Descrição de chapéu Desafios nas capitais

Violência divide comunidades, afeta serviços públicos e vira tema central na eleição em Salvador

Grupos criminosos avançam em meio a crise social e demandam atuação mais ativa da gestão municipal no combate à violência

Salvador

Uma chuva fina cai em Salvador nas primeiras horas do dia, enquanto Ana Sueli Sousa, 50, passa um café e tira do forno um bolo de milho, assado dentro da palha conforme a tradição junina.

A mesa posta indica a vida que segue, mas o clima ainda é de estranhamento na casa alugada onde mora há sete meses. Não há fotos nas paredes ou em porta-retratos: as lembranças ficaram para trás, trancafiadas na antiga residência da família no bairro do Tororó.

Também ficaram no antigo bairro os laços construídos e uma das fontes de renda da família, que vendia feijoada em um quiosque na quadra dos Apaches do Tororó, tradicional bloco de Carnaval.

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Foto com técnica de dupla exposição mostra paisagem de Salvador e a cozinheira Ana Sueli Conceição Sousa, 50, que teve dois filhos assassinados - Rafael Martins/Folhapress

"A vida em Salvador para mim perdeu a graça. Não tenho mais motivo para estar aqui", afirma Ana Sueli. O desabafo sumariza a dor de quem por duas vezes sentiu a pior das dores para uma mãe: a perda de um filho.

A família enfrentou dois lutos em menos de um ano. Em fevereiro de 2022, uma terça-feira de Carnaval, Patrick Souza Sapucaia, 16, foi morto em meio a uma operação policial na Gamboa, comunidade pesqueira nas margens da baía de Todos-os-Santos.

Os policiais envolvidos na operação, que resultou na morte de outros dois jovens, tornaram-se réus sob acusação de homicídio qualificado. A Promotoria afirma que os policiais teriam forjado a cena do crime.

Cerca de um ano depois, Pierre Sousa Sapucaia, 26, foi assassinado no Tororó. Desta vez, os algozes do filho de Sueli foram traficantes, que travam uma disputa sangrenta pelo controle da venda de drogas na região.

A Salvador que vai às urnas escolher o seu próximo prefeito em outubro é uma cidade sitiada e partida em meio a disputas entre facções criminosas e com uma polícia que lidera os indicadores de letalidade.

A espiral de violência isola comunidades, divide famílias, empareda comerciantes e impacta até mesmo a prestação de serviços públicos em bairros conflagrados, impondo desafios para a gestão municipal.

O tema estará no centro do debate eleitoral em Salvador, disputa que terá entre os principais concorrentes o prefeito Bruno Reis (União Brasil), o vice-governador Geraldo Júnior (MDB) e o sindicalista Kleber Rosa (PSOL).

A segurança pública, segundo a Constituição, é uma responsabilidade dos governos estaduais. Mas a complexidade da violência nas grandes cidades faz com que o tema assuma protagonismo também na esfera municipal.

Em Salvador, o assunto ganha ainda mais centralidade diante de uma cidade que tem a maior proporção de mortes violentas dentre as capitais brasileiras. De acordo com o Atlas da Violência, a capital baiana registrou 66,4 mortes para cada 100 mil habitantes em 2022.

Os efeitos do avanço da violência são sentidos em todas as áreas da gestão pública. No transporte, ônibus são queimados e mudam de rotas conforme os riscos em regiões conflagradas. Na saúde, profissionais estão amedrontados e pacientes têm receio de circular em determinados bairros.

As escolas convivem com arrombamentos e suspensões de aulas. Desde o início do ano letivo, 21 unidades de ensino da rede municipal suspenderam aulas em razão de tiroteios, prejudicando mais de 7.000 alunos. A Escola Municipal Laura Sales de Almeida, na Vila Verde, ficou 22 dias fechada.

"Quem está mandando hoje são as facções, que dizem o que vai fazer e o que não vai fazer no bairro. Isso é um problema seríssimo", afirmou em audiência pública o secretário municipal da Casa Civil, Luiz Carreira.

Na ocasião, ele citou exemplos de alunos que não podem frequentar escolas que ficam em comunidades dominadas por facções rivais e até obras que se tornaram morosas após ameaças a engenheiros e agressões a operários.

A prefeitura atua de forma direta na segurança por meio da guarda municipal, que possui 1.338 agentes, orçamento anual de R$ 4 milhões e foco na proteção ao patrimônio público. A integração com as forças estaduais e federais acontece em operações pontuais e no videomonitoramento.

Em alguns casos, há uma sobreposição na atuação de governo e prefeitura, com embates entre as duas esferas de poder. Em 2023, quando o Centro Histórico de Salvador registrou um pico de roubos, a prefeitura anunciou mais guardas municipais e nomeou um coronel da reserva como subprefeito.

O governo do estado, por sua vez, determinou a contratação de mais policiais para atuar na região, que já é uma das mais policiadas da cidade. No dia a dia, áreas como Terreiro de Jesus, no Pelourinho, são guarnecidas por viaturas da PM e guarda municipal, estacionadas a poucos metros de distância.

Mas para além do policiamento ostensivo, que reflete na sensação de segurança, o enfrentamento à violência no âmbito das prefeituras passa por um conjunto de fatores que inclui a redes de proteção social, educação de qualidade e a geração de empregos.

Neste quesito, a gestão municipal caminha a passos lentos. A rede municipal de ensino possui 103,7 mil alunos matriculados no ensino fundamental, dos quais apenas 3.768 –menos de 4%– estão em turmas de tempo integral.

O desemprego é outro desafio. Dados do IBGE de 2023 apontam que 16,7% da população acima de 14 anos de Salvador está sem trabalho, maior taxa de desocupação entre as capitais.

Sem uma formação adequada, oportunidade de trabalho e acolhimento, os jovens se tornam alvo fácil para o tráfico de drogas.

Folha lança série 'Desafios nas Capitais', sobre gargalos das cidades em ano de eleição

  • A menos de três meses das eleições, a Folha lança a série "Desafios nas Capitais", com o objetivo de mostrar alguns dos principais gargalos de 11 grandes cidades. A série, que estreia nesta quinta (11), trará uma cidade e um tema por vez, a partir de histórias dos moradores. Entre os temas abordados, estarão segurança, transporte, saúde e primeira infância. As reportagens mostrarão os desafios cotidianos, o papel das políticas públicas da prefeitura para enfrentar o problema e propostas dos pré-candidatos.

"O pilar principal da violência é a falta. O morador da periferia vive com falta de possibilidade, de recursos, de lazer. Salvador não acolhe quem construiu esse lugar", afirma Yuri Gonçalves, 26, músico e educador do Cria, ONG que trabalha com jovens em situação de risco social no Pelourinho.

Morador do Arenoso, periferia de Salvador, Yuri destaca que os poucos projetos culturais e de esporte do bairro são liderados por voluntários –ele é um deles e comanda o projeto de música Afrotumtum. "Você não vê nada de política pública de estado ou prefeitura. Aqui só chega asfalto em tempo de eleição."

Para Eduardo Machado, educador do projeto Juventude Negra e Participação Política da ONG Cipó, o combate à violência passa por um resgate da cidadania, com políticas estruturais que garantam o acesso à educação, esporte e cultura para os jovens de comunidades periféricas.

"A população negra está sendo exterminada em sua base, que é a juventude. É preciso enfrentar essa perspectiva da segurança pública só pela arma, pela repressão", avalia.

A proporção de mortes violentas comparável à de países em guerra se reflete na demografia da cidade: enquanto homens são maioria dos mortos pela violência, Salvador se tornou a capital com maior proporção de mulheres do país.

A cidade também viu sua população cair na última década, saindo de 2,6 milhões habitantes, em 2010, para 2,4 milhões, em 2022. Dentre outros fatores, a redução é resultado de um êxodo rumo a outras cidades.

Este será o destino de Ana Sueli Sousa, que depois da perda de seus dois filhos vai em busca de uma vida mais pacata na zona rural de uma cidade do interior do estado.

"Vou seguir a vida. Tem que seguir, né? Mas a dor, aquele sentimento de solidão, de tristeza, isso nunca vai sair de dentro de mim."


Propostas dos pré-candidatos para Segurança Pública:

Bruno Reis (União Brasil): Pretende intensificar as ações em curso e trazer novas iniciativas, incluindo o Plano Municipal de Segurança Pública, que está sendo elaborado. O plano vai definir mais uma série de ações e iniciativas para a prefeitura ampliar sua contribuição para o combate à violência.

Entre as ações em curso, o prefeito cita como exemplos a contratação de efetivo para a Guarda Municipal, a implantação de equipamentos culturais, de equipamentos esportivos, além da Bolsa Atleta Municipal para incentivar os esportistas da cidade.

Geraldo Júnior (MDB): Prioridade do projeto será garantir a participação efetiva do município na promoção da paz e na prevenção da violência por meio de políticas públicas que garantam a oferta de serviços, assegurem direitos e promovam cidadania nos bairros e comunidades de Salvador.

Na avaliação do pré-candidato, as cidades podem fazer muito pela segurança, que deve ser compreendida não apenas como ação repressiva. É preciso que a administração municipal estabeleça uma rede permanente de proteção social e atue em colaboração com as demais esferas da federação.

Kleber Rosa (PSOL): Pré-candidato defende protagonismo das gestões municipais no enfrentamento ao crime e à violência e afirma que vai adotar uma metodologia de segurança pública associada à garantia dos direitos humanos e que fortaleça a convivência solidária e a cultura de paz, especialmente nas periferias.

Promete criar um Sistema Municipal de Segurança Pública, que inclui uma Secretaria Municipal de Segurança Pública e Direitos Humanos, um fundo específico para financiar ações de combate à violência e conselhos populares regionais de segurança.

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