Milly Lacombe

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Traição de Yuri Lima mostra que homem não trai; homem exerce um direito

Existe uma poderosa instituição que nos organiza e adestra. Ela se chama "casamento". O casamento nos moldes tradicionais indica que seremos fiéis. Na saúde e na doença. Na alegria e na tristeza.

Repitam essas palavras olhando-se nos olhos. Jurem. Prometam. Assinem. Pronto, podem ir. Sejam felizes para sempre.

Qualquer relação amorosa tradicional, mesmo antes do casamento, trabalha com essa premissa: fidelidade. Há séculos.

E então a gente entra na vida como ela é.

Nela, trai-mo-nos uns aos outros - com raras exceções.

Estatisticamente, homens traem mais do que mulheres.

Comportamentalmente, homens que traem acreditam que não estão na verdade fazendo nada demais porque é assim desde sempre.

Homens têm suas necessidades, nos ensinam quando ainda somos crianças. Vou ali dar uma escapada e volto para casa sem culpa. Faz dias que minha mulher não quer transar. Fui buscar fora, qual o problema? Nada para ver aqui. Chego em casa, levo um mimo, ela faz o jantar, a gente assiste a um filme. Somos felizes. Vai ver nosso Insta e para de encher o saco.

Um dia depois do outro. Tudo normal.

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Só deixa de ser normal quando a mulher é que trai. Porque nesse caso a mulher pode ser assassinada. Acontece todos os dias. Até o ano passado, de forma legal. "Legítima defesa da honra" chamava a atenuante. Estava na letra da lei. Sua mulher te chifrou? Toma aqui esse revolver e resolve logo isso pra deixar de ser trouxa.

O cenário piora com mulheres grávidas, obviamente.

São muitos os jogadores de futebol envolvidos oficialmente na traição da companheira gestante. Neymar (como não, Brasil?), Éder Militão e agora Yuri Lima.

Estamos falando de uma masculinidade que se autoriza a trair. Uma masculinidade que inclusive aumenta seu capital social simbólico através da traição. Mais mulheres. Pega mais. Quanto mais, mais fodão entre os praças. Porque, mais do que pegar, o que vale é contar para os amigos que pegou. Descreve em detalhes e finge não perceber que detalhar a transa para o seu amigão está te deixando excitado. O que isso diz sobre seus desejos? Melhor nem entrar nesse tema.

Citei três jogadores que repetem um tipo bastante tóxico de masculinidade mas tenho exemplos fartos de homens modernos, de esquerda e aliados da causa feminista que buscam nesse jogo de ficar com muitas mulheres mesmo estando dentro de uma relação monogâmica a reafirmação de uma masculinidade que a divisão de tarefas dentro do lar parece ter tirado deles.

Nos casos de traição revelada de gente famosa, o noticiário corre para dar o ponto de vista do homem e abrir espaço para a dor da mulher traída, para perfilar a amante, para expor ainda mais tudo o que envolve o feminino na história. Em relação ao homem, apenas solidariedade: Ele está arrasado. Ele não dorme. Ele se arrependeu. Ele ama muito a mulher.

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E, como sabemos, quem ama perdoa, ensinam pra gente bem cedo. Uma frase tão violenta que me incomoda quando a vejo em cartazes nas arquibancadas para brincar com a fase ruim de um time. Não, amar não tem nada a ver com perdoar. Quem ama se ama. Quem ama se manda. Quem ama não atura.

Mas nem sempre é fácil apenas dar as costas e vazar.

Primeiro, porque como já dissemos homens matam. Matam esposas, namoradas, ficantes, amantes, pretendentes. Matam porque elas os traíram, porque elas descobriram a traição deles, porque engravidaram, porque não fizeram o jantar, porque usaram uma saia muito curta, porque dançaram de forma indecente na festa; matam, matam, matam. Matam ao ritmo de uma guerra segundo todos os dados.

Depois porque mulheres ganham menos do que homens exercendo uma mesma função. O que isso tem a ver com a preservação desse horror? Trata-se de uma ferramenta de domínio que serve para nos manter em alguns cativeiros, capturadas por aqueles que nos maltratam mas que sustentam a casa. Para onde ir? Com que dinheiro? E as crianças?

Iza, poderosa e grandiosa, pode dar ao traidor Yuri Lima o constrangimento que ele merece. Ainda que, nos ciclos dos parças, o capital de Yuri tenha subido desde a revelação. O cara conseguiu um mulherão feito a Iza e ainda outras?

Quantas de nós podemos agir como Iza? Quantas não estão agora mesmo vivendo relações de opressão sem poderem sair?

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A monogamia é perversa, machista, misógina e patriarcal. Precisamos trazer toda a sua brutalidade para o centro do palco. Mulheres morrem todos os dias por causa dela. Homens exigem que a pratiquemos sabendo que eles mesmos não o fazem. Esse castelo de vidro precisa ser implodido. O oposto da monogamia não é, como muitos imaginam, a putaria. O oposto da monogamia são relações sem hierarquia. Dentro delas e também fora delas. Pode haver aqueles que queiram acordos de exclusividade, e outros que não os queiram, que optem por novas formas de se relacionar. Isso não tem nada a ver com monogamia. Pedir o fim da monogamia é pedir que pessoas não sejam proprietárias uma das outras e que uma relação não seja superior às demais. Por que um casamento tem que valer mais do que uma amizade?

Olhem para Yuri Lima e para a masculinidade que ele exala. Olhem para os homens. Olhem para como somos construídos socialmente. Olhem para as crenças que nos acompanham desde a infância. Só assim mudaremos alguma coisa nesse violento e delinquente regime binário da diferença sexual. Deixem Iza e as demais mulheres em paz.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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