No dia 21 de junho de 1987, a Folhinha chegou à casa dos leitores com uma capa vermelha e dois personagens desenhados pelo cartunista Glauco Villas Boas —na ilustração, o menino puxa a cueca para ver o que guarda ali dentro, enquanto a menina tira o sutiã e mostra os seios. O título? “Peitinho? Pintinho? Pelinho? Apareceu!”.
A reportagem tomava as páginas de 4 a 7 do suplemento infantil e explicava as mudanças hormonais da adolescência, esclarecendo o que é ereção, ejaculação, masturbação e até orgasmo. Se falar sobre esses temas com crianças pode ainda ser tabu no Brasil de 2020 —basta lembrar as manifestações do presidente Jair Bolsonaro sobre o assunto—, nos anos 1980 era ainda mais.
Mas esse era o espírito da Folhinha na época. O caderno infantil da Folha vivia um momento efervescente e passava por uma série de mudanças promovidas pela jornalista Bell Kranz. Aos 26 anos, em 1985, ela havia se tornado a terceira editora da Folhinha, virando o suplemento de ponta-cabeça e promovendo uma ruptura em sua identidade.
Antes de assumir o posto, Bell escrevia uma coluna sobre animais de estimação no jornal. Era uma resposta à seção Cinofilia, sobre cachorros e gatos, publicada por mais de 20 anos em O Estado de S. Paulo e assinada por Antonio Carvalho Mendes, o Toninho Boa Morte, morto em 2011.
“Ia todas as semanas para a Redação, sentava ao lado do Ruy Castro, da Barbara Gancia, era superchique”, relembra Bell. O convite para editar a Folhinha simbolizava a chegada das transformações da época ao jornalismo infantil.
De um lado, a Folha vivia um período de ebulição, com Otavio Frias Filho assumindo o cargo de diretor de Redação, em 1984, e implantando o chamado Projeto Folha —que culminou com o jornal no posto de maior do país.
De outro, o Brasil deixava para trás a ditadura militar, respirava as Diretas e não estava mais submetido à censura, o que permitia uma série de inovações na imprensa.
A junção desses dois fatores abriu as portas para que a Folhinha ousasse. Bell mergulhou o suplemento no Projeto Folha e passou a publicar reportagens dos mais variados temas, como arte, ciência, política, economia e sexo. Surgiram capas que explicavam didaticamente a inflação galopante do período, por exemplo, algo inimaginável antes.
“A Bell Kranz, ao meu ver, foi quem introduziu uma alteração que talvez tenha sido pioneira em termos de jornalismo para crianças, pelo menos no Brasil”, disse Frias Filho em 2015, em entrevista concedida três anos antes de sua morte, em 2018.
Mas o choque também foi estético. A Folhinha foi criada em 1963 pela jornalista Lenita Miranda de Figueiredo e teve a sua parte gráfica desenvolvida por Mauricio de Sousa, que trabalhava no jornal àquela altura e ainda começava a desenvolver a sua Turma da Mônica —o caderno infantil, inclusive, foi berçário de diversos personagens.
Com Bell, porém, não havia mais espaço para as formas arredondadas de Mônica e companhia. Nem lugar para o seu humor quase angelical.
Após duas décadas no suplemento, Mauricio de Sousa deixou a Folhinha e deu lugar ao grafite de Alex Vallauri, pioneiro nesse tipo de arte no Brasil, às cores marcantes de Marcelo Cipis e ao humor nada politicamente correto de Glauco Villas Boas. Morto em 2010, o ilustrador representou uma revolução.
Já conhecido pelo Geraldão, personagem publicado na Ilustrada, o cartunista criou a pedido de Bell e especialmente para a Folhinha o Geraldinho —uma versão infantil desobediente, sem limites e viciado em refrigerante, televisão e sorvete, muito sorvete, de todos os sabores.
É claro que as mudanças não passaram em branco. Dezenas de pais entupiram a Redação com cartas, defendendo que o Geraldinho era uma má influência para as crianças.
“Eu, então, sugeri ao Otavio que a gente seguisse o Manual da Redação e ouvisse o leitor”, diz Bell. Foi feito um plebiscito sobre a controvérsia, no qual meninos e meninas votaram e responderam se o personagem de Glauco deveria seguir no caderno ou não. O resultado foi uma vitória
incontestável pela permanência do Geraldinho.
Apesar das mudanças, o período de Bell à frente da Folhinha duraria pouco mais de dois anos. Em 1987, grávida, ela foi morar na França, onde seu ex-marido, Caio Túlio Costa, trabalharia como correspondente da Folha.
Ela retornaria ao jornal no meio dos anos 1990, quando foi editora do Folhateen, que teve capas tão ousadas quanto as da época da Folhinha. Voltadas para um grupo de leitores mais velhos, as reportagens eram ainda mais diretas. Em uma matéria sobre sexo, o título dizia que brochar é normal. Em outra, sobre dietas, um esqueleto humano ilustrava o material impresso.
Em 2000, Bell criaria ainda o suplemento Equilíbrio. “Estava no ar a discussão sobre qualidade de vida e saúde do corpo, da mente e da alma. A Folha sempre teve essa antena ligada”, conta.
Aos 61 anos, ela acaba de lançar o livro “21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil”, pela editora Planeta. “Usei tudo o que aprendi no jornal. Nunca gostei do hard news, sempre preferi a abordagem diferente sobre os assuntos. Porque você não encontra só a ousadia —é onde está a alegria do jornalismo também.”
Bell Kranz, 61
Começou na Folha com coluna sobre animais de estimação e, em 1985, tornou-se editora da Folhinha, caderno no qual promoveu uma renovação. Foi editora do Folhateen na década de 1990 e do Equilíbrio nos anos 2000. Lançou recentemente o livro “21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil”.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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