Se até hoje você lê no jornal o nome das editorias da Folha em letras minúsculas —“cotidiano”, “mercado”, “esporte”— a culpa é de Lenora.
Se você é daqueles que têm saudade dos tempos em que a capa de todos os cadernos trazia um quadrinho chamado Indifolha, sempre com informações curiosas, pode colocar esse prazer na conta da Lenora.
A artista plástica Lenora de Barros tinha 33 anos quando chegou ao jornal, em 1986, justamente quando a Folha iniciava um profundo processo de transformação, capitaneado pelo diretor de Redação Otavio Frias Filho (1957-2018), chamado Projeto Folha.
Editorialmente, o jornal passou a pregar o apartidarismo, a liberdade de expressão, a pluralidade de opiniões e o cuidado de abrigar o contraditório.
Graficamente, as coisas ainda engatinhavam quando Lenora chegou. Na ocasião, ela já era uma artista reconhecida por suas fotos-performances, nas quais desenvolvia a linguagem verbal aliada à visual. Sua série em que exibia a própria língua sendo atacada pelas letras de uma máquina de escrever é de 1979.
Depois de um breve período como editora-adjunta dos cadernos semanais, ela foi convidada por Frias Filho a ocupar o posto de editora de Arte.
“Logo nos primeiros dias, corri um risco enorme. O jornal todo era feito com letras serifadas [serifas são os pequenos traços que alongam os pés das letras]. Todos os títulos, textos e as artes também. Resolvi que, nos quadros e nas tabelas, deveríamos usar letras-bastão, sem serifas, para fazer um contraste”, lembra.
“Escolhi a letra Futura. É uma letra que havia sido bastante usada pelos poetas concretos e também tinha uma forte ligação com a Bauhaus [escola de arte alemã que funcionou entre 1919 e 1933]. Acontece que resolvi fazer uma surpresa e não avisei ninguém da chefia. No dia seguinte, cheguei toda feliz ao jornal. Encontrei o Otavio no bebedouro e ele, jogando a canetinha vermelha entre os dedos, disse ‘Notei uma diferença no jornal de hoje... Acho que ficou bom. Mas, Lenora, na próxima vez que for fazer uma mudança, vamos combinar que você me apresenta antes, fazemos testes etc.’.”
Os próximos passos de Lenora foram dividir a página do jornal em módulos (“para facilitar o uso com computadores, que estavam chegando”), a cadernização (“a Ilustrada já tinha um caderno próprio, e Esporte saía de vez em quando”) e o uso do nomes dos cadernos em minúsculas, seguindo a Ilustrada (“me ocorreu por causa do poeta americano e.e.cummings, que só escrevia em caixa baixa”).
“Um dos momentos mais bacanas foi a chegada do primeiro Macintosh à Redação”, lembra Lenora.
“Toda a equipe ficou doida com aquilo, mas era semana de eleição, e a gente tinha mil coisas para fazer para ontem. Então, combinei que só abriríamos a caixa do computador depois das eleições. Mas fui para casa e, no dia seguinte, lá estava um caderno especial com a lista de endereços de todas as zonas eleitorais da cidade feita no Macintosh. E as ilustrações feitas no computador também, aquela linguagem geométrica. Foi um espanto”, conta.
“O Otavio ficou tão empolgado com o Macintosh que pediu para a gente legendar a ilustração como a ‘primeira ilustração feita em computador na América Latina’.” A máquina também abriu caminho para uma das marcas mais duradouras da Folha, a produção de infográficos, ou seja, a apresentação de informações em forma ilustrada em vez de texto.
Durou três anos essa revolução gráfica conduzida por Lenora, que integrava um projeto mais amplo de reposicionamento visual tal como imaginado por Frias Filho e pelo então editor-executivo, Matinas Suzuki Jr..
Casada com Marcos Augusto Gonçalves, que havia sido editor da Ilustrada (hoje é da Ilustríssima), Lenora topou ir com ele para a Itália, onde o jornalista seria correspondente por dois anos. “Em Milão, pude voltar a ser artista, algo de que sentia muita falta”, diz.
Na volta, em 1991, ainda foi editora de fotografia da Folha por dois anos, até que sentiu novamente falta “das exposições que não estava fazendo.”
No final dos anos 1990, a artista fez reformas gráficas em revistas da editora Abril, mas não conseguia mais deixar de lado sua faceta artística.
“Foi um trabalho que culminou em 2016, ao ser convidada para fazer parte da exposição Mulheres Radicais, com cem artistas mulheres latino-americanas.” A mostra, que abriu em Los Angeles com uma de suas fotos na capa do catálogo, foi exibida também em Nova York e na Pinacoteca em São Paulo.
Aos 67 anos, a artista continua em obras. Acaba de lançar um livro de arte “...Umas.” (Familia Editions, 120 págs., R$ 400), com a reunião de uma série de poemas visuais que publicou no Jornal da Tarde, semanalmente, entre 1993 e 1996. Era uma coluna experimental, com o mesmo nome do livro, que misturava fotos, textos, pensamentos e ilustrações.
Em edição bilíngue em dois volumes, limitada a 500 exemplares, o livro está à venda na livraria de arte Lovely House (www.lovelyhouse.com.br).
Lenora de Barros
Nascida em São Paulo e formada em linguística pela USP, trabalhou na Folha como editora de Arte na segunda metade dos anos 1980 e como editora de Fotografia no início da década de 1990. É hoje, aos 67 anos, uma das principais artistas visuais do país.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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