Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Por que comparar Eurocopa à Copa América é injusto e cruel

Muita organização. Muita limpeza. Muita educação. Campos maravilhosos. Cidades incríveis. A Eurocopa é tudo de bom, Brasil.

Os caras passaram por duas guerras e se refizeram. Quantas lições.

É mais ou menos isso o que escutamos a cada transmissão de jogos da Eurocopa.

Pausa para tocarmos os hinos desses países maravilhosos.

Agora vamos à realidade.

A Europa é o que é porque colonizou boa parte do mundo. Colonizar é saquear, roubar, assassinar, exterminar. É bastante simples entender, na verdade. Não haveria Manchester sem Mississipi diz o ditado. Não haveria Madri, Amsterdam ou Lisboa sem o Brasil usado como projeto latifundiário primário exportador que só foi capaz de enviar tanta produção à Europa por causa do trabalho de pessoas escravizadas. Não haveria Paris sem a Argélia saqueada. Não haveria Bruxelas sem o Congo aniquilado. Não haveria Berlin sem o Togo dizimado. Não haveria Londres sem o Apartheid sul-africano e sem todas as colônias invadidas pela Inglaterra.

Por que não se fala sobre isso durante os jogos da Euro? Por que não colocamos em contexto o que representa o chamado norte global?

"Ah, mas Milly, que chatice ficar falando disso durante uma partida".

Bem, verdade. Seria mesmo uma chatice. Mas já que vão elogiar a riqueza europeia deixar de dizer como ela foi acumulada passa a ser um erro que carrega inúmeras violências simbólicas.

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Sim, os estádios são lindos, os times são ricos, as cidades são incríveis. Mas a que custo?

Já a Copa América, meu Deus. Que coisinha fraca diante da opulência europeia. Mesmo jogada nos Estados Unidos e em seus estádios climatizados no meio do deserto.

Em Las Vegas temos um estádio de proporções imperiais, cheio de escadas rolantes que mantém a temperatura amena em seu interior graças a máquinas potentes trabalhando sem parar. Quando se fala dessa peça de arquitetura se fala com vivas e salves. E assim deixamos escapar uma boa oportunidade para explicar emergência climática. E, claro, falar de como os Estados Unidos repetem práticas coloniais para acumular riqueza e submeter tantas populações a misérias e à morte.

Contexto é importante sempre.

Não significa responsabilizar as atuais populações europeias ou livrar os habitantes das Américas Central e do Sul de qualquer coisa, significa oferecer verdade às narrativas e criar espaço de debate para reparações.

Significa entender que os mesmos países que saquearam boa parte do mundo e hoje são chamados de ricos por causa desses saques são também aqueles que negam a entrada das populações desesperadas que ainda fogem da condição miserável imposta a elas pelos regimes coloniais.

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Vejo os jogos da Eurocopa, me encanto, torço, vibro. O mesmo com os jogos da Copa América. O mesmo com os do Brasileirão. O mesmo na várzea. Me formei nessa paixão vendo Desafio ao Galo. Quem gosta de futebol, gosta do esporte onde quer que ele aconteça.

Me incomoda o protocolo instituído pelos órgãos que mandam no jogo. Me incomoda quem torce aplaudindo. Me incomoda que se puna quem tire a camisa ao celebrar um gol. Me incomoda que não possamos mais entrar com sinalizadores. Me incomoda o VAR. Me incomoda o teatro do combate ao racismo, ao machismo e à homofobia. Me incomoda que hoje seja aceitável dar cartão amarelo para quem exagerar no drible. Me incomoda torcida única. Me incomodam esquemas táticos rígidos que usam os jogadores como robôs. Me incomoda muita coisa no futebol profissional atual. Mas, ainda assim, a cada pontapé inicial - seja em Hamburgo, em Los Angeles, em Recife, em Luanda ou na rua Javari - eu me arrumo e me aprumo para assistir a esse esporte grandioso e apaixonante.

A Eurocopa, um torneio assistido por milhões, poderia ser excelente oportunidade para contarmos histórias verdadeiras e falarmos das coisas que nos unem.

Romantizar a vida daqueles que conseguiram de algum modo escapar de processos coloniais, hoje são cidadãos de países europeus e geraram filhos que brilham em algumas dessas seleções não ajuda a trazer para o meio do campo a verdade porque imigrantes que vêm das antigas colônias seguem morrendo e sendo tratados como pessoas de segunda classe pela política europeia. A menos, claro, que seus filhos se transformem em jogadores de sucesso. Nesse caso, a Europa os aceita.

O colonialismo é uma incomparável tragédia da história humana. A maior, a mais dramática, a mais injusta, a mais grotesca. Ignorá-lo nos desumaniza. Ignorá-lo ajuda a manter no poder os mesmos de sempre. Ignorá-lo é condenar à morte milhões de pessoas que ainda tentam escapar dos resíduos brutais que ele criou e que, de muitas formas, seguem organizando o mundo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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