Você se uniria a alguém que não te assumisse, a princípio? Você se relacionaria com alguém, com o qual o sigilo é uma premissa? Quando se trata de relações da sigla do arco-íris, vulgo LGBTQIAPN+, essas questões suscitam um debate complexo e também o famoso caso a caso. É um assunto sobre sociedade e sobre o conceito de família. Afinal o sigilo é uma imposição do indivíduo ou um efeito colateral de relações familiares e amizades insalubres e opressoras?
Conheci meu namorado por um aplicativo de relacionamento. Ideia vai, ideia vem; eu o convidei ao meu apartamento que se tornou nosso ponto “secreto” de encontro. Por quase um ano foi assim, no sigilo, até sairmos juntos pela primeira vez para Belém do Pará e depois para Salvador. A minha impressão é que tínhamos superado um desafio enorme ao tomar o espaço público. Do hall de entrada ao elevador de meu prédio; do táxi ao aeroporto; da cidade de São Paulo para os ares do Brasil. Era como se a gente tivesse conquistado o mundo, literalmente.
![Assucena — Foto: Divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-vogue.glbimg.com/zt4cEI2OlhZjEExRGVmwmGO_02k=/0x0:4480x6720/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_5dfbcf92c1a84b20a5da5024d398ff2f/internal_photos/bs/2024/V/A/L5XGYfQGqF9B0hLbKuwg/copia-de-luscofusco-divulgacao-4.jpg)
Depois dessa primeira vitória, percebi que se eu quisesse continuar com ele, precisaria ter paciência com o processo dele. Mas, e quanto a mim? Eu suportaria os impactos desse processo em nossa relação? É uma questão de escolha, e não é uma escolha fácil.
Quando decidi por namorar há dois anos e meio, eu não tinha ideia da quantidade de dilemas e desafios que aguardavam uma relação entre uma pessoa trans com alguém cisgênero: os olhares tortos, risadinhas maldosas, além dos ataques de ciúmes provocados por mulheres e homens supondo que poderiam dar em cima descaradamente de meu parceiro como se relacionamento com uma trans fosse bagunça. E ainda tinha o dilema entre o sigilo e a decisão de ocupar o espaço público como um casal.
É difícil afinar a teoria com as imposições materiais do cotidiano. Me julgava treinada no beabá da militância, mas a vida se apresentava absurdamente mais desafiadora.
Costumo dizer que todas as pessoas que se relacionam com uma pessoa trans passam por uma “transição social”. Os familiares e amigos, principalmente, viverão um processo de readequação da linguagem: repensando e readequando signos de gênero; pronomes; verbos e reaprendendo a chamar a pessoa trans pelo “novo nome” (epicentro desse processo). Mas, quando se trata de um namoro recente, o buraco é muito mais em baixo e há uma pressão maior pela transição social do parceiro --quase que de forma compulsória.
Há uma assimetria enorme -- e de muitas naturezas -- numa relação entre uma mulher trans e um homem cisgênero, ou entre casais homoafetivos, no qual um dos parceiros cobra o sigilo. Eu já havia passado pelo processo de saída do armário, meu parceiro não. Meu parceiro sabia que abrir nossa relação ao círculo dele seria um processo sem volta para ele e para mim. Ele teria que ter coragem para enfrentar uma possível revolta dos pais, o afastamento dos amigos, a chacota dos familiares e vizinhos e até mesmo correr o risco de perder o emprego por namorar uma travesti (fato que já aconteceu).
Por outro lado, ele descobriria quem o amava de verdade e assim construiria relações consistentes. No meu entendimento, eu não poderia forçá-lo a fazer tal escolha, mas poderia decidir estar com ele, desde que houvesse evoluções em seu processo.
O interessante é que o círculo social dele começou a ser apresentado para mim nas conversas sobre seu passado, nas fotografias e registros em vídeo, nos conselhos do dia-a-dia acerca de assuntos familiares. Quem nunca ouviu que casar-se com uma pessoa é também se casar com a família desse alguém?! É impressionante como numa relação, a família se apresenta de corpo e de alma, materializada no parceiro. No caso de uma relação sigilosa é a alma da família que vem primeiro e há muito o que lê nessa ausência.
![Assucena — Foto: Divulgação](https://cdn.statically.io/img/s2-vogue.glbimg.com/DbwYx2St3qRNt9Gu_Q9HPUeCP24=/0x0:4224x5280/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_5dfbcf92c1a84b20a5da5024d398ff2f/internal_photos/bs/2024/y/K/QiztKOTfAKAA8gPn96ig/copia-de-luscofusco-divulgacao-2.jpg)
A virada de chave aconteceu quando apresentei ele à minha família e aos meus amigos. A hospitalidade do meu círculo afetivo foi fundamental para desidealizar a hostilidade do mundo. É porque não há apenas a hostilidade, há o amor, há a poesia, há a fé na humanidade.
Foi muito potente quando meus pais e minha irmã além de nos convidarem para um jantar de apresentação e para uma viagem de fim de ano, também começaram a se comunicar com ele via WhatsApp. Essas vias de comunicação abriram perspectivas e construíram pontes sólidas. Nos sentimos abraçados.
Sem dúvida, nossa luta é para que as amarras do armário sejam quebradas de uma vez por todas e que ninguém precise se esconder para amar e ser amada. Sem dúvida, é fundamental o apoio de nossas famílias e amigos nesse processo de auto-emancipação; caso contrário a violência e a solidão nos acolherão friamente.
Não há sociedade saudável se o indivíduo não se auto-emancipar através do apoio de nosso círculo de afeto. Assumir um relacionamento e/ou transicionar a partir dele exige coragem, mas também é necessário um porto-seguro afetivo. Essa responsabilidade é da família, é do entorno, é da sociedade. Por isso entendo que, como sociedade, estamos nesse processo desafiador de “transição social” e, como bem disse um amigo: transicionar é um ato de amor coletivo.
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