Autonomia do BC

Banco Central e democracia

Como a autonomia precária do BC coloca em risco a estabilidade política

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Sede do Banco Central, em Brasília / Crédito: Beto Nociti/BCB

A construção das instituições democráticas no Brasil é um processo din��mico e de contínuo aperfeiçoamento. A relação do Banco Central com os Poderes da República segue essa mesma lógica. Em 2021, foi estabelecido que os dirigentes do BC teriam mandatos fixos definidos em lei, não coincidentes com os mandatos do chefe do Poder Executivo.

Como resultado, no ano passado, pela primeira vez, um presidente da República conviveu com dirigentes do BC indicados pelo seu antecessor. O Brasil está passando por um período de adaptação a essa nova configuração, que amadurecerá com as sucessivas transições de governos. No entanto, é necessário avançar no aprimoramento do desenho institucional do BC, considerando que a fragilidade de sua atual configuração coloca em risco os valores democráticos que fundamentam sua autonomia.

A autonomia dos bancos centrais decorre da tripartição dos Poderes e da necessidade de proteger a integridade dos processos eleitorais. A ausência de uma autoridade monetária autônoma permitiria que o Executivo adotasse políticas inflacionárias para se financiar, cujos efeitos seriam similares aos de um tributo sobre toda a sociedade. Essa conduta burlaria a regra que condiciona a imposição de tributos ao consentimento do Legislativo.

Além disso, a autonomia da autoridade monetária garante a regularidade dos processos eleitorais periódicos. Como não há coincidência necessária entre os ciclos eleitorais e os ciclos da política monetária, a autonomia dos bancos centrais impede que políticas inflacionárias sejam usadas como arma política em detrimento dos interesses de longo prazo do país.

No Brasil, essas preocupações permearam o debate público desde a tramitação do projeto de lei que criou o Banco Central. Encaminhado pelo presidente João Goulart, o projeto foi relatado em Comissão Especial pelo deputado Ulysses Guimarães, que apresentou substitutivo prevendo a autonomia da autoridade monetária.

Mesmo com o advento de um regime de exceção durante a tramitação do projeto, o Congresso Nacional convergiu para a necessidade de preservar suas atribuições por meio do insulamento político do BC. Com a edição da Lei 4.595/1964, o Banco Central nasceu autônomo, em linha com o relatório de Ulysses. Essa autonomia, no entanto, não resistiu ao endurecimento do regime militar. A autonomia do BC foi então revogada, e o controle da política monetária passou a depender do compromisso pessoal de cada presidente da República.

O regime democrático instaurado pela Constituição Federal de 1988 herdou, portanto, um banco central próprio de um regime autoritário. Apenas em 2021, o Brasil iniciou a transição democrática de seu desenho institucional. Com a edição da Lei Complementar 179/2021, o BC adquiriu uma configuração única no direito brasileiro, tornando-se uma autarquia sem vinculação a qualquer ministério.

Foram previstos mandatos fixos para seus dirigentes, não coincidentes com os do presidente da República, com a atribuição de cumprir as metas de inflação definidas pelo governo através dos ministros de Estado que compõem a maioria do Conselho Monetário Nacional (CMN). A lei, no entanto, manteve a instituição em regime orçamentário e administrativo próprio de entidades subordinadas ou vinculadas à administração pública direta.

Assim, o novo desenho institucional do BC lhe impôs o dever de conduzir de forma técnica a política monetária, resistindo a eventuais pressões daqueles que controlam sua capacidade material de fazê-lo. Essa dinâmica tende a deteriorar progressivamente a capacidade do Banco Central de conduzir a política monetária e de zelar pela estabilidade do sistema financeiro.

Nesse contexto, é importante considerar os efeitos devastadores e imprevisíveis das crises financeiras sobre os processos eleitorais e sobre o próprio regime democrático representativo. Uma vez deflagradas, essas crises resultam em queda prolongada dos níveis de emprego e renda, deterioração dos sistemas de seguridade social e inviabilização fiscal de programas de governos eleitos.

A destinação de recursos públicos para o saneamento do sistema financeiro, embora muitas vezes necessária, é medida impopular, que contribui para minar ainda mais a confiança do povo no sistema representativo. Essa combinação de fatores altera profundamente a percepção e o comportamento dos eleitores, gerando incerteza política, polarização ideológica, fragmentação de coalizões parlamentares e inviabilização de programas de governos eleitos. Estudos apontam, por exemplo, que houve um crescimento de cerca de 30% do eleitorado dos partidos de extrema direita na Europa nos cinco anos seguintes à crise financeira de 2007-2008.

Há, portanto, uma contradição intrínseca no regime jurídico do BC instituído a partir de 2021. Com o objetivo de preservar o regime democrático, a autonomia do Banco Central impõe a condução autônoma da política monetária, criando uma dinâmica potencialmente conflitiva com o Poder Executivo. Esse estado de tensão potencial permanente tende a deteriorar progressivamente a capacidade do BC de atuar na prevenção de crises financeiras sistêmicas, expondo o regime democrático a riscos imprevisíveis e difíceis de estimar.

É preocupante que o Brasil esteja vivenciando essa contradição em um momento de profunda transformação no sistema financeiro, cujas repercussões sobre a estabilidade ainda não são conhecidas. O aumento da concorrência e o surgimento de novos modelos de negócio trazem benefícios para a população, mas devem ser acompanhados por mecanismos adequados de monitoramento e supervisão.

Além disso, o impacto de novas tecnologias sobre o sistema financeiro ainda está sendo estudado. Em 2023, a quebra do Silicon Valley Bank revelou que a movimentação online de depósitos e o crescimento do uso de mídias sociais aceleram o processo de deterioração de liquidez dos bancos. Esse contexto é agravado pela constante expansão das atribuições impostas ao Banco Central. Recentemente, por exemplo, o Poder Executivo editou decreto para estabelecer o BC como regulador do setor de ativos virtuais, sem, no entanto, indicar os recursos orçamentários necessários para a execução dessa nova atribuição.

Para tratar dessa questão, foi colocada em pauta pelo Senado a PEC 65/2023, que busca resguardar o BC de pressões políticas sobre suas capacidades administrativa e orçamentária. Para isso, a PEC propõe a transformação do Banco Central em uma instituição de natureza especial organizada sob a forma de empresa pública. Trata-se de criar uma instituição sui generis, adaptada às peculiaridades das dinâmicas institucionais de um banco central. A capacidade de pensar e discutir configurações especiais que se adaptem a situações específicas é prerrogativa do Congresso Nacional, no exercício do poder constituinte reformador.

As discussões sobre a PEC 65/2023 fazem parte do processo contínuo de adaptação do BC ao regime democrático. Considerando a relevância da estabilidade financeira para a proteção do regime democrático, o aprimoramento da autonomia administrativa e orçamentária do Banco Central é urgente, de modo a garantir que a instituição possa cumprir adequadamente suas atribuições.

É necessário aprimorar a institucionalidade do país, avançando na concretização dos valores democráticos trazidos pela Constituição Federal de 1988. Nas palavras de Dênio Nogueira, primeiro presidente do Banco Central do Brasil, “os homens têm os defeitos que têm. As instituições é que devem ter como dar segurança aos homens que quiserem exercer as funções como elas devem ser exercidas”.