ser preso no aeroporto.”
Segundo Stuckert, a fotografia originalmente prevista para a capa era do papa Paulo 6º (1897-1978). “Quando Bardawil chegou à Redação, tiraram a foto do papa e botaram a imagem do general. Sem legenda, só a foto. Tornou-se uma das imagens mais famosas da história da Veja, e essa foto foi feita por um fotógrafo da Folha”, rememora Stuckert.
A Veja era um veículo no seu terceiro mês de vida. Em seu site, a revista celebra até hoje “a imagem que simbolizava perfeitamente o momento pelo qual o país atravessava. Irritados com a reportagem, os militares mandaram apreender todos os exemplares da revista”.
Segundo Stuckert, toda a edição da revista destinada a Brasília também foi apreendida. “Quando saiu a Veja, o coronel Campedelli me procurou e disse que eu fiz o truque [montagem]. Ele quis ver o negativo. [Respondi:] ‘Eu posso mostrar o negativo, mas ele é da Folha’. Mostrei, mas não forneci para ele, aí as coisas ficaram nesse sentido. O coronel foi lá para tomar os filmes e me prender.”
Dez anos depois, Stuckert viveu outro grande momento de sua passagem na Folha. Em abril de 1978, Figueiredo era o escolhido pela ditadura para suceder o presidente Ernesto Geisel (1907-1996) e a Folha procurava fazer uma entrevista com o general carioca.
A sucursal sabia que Stuckert era próximo de Figueiredo e dois repórteres procuraram o fotógrafo, Haroldo Cerqueira Lima (1939-2003), o Leleco, e Getulio Bittencourt (1951-2009). Em um texto de 2004, Getúlio contou que o convite para a entrevista primeiro chegou ao então editor-chefe, Boris Casoy, que resolveu mandar os dois repórteres “no seu lugar”.
Eles procuraram Stuckert para saber se era verdade que era amigo do general. O fotógrafo confirmou. “O general Figueiredo gostava muito de fotografia, e eu ensinava fotografia para ele no Torto. Ensinava e fazia fotografia de batizado, aniversário, essa coisa toda dele. Um dia ele me disse: 'Stuckert, você não me cobra nada das fotos que faz'. Eu disse: ‘Não, general, eu faço foto dos seus cavalinhos no Torto, do batizado dos seus filhos, faço 5 por 7, passaporte dos filhos, da neta, da Tatiana, de todo mundo, da família toda’”, contou Stuckert.
Por outro lado, o general costumava ajudar o fotógrafo com as burocracias das viagens e da cobertura do Planalto, como permitir carona no avião presidencial ou levar os filmes para Brasília. Stuckert disse que os repórteres pediram sua ajuda. “'Ah é, é? Então faz o seguinte, vamos ver se a gente faz uma entrevista com ele. Porque nós estamos tentando uma entrevista e ele já está concordando. Se você der um alô, melhora mais ainda'.”
Stuckert disse que telefonou para Figueiredo. “Eu procurei: 'Presidente, vamos fazer uma entrevista para a Folha de S.Paulo?' [Ele disse]: 'Não, Stuckert, que fazer [para] Folha de S.Paulo. Eu vou dar uma entrevista?' [Argumentei]: 'Não, chefe, você tem que dar uma entrevista porque tem que mostrar o que o senhor pensa. O sr. não disse que prende e arrebenta? Então fala, a Folha de S.Paulo vai publicar esse troço'.”
Dias depois, conta o fotógrafo, Leleco e Getúlio apareceram com uma grande novidade. Figueiredo aceitara a entrevista, mas com uma condição: nada poderia ser gravado.
Stuckert e os dois repórteres foram ao palácio para a entrevista, que foi longa e exaustiva. Quando acabou, os repórteres indagaram a Stuckert: 'Para onde é que você vai?'. Eu digo: 'Vou para casa descansar, tô cansado'. 'Não, não, agora é que vai ser fogo porque ele não permitiu que a gente fizesse a gravação. Então vai ser você, Leleco, Getúlio, nós três é que vamos destrinchar, pela memória, o que foi falado na entrevista'”.
Os três trabalharam na recuperação das frases. A reportagem acabaria ganhando o Prêmio Esso daquele ano. Stuckert não aparece creditado --na época, não era comum creditar repórteres-fotográficos em textos de reportagens. Isso não o deixou chateado? “Não, eu nunca fiz questão disso porque eu era fotógrafo. [...] Não fiquei preocupado porque o Leleco era meu amigo e ganhou o prêmio”.
“Eu ajudei, graças ao bom Deus, com a minha memória, a memória do Getúlio e a memória do Leleco, que era muito meu amigo, a fazer uma senhora reportagem e aí ganhamos o Prêmio Esso, a Folha ganhou o Prêmio Esso”
Stuckert trabalharia na Folha até janeiro de 1979, quando deixou o jornal para se tornar o fotógrafo oficial da Presidência no mandato de Figueiredo.
Em setembro de 1981, Figueiredo teve um problema cardíaco e foi internado num hospital do Rio de Janeiro. O boato de que ele havia morrido rapidamente se espalhou em Brasília. Stuckert foi ao hospital para convencer o presidente a se deixar fotografar, o que acalmaria o país, segundo argumentou. Na hora de um dos cliques, porém, Figueiredo fez uma “banana” com os braços.
Stuckert se disse espantado com o gesto de Figueiredo e tratou de evitar que a fotografia fosse distribuída aos veículos de comunicação. Como fotógrafo oficial, ele podia decidir quais imagens do general deveriam circular. Contudo, guardou uma cópia da imagem por muitos anos em sua casa, até que, nos anos 2000, decidiu exibi-la para uma reportagem sobre os antigos fotógrafos presidenciais.
No início dos 80, Stuckert disse que nem um governo militar se atreveria a distribuir uma “banana” presidencial – o atual presidente Jair Bolsonaro já deu publicamente duas “bananas” para os jornalistas que cobrem o Palácio da Alvorada.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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