Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

A história de como o 7x1 foi cuidadosamente planejado

Eu tenho uma teoria sobre o 7x1 e ela não é bonita. Mas pode ser útil. Ela me diz o seguinte: o sete a um começou a ser jogado no dia 22 de junho de 1986.

Foi nesse exato momento, no minuto seguinte à eliminação para a França na Copa de 86, que decidimos que seríamos, doravante, pequenos.

Claro que isso não se deu rapidamente e nem com muitos executivos entrando numa sala e preparando um plano de encolhimento. Isso se deu com a decisão bastante concreta de que entre jogar bonito e perder e jogar feio e ganhar nós ficaríamos com a segunda opção. Não houve um para apontar para os riscos de que uma outra alternativa se oferecia enquanto combinação possível: jogar feio e perder.

Mas uma mudança de filosofia não acontece da noite para o dia. Ela leva tempo, vai se instalando sem que percebamos, sem que nos importemos. Nesse caso seria preciso, por exemplo, olhar para a base. Para que formar tantos meias? Vamos formar volantes. Vamos marcar. Vamos impedir que o adversário jogue. E assim teve início a fase Dunga. Verdade, ganhamos 1994. Muito porque tivemos Romário e Bebeto mais do que graça, leveza e conjunto. A imagem de uma Copa sendo vencida com um pênalti chutado para fora conta, esteticamente, o que estávamos virando.

Veio 2002.

Outra vez, tínhamos gênios em campo e, para sermos honestos, a simpatia da arbitragem. Teríamos vencido sem que juízes tão benevolentes apitassem nossos jogos e juízes tão maldosos apitassem os jogos de alguns dos grandes rivais? Provavelmente não. Mas essa autópsia não é bonita de se fazer.

Finalmente, em 2010, agora passados mais de 20 anos de 1986, a destruição havia se completado. No meio de campo, como sinal de um Brasil valente, havia Felipe Melo. Pulei 2006 porque acho que todos vão se lembrar que o que ficou daquela campanha foi a forma bastante arrogante como o Brasil se apresentava, a despeito da evidente falta de competitividade.

Paralelamente à ideia de que seríamos em campo uma seleção mais cascuda do que alegre foi sendo formada a ideia de que podíamos fazer o que quiséssemos porque éramos os melhores do mundo sempre. A camisa mais pesada e mais invejada. Contra a gente, todos tremiam. No fundo, queriam mesmo era jogar do nosso lado. Uma geração de jovens alienados e distanciados do que o Brasil é de fato foi sendo formada ano após ano.

E então ganhamos a chance de sediar 2014. Vamos vencer, obviamente. Vejam, agora temos esse rapaz aqui, o Neymar, que joga demais. Somos o Brasil. Essa camisa é apenas a maior que já existiu. Certeza que vamos levantar esse caneco.

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A marra podia ser vista na forma como aquele elenco cantava o hino nacional, numa profunda confusão entre amar a pátria e ser absolutamente histriônico e desconectado da realidade. Não olhamos para como o futebol no mundo seguia se transformando. Nós nos bastávamos.

Antes da partida com a Alemanha confidenciei a minha mulher que seríamos goleados. Ela duvidou e me pediu um placar. Eu disse cinco a um, sabe Deus por quê. O que sei é que havia em mim a certeza de que tantos anos de planejamento dariam em uma tragédia colossal. No fundo eu acreditava que, depois da tragédia, mudaríamos a rota. Mas eu estava profundamente enganada. Nada mudou. Muito pelo contrário. Tudo piorou.

O 7x1 foi entendido como acidente de percurso. Um caso isolado. Esqueçamos. Somos o Brasil. Com a gente ninguém pode.

Estamos em 2024, e a seleção brasileira masculina do Brasil joga agora, oficialmente, como um time pequeno. Mimetizamos o estilo Neymar de ser e de existir. Confundimos raça com violência e brutalidade. Em campo, não nos preocupa o conjunto. Tanto faz esse detalhe do coletivo. Os meias sumiram, e o que temos hoje são volantes que desarmam bem mas são pouco criativos. No ataque, Vini Jr. tenta o que pode, mas nem sempre pode.

A camisa amarela recentemente foi símbolo máximo de um golpe de Estado e, depois, de uma tentativa de golpe de Estado. Esteve associada aos valores da extrema direita e é ainda bandeira do fascismo nacional. Hoje, a seleção brasileira representa o Brasil institucional: careta, conservador, violento, egoísta, vaidoso, infantil.

Como sair dessa miséria moral?

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A primeira coisa que a CBF deveria entender é quem é a torcida brasileira.

O Brasil é muito mais do que o Movimento Verde e Amarelo: é negro, é periférico, é dos terreiros, é das benzedeiras, é dos LGBTQs que mesmo correndo riscos amam o futebol, torcem, consomem, sofrem. É das mulheres que mesmo ridicularizadas seguem acompanhando seus times e amando um esporte que nos detesta.

As coisas tendem a piorar porque sair dessa miséria levaria tempo - e tempo é tudo o que não temos nessa fase do Capitalismo. Então, provavelmente seguiremos encolhendo até, um dia, sumir.

Essa terra a que se deu o nome de Brasil não tem um mito fundador como tantas outras têm. Boa parte da identidade nacional tirávamos do futebol. Era olhando o Brasil em campo que nos percebíamos brasileiros. O futebol é uma instituição sem igual nesse país e seria preciso que tentássemos salvá-lo para podermos encontrar algum rumo, algum horizonte. Mas não há interesse algum. A CBF enxerga o jogo como um negócio e nada mais. Está dando lucro? Sigamos. Nada para ver aqui. Circulando.

E, desse modo, deixamos de relacionar a seleção à nossa cultura.

Sem essa ligação, o futebol não se importa com a morte de nossos jovens negros e periféricos para balas atiradas por quem deveria os estar protegendo. Sem essa ligação não nos importamos com crianças que não têm escola para ir. Não nos importamos com famílias que não têm água encanada. Com florestas sendo destruídas. Com mães solo que não têm a quem recorrer por ajuda para criar seus filhos e filhas. Com o trabalhador e a trabalhadora que passam mais de 12 horas por dia em empregos que pagam mal e os esvaziam de vida. Nada disso importa.

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A seleção passa a ser uma coisa separada da sociedade. Vive em seu castelo na Europa e olha para a pátria sem nenhum tipo de emoção.

Os homens do negócio futebol talvez acreditem que o verdadeiro patriota jamais abandonará a camisa amarela. Que torcer para a seleção é ser brasileiro com muito orgulho, com muito amor. Bem, seria bastante fundamental entender que patriotismo não tem nada a ver com torcer para esse tipo de seleção. Ser patriota é pagar impostos. É batalhar por uma nação na qual todas as crianças possam crescem em segurança e amparadas. Uma nação que trate seus cidadãos com dignidade, ofereça serviços públicos e alguma chance de pertencimento. Patriotismo é amar tanto a nossa cultura que não aceitamos deixar de ver sua beleza refletida em um campo.

E, por fim, uma constatação trágica: Se não mudarmos a rota, vai acontecer coisa pior do que um outro 7x1. Vamos simplesmente deixar de existir. Primeiro, como time; depois, como espécie.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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