• Laura Reif
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Um vírus letal chegou ao Brasil através dos viajantes. Muitos adoeceram. Milhares morreram. E o país foi tomado por uma onda de negacionismo. Não, não estamos falando do coronavírus. Isso aconteceu no surto da gripe espanhola, no começo do século 20. Pois é: "Nosso presente é cheio de passado". Quem diz isso é a antropóloga, historiadora e escritora Lilia Schwarcz, entrevistada por Adriana Ferreira Silva, redatora-chefe de Marie Claire, na segunda noite de Power Trip Summit 2021.

Lilia Schwarcz (Foto: Mariana Pekin)

Lilia Schwarcz (Foto: Mariana Pekin)

O historiador israelense Yuval Noah Harari pontuou em 2020 em textos e entrevistas sobre como a humanidade nunca foi tão capaz de lutar contra um vírus como hoje. Ao contrário de outras crises sanitárias, os avanços da medicina e da ciência, além da troca de informações mais rápida e eficiente pelo mundo todo, possibilitou que, em poucos meses, já soubéssemos não só qual era o vírus responsável por causar a doença, mas também quais medicamentos e tratamentos eram mais ou menos eficazes e desenvolvemos vacinas. Tudo isso no tempo recorde de um ano. No entanto, no livro "A Bailarina da Morte", escrito por Lilia em parceria com a também historiadora Heloisa Starling, temos a sensação de que muitas das lições da pior crise sanitária do século 20 foram esquecidas. 

"No senso comum, pensamos que a história sempre evolui, mas muitas vezes a história 'involui'. Em 1918, a gripe espanhola foi recebeida com muita negação. Não havia SUS, nem vacina. Mas mesmo assim, os dirigentes seguiram à risca todas as determinações das autoridades sanitárias. Tivemos negação nos dois casos. A diferença é que agora o negaciosimo é uma política de estado", disse Lilia no início da conversa. 

A historiadora reforçou que uma pandemia consegue escancarar as características de um país, para bem ou para o mal. Um fato curioso que veio à tona foi o papel da cloroquina tanto durante a gripe espanhola quanto agora na pandemia do novo coronavírus - porém com uma diferença gritante de um século para o outro. "Achamos anúncios de venda de cloroquinina em 1918, de farmacêuticos que queriam ganhar a vida com o sofrimento alheio. Mas, na época, nenhuma autoridade recomendou o uso. Já em 2020, temos um governo que faz propaganda do uso precoce da cloroquina", pontuou.

Para Lilia, o século 21 irá tomar forma somente quando soubermos lidar com nossas fraquezas. "Essa pandemia mostra como os castelos que construímos desmoronam rapidamente. Não estamos parando para pensar, o dia nunca esteve tão atarefado. Perdemos o controle do tempo e, quando a gente não controla o tempo, a gente não consegue refletir sobre ele", disse.

"Historiadores gostam de falar de processos que se encerram, mas acho que o momento é outro. Esse tempo que nos foi dado para viver tem pedido respostas urgentes. Existe a ideia de que você tem que escrever para um público maior, sair da academia. Estamos em um momento de muita pressão, sobretudo no Brasil com esse governo negaciosta e obscurantista", continuou.

Olhando para o futuro próximo, ela aposta que 2022 será um ano "pesado" para o país. Ano esse que irá marcar o bicentenário da independência de Portugal, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, e ano eleitoral, com a responsabilidade de dar - ou não - continuidade a políticas como as de cotas. 

"Não teremos uma democracia enquanto formos racistas. Se o protagonismo [na luta antirracista] é dos negros, os brancos têm que agir como aliados. Foram as populações brancas que criaram o racismo estrutural e institucional. Por isso defendo cotas. Somos um país que não sabe falar de reparação e nós precisamos falar. Penso muito no meu papel, acho que temos que agir como aliados porque não é uma questão exclusiva dos negros, é da sociedade brasileira. Angela Davis e Djamila Ribeiro já chamaram a atenção que, no momento que vivemos, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Cidadania é assim, é uma franquia da democracia, cada um pratica do lugar que está", disse.

A historiadora ainda citou os alarmantes números de jovens negros que são mortos no país e como naturalizamos a escravização no Brasil até os dias atuais. "Vemos o racismo estrutural e institucional na educação, na saúde, nos índices de natalidade e mortalidade. Nao há instituição que não seja marcadamente branca e masculina. Estamos matando uma geração de jovens negros, são números de uma guerra civil. Sempre digo que usamos verbos que não são sinônimos como se fossem. Como 'ver' e 'enxergar'. Ver é uma capacidade biológica e enxergar é uma opção cultural - e o Brasil, sistematicamente, opta por não enxergar", completou.

"Estamos matando uma geração de jovens negros, são números de uma guerra civil"

Lilia Schwarcz

Por fim, ela lembrou como é importante o aprendizado da história, não porque "ela se repete", mas como um lembrete. "A democracia é um sistema incompleto e essa é a beleza da dela;  temos que conquistá-la de novo. O Brasil já passou por crises semelhantes, ja se perdeu e se encontrou também. Está na hora do Brasil se encontrar novamente. Tenho que lutar como cidadã com as armas que tenho - não as mesmas que o governo estima e quer tirar as taxas, mas com informação. Boa informaçao é resistência."

Lilia Schwarcz e Adriana Ferreira Silva (Foto: Mariana Pekin)

Lilia Schwarcz e Adriana Ferreira Silva (Foto: Mariana Pekin)

Sobre o Power Trip Summit 2021
O Marie Claire Power Trip Summit é uma realização da revista Marie Claire e tem patrocínio master da SulAmérica. Também tem patrocínio da La Roche Posay e da Janssen. E ainda os apoios da Magalu, Dell, Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, Arezzo e LYCRA®️. Neste ano, também temos as participações de Banco BV, Pandora e Samsung. Além do apoio da Alexa, a assistente virtual da Amazon.