• por Manuela Azenha
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A historiadora Ynaê Lopes dos Santos lança obra sobre racismo (Foto: Divulgação)

A historiadora Ynaê Lopes dos Santos lança obra sobre racismo (Foto: Divulgação)

A repercussão enorme no Brasil do assassinato de George Floyd, homem negro que morreu sufocado por um policial branco nos Estados Unidos (EUA) em 2020, provocou uma inquietação na historiadora Ynaê Lopes dos Santos. “Como boa parte da mídia e dos setores progressistas da sociedade não entendem que casos assim acontecem constantemente no Brasil?”, questiona a professora da Universidade Federal Fluminense. “É um estranhamento em relação às estruturas brasileiras e ao próprio racismo do Brasil”, continua. A indagação foi o que gerou a ideia do livro Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (ed. Todavia, 336 pp., R$ 79,90), lançado dia 6 de junho.

“O objetivo do livro é mostrar que é impossível pensar a história do Brasil sem atrelá-la ao racismo. Se tem uma tese no livro, é essa: a história do Brasil é a história do racismo no Brasil. Não há nenhuma dimensão da história brasileira que não seja pautada pelo racismo”, resume a autora. O livro recapitula a trajetória do país a partir da chegada dos portugueses, e chama atenção para o protagonismo de diversos movimentos e personagens negros que foram ocultados na versão que costumamamos aprender na escola.

Filha de uma mãe pedagoga e de um pai jornalista, Ynaê se diz uma exceção ao fazer parte de uma classe média negra. Como bolsista, estudou em escolas particulares de São Paulo durante toda a vida escolar. Cursou graduação, mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo, e especializou-se no tema da escravidão urbana no Brasil.

A pesquisadora é herdeira de um boom de historiadores da década de 1980 que se propuseram a estudar a escravidão no Brasil de uma nova forma, ao reconhecer o escravizado como um ator social ativo e não apenas como vítima do sistema. A tarefa foi um desafio, já que boa parte da documentação mais relevante sobre o tema foi queimada em 1890 pelo então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, como forma de evitar que antigos proprietários de escravos pedissem indenizações ao Estado após a abolição da escravidão, em 1888.

Esses pesquisadores então passam a consultar e cruzar outras fontes primárias, como processos criminais, listas de batismo, de casamento, reportagens de jornais, de forma a produzir uma historiografia transformadora e considerada referência no mundo todo.

Abaixo, os principais trechos da entrevista com a historiadora:

MARIE CLAIRE Como explicar esse espanto que nos causa diante de um caso como o de George Floyd acontece nos EUA, mas não nos causa igualmente quando ocorre aqui no Brasil?
YNAÊ LOPES DOS SANTOS
Parte do livro tenta explicar isso. A gente é herdeiro de uma sociedade que foi gestada com uma ideia de um mito de democracia racial. Temos dois grandes mitos de fundação da história brasileira: que somos uma democracia racial e que somos uma sociedade pacífica. Isso é uma construção que ganha peso sobretudo a partir da década de 30, inclusive em comparação aos EUA.

O Brasil é uma sociedade que pode ser compreendida como racialmente harmoniosa, sobretudo se comparada aos EUA, que teve leis segregacionistas. Um pouco do que quis mostrar no livro é que o Brasil não tem leis segregacionistas abertas como dos EUA e África do Sul, mas tem uma organização social com uma série de condicionantes, como acesso à educação e algumas legislações que no conjunto apresentam uma ordem abertamente racista. Não precisamos de leis segregacionistas. A forma como o racismo é tecido aqui é mais sofisticada porque é menos evidente, mas organiza a sociedade o tempo todo.

Estamos condicionados a olhar para os EUA e achar que lá a violência é maior porque as formas de resistência são racialmente declaradas, assim como a violência é racialmente declarada. No Brasil, vivemos um país de mestiçagem, que é compreendida de forma muito idílica, como se não fosse também atravessada por violência e racismo.

"Temos dois grandes mitos de fundação da história brasileira: que somos uma democracia racial e que somos uma sociedade pacífica"

Ynaê Lopes dos Santos

MC Existe uma historiografia relativamente nova, a partir da década de 1980, sobre esse período da escravidão. Pode falar sobre esse movimento? Como ele surge?
YLS
Essa historiografia é em grande medida resultado de uma leitura dos movimentos negros que existiram ao longo de toda nossa história, mas que ao longo do século 20 se organizam de uma forma política mais evidenciada, e também de uma leitura do que está acontecendo no mundo. O movimento pelos direitos civis norte-americanos tem um impacto muito forte na forma como as pessoas pensam a sociedade e a história, assim como o processo de independência de países africanos.

Tudo isso acontece nos anos 60 e 70 e funciona como uma espécie de caldo a partir do qual essa historiografia nova passa a pensar a escravidão. Ela reconhece o escravizado como um sujeito do seu tempo, a capacidade de agir desses sujeitos, como eles agem, como respondem. O escravizado deixa de ser entendido apenas como uma vítima do sistema e passa a ser entendido como um ator social efetivo. A partir daí temos um boom da historiografia que passa a mergulhar nesse universo. Durante muito tempo na história brasileira se criou uma ideia de que não era possível fazer a história da escravidão porque uma parte significativa da documentação havia sido queimada por Ruy Barbosa, numa tentativa de evitar que antigos proprietários de escravos pedissem indenizações para o Estado após a abolição. Perdemos dados muito valiosos.

Mas essa nova historiografia passa a olhar para outras fontes documentais, processos criminais, inventários post mortem, lista de batismo, de casamento, anúncio de jornal, reportagens de jornal. A partir dessa combinação, temos uma historiografia absolutamente competente. Talvez boa parte dos nossos melhores historiadores sejam desse período que trabalha com escravidão. Ela é reconhecida como de ponta no mundo porque consegue sublinhar o escravizado como sujeito complexificando a história do Brasil.

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MC Qual a importância de que os produtores desse conhecimento sejam pessoas negras, e qual foi o impacto das cotas na produção dessa historiografia?
YLS
A história se faz no presente. São as minhas perguntas do presente que me induzem a pensar e tentar compreender questões do passado. Quando são pessoas que têm uma experiência muito comum fazendo as perguntas, as perguntas são muito parecidas. Para a produção do saber histórico, a grande contribuição das cotas raciais foi trazer sujeitos historicamente alijados da educação superior para esse espaço. E esses negros e negras que entram pelas cotas, geralmente a primeira geração da famíia a cursar universidade, vão olhar para o mundo a partir de uma outra experiência. Produzem novas perguntas, que vão precisar de outras metodologias de pesquisa. Vejo muito isso nos meus alunos. Eles estão preocupados em compreender o protagonismo de sujeitos negros sobretudo na República, que é uma história muito mal contada.

MC Essa nova historiografia já chegou às escolas?
YLS
Chega nas escolas por causa dos materiais didáticos e da formação de professores, mas ainda é tímida. Ainda temos a manutenção da ideia de um escravizado apático, vítima. Mesmo porque não temos nas escolas uma percepção da figura negra na experiência republicana. Parece que quando acaba a escravidão, acaba o negro na história do Brasil. Temos uma historiografia agora muito vigorosa, que é a historiografia do pós abolição, que está pensando na liberdade da população negra durante a vigência da escravidão, mas sobretudo após a abolição. O que acontece com esses negros que somem dos livros escolares, mas que na verdade são 57% da população brasileira? Parte dessas perguntas são feitas por jovens historiadores que entraram nas universidade por meio das cotas.

As cotas têm diversas contribuições para o Brasil. Uma delas é trazer a discussão do racismo efetiva, embora tenha altos custos para os cotistas. A vida deles não é fácil. Para quem se forma e continua na trajetória acadêmica, são essas novas perguntas que surgem. Muitos alunos exigem que os professores coloquem autores negros nas bibliografias. Professores começaram a olhar para os seus planos de curso e a perceber que não citam nenhum intelectual negro, como se não existissem - sendo que há muitos e são silenciados. É uma transformação desse lugar de fala, a possibilidade de ocupar esse espaço e olhar o mundo a partir de suas próprias trajetórias. Tenho uma orientanda que é a primeira pessoa da família a cursar uma universidade, e ela vem de gerações de empregadas domésticas. Ela quer entender a história da mãe dela, da avó, da bisavó, um universo muito pouco estudado. Acho isso fundamental porque é um universo que diz respeito à grande maioria das mulheres brasileiras, sobretudo as negras.

MC Me chocou o fato de que até hoje não se sabe a causa de morte de uma figura tão importante como Tereza de Benguela [maior liderança do Quilombo de Quariterê, no Mato Grosso, durante 14 anos do século 18]. Queria que comentasse essa falta de informação quando se trata de personagens históricos negros.
YLS
Isso está vinculado à estrutração do racismo, na qual os sujeitos negros dificilmente foram os produtores dos documentos desse período colonial e do Brasil império, na condição de escravizados ou libertos. O que a gente tem de informação foi feita por terceiros, sempre muito enviesada. Muitas vezes o objetivo é não falar sobre. Essa é uma escolha política. A ausência de citação direta nas fontes primárias é consequência de posições políticas, por isso essa nova historiografia faz um cruzamento de várias fontes diferentes. A memória é um exercício de poder, o controle da memória também. A melhor forma é não falar. A história brasileira é organizada a partir dessa escolha de não falar, do não problema, do não lugar.

"A memória é um exercício de poder, o controle da memória também. A melhor forma é não falar. A história brasileira é organizada a partir dessa escolha de não falar, do não problema, do não lugar"

Ynaê Lopes dos Santos

MC O seu livro refaz a trajetória do Brasil desde a chegada dos portugueses, em 1500. E chama atenção para alguns episódios que foram ocultados pela “história oficial”, em que pessoas negras tiveram protagonismo no combate ao racismo e na vida política no geral. Quais são esses principais episódios?
YLS
Vou elencar um, que é considerado o primeiro movimento social brasileiro e é muito mal estudado: o abolicionismo. Sobretudo a sua dimensão popular, com forte participação de sujeitos negros, é muito pouco trabalhada na historiografia dentro da universidade e principalmente fora dela. E vou elencar outro, que é o lugar do negro enquanto trabalhador brasileiro, sobretudo na experiência republicana. O trabalhador assalariado é o imigrante basicamente, não falamos sobre as experiências de trabalhadores livres negros. O primeiro sindicato brasileiro foi criado por estivadores negros do Rio de Janeiro, chamado A Resistência, que depois vira um cordão de carnaval. Podemos elencar uma série de personagens: Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis e muitos outros.

MC A escravidão no Brasil tem particularidades, se comparada a de outros países? Por exemplo, você fala da possibilidade de alforria no Brasil. Isso acontecia em outros também? E quais os reflexos disso?
YLS
Sim, a escravidão brasileira tem uma série de particularidades. O principal fato para isso é que a escravidão no Brasil está atrelada à forma como o tráfico se organiza no país. Quando os portugueses chegam aqui, o tráfico já era uma empresa portuguesa. E ao longo dos anos, os traficantes vão deixando de ser portugueses e virando colonos brasileiros. Tanto que temos o estabelecimento de um tráfico bilateral, direto entre Brasil e África, não tem mais intermediação de europeus. Isso facilita a entrada de pessoas africanas. Não é por acaso que o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados em todo o continente africano. Essa entrada massiva permitiu que a aquisição do escravizado fosse algo mais fácil, teve carta de crédito para comprar escravizado. Era caro, mas acessível. Essa dinâmica é muito particular da experiência brasileira.

Aqui também tivemos o uso de alforrias como contrapartida, para não tensionar a sociedade como o que aconteceu no Haiti. Por mais que a imensa maioria dos que chegam como escravizados ou que nascem aqui como escravizados morram nessa condição, tem até 3% que consegue adquirir alforria. Essa possibilidade estabelece outras formas de resistência à escravidão. Se você pode comprar a alforria, não necessariamente você vai se envolver numa rebelião, na qual a possibilidade de você morrer é muito grande. A particularidade da alforria no Brasil, bem a nossa cara, é que até 1871 a alforria é lei costumeira, ou seja, não tem nenhuma lei que a organize. Qualquer proprietário poderia revogar uma carta de alforria assinada, o que cria uma rede de clientelismo muito forte. Muitos alforriados ficam próximos aos antigos proprietários para garantir a alforria. Prestavam serviços a eles.

MC E sobre o crescimento vertiginoso do tráfico de escravos no Brasil, quando já era proibido por lei, isso também é particularidade nossa?
YLS
A gente pode entender o tráfico como um grande ciclo econômico do Brasil. Não temos como compreender nenhum ciclo econômico brasileiro sem entender o tráfico porque ele é o motor que traz os escravizados, constitui a experiência brasileira, barateia o preço dos escravizados. Cria também uma percepção de que o trabalho manual é inferior porque era executado por escravizados. Devido à forte pressão da Inglaterra, principal parceira comercial do Brasil, em 1831, o Brasil abole o tráfico transatlântico, que era uma empresa muito lucrativa. As principais fortunas do Rio de Janeiro nas décadas de 1810 e 1820 eram ligadas ao tráfico. Numa espécie de hiato entre a produção aurífera e o café, uma das principais atividades econômicas no Brasil é o tráfico.

Quando o Brasil assina a abolição, a elite brasileira está começando a apostar na produção do café. Por causa disso, essa elite cafeicultora do Rio e de São Paulo começa a fazer pressão no governo regencial, que tinha assinado a abolição, e existe um acordo entre os políticos moderados, congressistas e conservadores que abre o tráfico na ilegalidade. Quase 800 mil escravizados africanos chegam de forma ilegal. Esse acordo é o primeiro “acordo com STF e tudo”, para manter a escravidão como motor econômico brasileiro.

"As principais fortunas do Rio de Janeiro nas décadas de 1810 e 1820 eram ligadas ao tráfico"

Ynaê Lopes dos Santos

MC A chamada “guerra às drogas” é uma política de ilegalidade mantida pelo Estado que também coloca a população negra como alvo principal. É possível relacioná-la a esse período de crescimento da escravidão quando ela já era ilegal no país?
YLS
O que une esses dois fenômenos é que os sujeitos que estão na ilegalidade do sistema são negros e isso os aproxima. Mas é muito perigoso fazer essas comparações porque a escravidão tem um papel importante, mas uma coisa que aprendi escrevendo esse livro é que o racismo é uma decisão reiterada das elites brasileiras. Então colocar tudo na conta da escravidão é muito fácil. Organizou a sociedade ao longo de 300 anos, mas ela não existe há 130 anos e pouca coisa mudou com relação ao acesso da população negra a benesses de exercícios de cidadania. A gente tem uma Polícia Militar que nasceu em 1808, com uma de suas principais funções sendo prender escravizado, e que usa cor da pele como indício de criminalidade, um modus operandi que não foi questionado. E não foi porque não se quis. Se é para a Polícia Militar existir, é possível fazer uma reforma educacional. Os policiais são ensinados e ver o negro como criminoso em potencial. Isso vem da escravidão mas poderia ter sido descontruído. O encarceramento em massa acomete essas mesmas pessoas, a população negra.

"Boa parte do que entendemos como a normalidade, que pensamos que sempre foi assim, é assim porque escolheram que continue sendo assim. Por isso é racismo estrutural e tão difícil de ser combatido. Não basta uma tarja preta no Instagram"

Ynaê Lopes dos Santos

Os dois movimentos têm o racismo como eixo organizador. Mas tem uma distância de tempo muito grande e aí eximimos os políticos da experiência republicana que decidem não fazer diferente. Escolheram manter o racismo como forma de organizar a sociedade. Boa parte do que entendemos como a normalidade, que pensamos que sempre foi assim, é assim porque escolheram que continue sendo assim. Por isso é racismo estrutural e tão difícil de ser combatido. Não basta uma tarja preta no Instagram.

Racismo brasileiro, por Ynaê Lopes dos Santos (Foto: divulgação)

Racismo brasileiro, por Ynaê Lopes dos Santos (Foto: divulgação)

MC Você afirma que um povo escravizava o outro no continente africano antes dos portugueses chegarem, assim como aconteceu em outros períodos da história da humanidade. O que muda com a chegada dos portugueses nesse mercado?
YLS
Nas sociedades africanas, em sua maioria, antes do contato com os europeus, o escravizado é um sujeito de fora da sociedade, produto de uma guerra ou sequestro. Não tinha um mercado de escravizados, essa é a grande transformação do tráfico transatlântico: transforma o escravizado em mercadoria. Ao fazer isso, se cria uma grande rede em boa parte da costa africana. O tráfico é responsável pela criação do capitalismo, é o capital da venda desses seres humanos que permite a financeirização da economia, acumulação primitiva de capital. O que deu dinheiro no mundo de 1600 a 1830 foi comprar e vender africano. Quem fez isso com maior maestria foi a Inglaterra.

Algumas sociedades africanas entram nesse comércio. Algumas tentaram sair do tráfico e o que a Inglaterra faz? Param de vender arma e cavalo para eles e vendem para a sociedade inimiga. É uma rede muito perversa.

MC Se a escravização entre povos é algo presente na história da humanidade, por que Portugal necessitava de uma resguarda moral, encontrada na religião católica, para perpetuar essa atividade econômica? Quando que a escravidão passa a ser algo moralmente condenável?
YLS
Quando Portugal começa o contato e inicia a escravização, a escravidão não era uma realidade sistemática na Península Ibérica havia muito tempo. Durante o período medieval, podia ter escravidão, mas não eram sociedades que dependem da escravidão para funcionar. Então Portugal precisa de resguarda moral para fazer o comércio e mais do que isso - garantir a hegemonia nesse comércio. O que a Igreja Católica faz é muito mais definir que são os portugueses que podem comprar e vender escravizados, porque são católicos. A escravidão passa a ser moralmente condenável para os escravizadores europeus na virada do século 18 para o 19, quando o abolicionismo vira um movimento cada vez mais forte. Também por uma leitura muito específica da Bíblia. Agora, a abolição acontece de formas distintas. Temos uma chamada segunda escravidão. Até o começo do século 19, temos um tipo, e a partir daí, com a Revolução do Haiti [1791 - 1804], são poucas as sociedades que mantém a escravidão: Brasil, EUA e Cuba. A manutenção nesses lugares está vinculada à Revolução Industrial, que só acontece porque houve gente escravizada nesses lugares.

MC O que leva o Brasil a ser o último país do mundo a abolir a escravidão?
YLS
Por um lado, a escolha da oligarquia de se manter escravista. A escravidão é uma instituição que organiza a sociedade brasileira. Organiza inclusive o sentido de liberdade, quem pode usufruir dela, o exercício da cidadania, quem pode votar, e a própria identificação. Ao silenciar sobre a escravidão e lançar ela para o futuro, essas elites brasileira optam por um sistema liberal representativo no qual as disputas políticas são travadas de forma intensa em alguns momentos da história do Brasil, mas existe um chão a partir do qual essas disputas se dão. Esse chão é a escravidão. O próprio sentido de cidadania se dá a partir da negativa da escravidão. O cidadão é o não escravizado. Essa dimensão econômica, política, cultural e simbólica ajuda a gente a explicar por que o Brasil é o último país a abolir a escravidão nas Américas.

MC E por que a escravidão eventualmente é abolida?
YLS
O mundo capitalista que se organiza a partir da Revolução Industrial precisa de mercado consumidor e os escravizados não consomem. Mas eu acredito que é muito mais uma questão moral do que econômica. A escravidão continua sendo interessante economicamente, tanto é que a temos nas indústrias até hoje, mas com menos peso do que antes. A Inglaterra está discutindo o fim da abolição enquanto está implementando a colonização na África e Ásia, garantindo seu mercado consumidor por meio de uma exploração absolutamente violenta. Isso ocorre porque a escravidão é considerada imoral, mas a percepção da desigualdade humana, não. A imensa maioria dos abolicionistas brancos são homens racistas, que acreditam na inferioridade dos negros.

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MC Você fala da versão racista e falaciosa que aprendemos na escola de que a mão de obra escravizada indígena foi substituída pela negra porque a primeira era preguiçosa e a segunda mais forte fisicamente. Você depois afirma que não houve substituição nenhuma. De que forma a mão de obra indígena escravizada era utilizada?
YLS
Depende muito do lugar do Brasil. No início da produção açucareira, na qual os africanos trabalham de forma mais sistemática, nas primeiras décadas temos africanos e indígenas trabalhando lado a lado. Em São Paulo demora muito tempo para chegar mão de obra africana, então os indígenas são escravizados por meio das bandeiras. Do ponto de vista moral, a escravização indígena passa por uma perspectiva da Igreja Católica que define que só pode escravizar indígenas que se recusam a fazer a catequese. Porque os indígenas são vistos como pagãos, ou seja, não conhecem a existência da Igreja Católica e então cabe aos europeus levar a palavra de Deus a eles. Por causa das leituras bíblicas, os africanos são entendidos como descendentes de Cam, são infiéis. Sabem que existe o catolicismo e são contrários a ele, então devem ser escravizados.

MC E por que os colonos brasileiros preferiam comprar a mão de obra escravizada africana se ela era mais cara do que a indígena?
YLS
Geralmente tinha mais oferta de africanos, sobretudo para essas regiões voltadas a uma economia de exportação. Tem também a dinâmica do tráfico, a forma como se organiza, são os familiares de fazendeiros que se tornam traficantes e que também vão comprar os escravizados, então o dinheiro circula dentro desse espaço limitado. Fora que é sempre mais fácil escravizar um estrangeiro. Os indígenas tinham conhecimento da mata, muitos fugiram. O africano que chega aqui leva mais tempo até conseguir fugir. Eles fazem isso também, mas demora mais.

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MC O que você pode nos contar sobre como a mulher negra é retratada na historiografia? Isso mudou com o passar do tempo? E a sua pesquisa tem algum recorte de gênero?
YLS
As mulheres escravizadas têm a possibilidade de trânsito nas cidades totalmente distinta das mulheres brancas. Essa percepção das condições de gênero está na minha pesquisa, mas não tenho esse recorte. Agora estudo intelectuais negros, sejam homens ou mulheres. Mas é muito mais fácil encontrar homens porque estamos numa estrutura patriarcal que as mulheres, sobretudo as negras, não têm acesso a esses espaços. Temos tido uma melhora, de uma invisibilidade total para alguma coisa aparecer, em grande medida oriunda de mulheres negras que resolveram falar de mulheres negras. Mas o caminho é muito longo. Não basta abrir uma gavetinha no 13 de maio e no 20 de novembro para falar da população negra. A história do negro é a história do Brasil. É muito mais complexa do que esses herois, como Zumbi de Palmares, Tereza de Benguela.

E isso vale para setores progressistas. Acabei de ler uma reportagem mostrando que os partidos políticos mais progressistas não têm quadros negros. Isso é escolha política. Enquanto a questão racial não for tomada como a questão central para compreensão do Brasil, a gente vai continuar vivendo essa democracia sempre para vir a ser. Alguns lampejos de progresso e volta. A história do Brasil é isso porque nunca lidou, do ponto de vista do Estado e de políticas públicas, de forma sistemática na luta anti racista. Aprovou as cotas, por pressão do movimento negro, tem o Estado acatando algumas exigências, mas não o Estado que reconhece o racismo e que quer reorganizar a sociedade brasileira. E isso não é por acaso, é uma decisão deliberada de manter esses privilégios.

MC Você diz no livro que a racialização apenas das populações não brancas coloca os brancos como uma existência supostamente universal, neutra. Seria possível essa existência neutra sem a subjugação dos não brancos?
YLS
Não. Essa é a outra faceta do racismo. É um sistema de poder, mas geralmente aprendemos ele somente a partir da experiência do discriminado. Mas tem a outra parte, que são os castelos de privilégios construídos por e para brancos. E qual a grande sacada desse racismo? Fazer da experiência branca a experiência universal e humana. Naturalizar ela e racializar as experiências não brancas. Isso é a supremacia branca agindo. Ela não age afirmando ser melhor, isso é o nazismo. Ela age quando abro o livro de história e é organizado única e exclusivamente a partir das histórias dos europeus. Por isso os estudos da branquitude são importantes. O racismo não é problema só dos negros. O livro chama atenção para isso. Tem duas formas de ser branco no sistema do racismo: os signatários, que têm consciência e acham que os brancos são superiores, e os não signatários, que não necessariamente pensam sobre isso, mas vivem os privilégios. Os não signatários podem reconhecer os privilégios e começar um caminho anti racista. Muitos que começam vão escorregar porque a ordem é racista, a corrente é racista. Ir contra isso dá trabalho. A questão é querer ou não.