Toni Morrison, a romancista da experiência negra, em foto de 2008 (Foto: Nikki Kahn/The The Washington Post via Getty Images)

Toni Morrison, a romancista da experiência negra, em foto de 2008 (Foto: Nikki Kahn/The The Washington Post via Getty Images)

Quem melhor que Toni Morrison para estrear uma seção dedicada à literatura feita por mulheres (e pessoas não-binárias, mulheres trans e, vá lá, quem sabe, um ou outro homem sobre quem vale a pena falar)?

A “romancista da experiência negra” nos Estados Unidos morreu em 2019, aos 88 anos, deixando um legado que vai muito além de seus 11 romances, ensaios e livros infantis. Primeira (e única) mulher negra a ganhar o Prêmio Nobel de literatura em 1993, Toni inspirou centenas de milhares de mulheres negras a escreverem suas próprias histórias — entre elas, a filósofa Djamila Ribeiro —, ao dar protagonismo a personagens afro-americanos em sua obra, cujos dois primeiros lançamentos, O Olho Mais Azul (Cia das Letras, 224 págs., R$ 54,90) e Sula (Cia das Letras, 176 págs., R$ 49,90), são o tema desta resenha.

Lançado em 1970, O Olho Mais Azul foi escrito por Toni Morrison na década anterior, período em que ela se desdobrava para cuidar sozinha dos dois filhos, Harold e Slade, enquanto trabalhava numa editora de livros —nesta função, ela publicou obras fundamentais como a autobiografia da filósofa e ativista Angela Davis.

Hoje um clássico, O Olho Mais Azul passou praticamente despercebido pela crítica estadunidense, que pouco se sensibilizou com a trajetória de Pecola Breedlove, garota de 11 anos que sofre bullying por ter a pele muito escura, cabelos crespos e ser considerada “feia”, e acredita que a única coisa que pode mudar seu destino é ter olhos azuis.

Narrado por uma colega de Pecola, Claudia McTeer, o romance traz questões que irão percorrer textos posteriores da escritora, como a descrição de determinados momentos históricos sob a lente de dolorosas experiências pessoais; questionamento a padrões de beleza que desconsideram a diversidade racial (centrados em características eurocêntricas); relacionamento entre mulheres; racismo; abuso sexual e o papel que as mulheres negras representam em suas comunidades.

"Entraram devagar na vida pela porta dos fundos. Transformaram-se. Todo mundo podia lhes dar ordens. As mulheres brancas diziam ‘Faça isso’. As crianças brancas diziam ‘Me dá aquilo’. Os homens brancos diziam ‘Venha cá. Os homens negros diziam ‘Deita’. As únicas de quem não precisavam receber ordens eram as crianças e as mulheres negras. Mas elas pegaram tudo isso e recriaram a sua própria imagem."

Toni Morrison em 'O Olho Mais Azul'

Este último é o tema central de Sula, lançado em 1973, narrativa centrada na história de quatro personagens: Sula, Hannah e Eva, respectivamente mãe e avó de Sula, e sua melhor e inseparável amiga, Nel.

Neste romance, entram em cena a sexualidade das mulheres negras, em especial a de Sula, jovem que se rebela contra o que é esperado de uma mulher nos anos 1930, tornando-se temida por outras da comunidade por colecionar amantes, recusar o casamento e viver sozinha e independente.Em contraponto, Nel incorpora todas as frustrações de uma jovem mãe solo, enquanto Eva se sacrifica fisicamente para sustentar a família e sua filha Hannah, conforma-se a depender financeiramente da mãe.

"A liberdade feminina sempre significa liberdade sexual, mesmo quando — sobretudo quando — vista pelo prisma da liberdade econômica."

Toni Morrison no prefácio de 'Sula'

No prefácio de Sula, Toni afirma que o livro foi escrito no período em que ela morava no Queens, em Nova York, e trabalhava num escritório em Manhattan, vivendo uma situação financeira que ela descreve como tão difícil “que passei do estresse debilitante ao hilariante”:

“A boa-nova era que essa era a situação de todas as outras mães solteiras/separadas que eu conhecia”, afirma a autora, destacando que, com essas mulheres, ela trocava “tempo, comida, dinheiro, roupas, risadas, lembranças (…) e principalmente coragem”.

Essa experiência marca profundamente a trajetória de Sula e Nel, em especial da segunda, cuja fidelidade a torna cúmplice e vítima da parceira.

Quem é Toni Morrison

 Como editora, Toni Morrison trabalhou com autores como Angela Davis, Gayl Jones, Toni Cade Bambara e Muhammad Ali (Foto: John Mathew Smith & www.celebrity-photos.com from Laurel Maryland, USA)

Como editora, Toni Morrison trabalhou com autores como Angela Davis, Gayl Jones, Toni Cade Bambara e Muhammad Ali (Foto: John Mathew Smith & www.celebrity-photos.com from Laurel Maryland, USA)

Nascida em Lorain, Ohio, Chloe Ardelia Wofford cresceu em um lar onde a leitura era um ritual familiar e um incentivo para superar as limitações impostas pelo racismo da sociedade estadunidense.

Formada em inglês pela Howard University, clássica universidade negra em Washington, e pós-graduada pela Cornell, ela atuou como professora em instituições como as universidades Howard e Princeton. Como editora, trabalhou com autores como Angela Davis, Gayl Jones, Toni Cade Bambara e Muhammad Ali.

Além do Nobel de Literatura, ganhou outros prêmios importantes como o Pulitzer, em 1988, por seu romance mais famoso, Amada (Cia das Letras, 368 págs., R$ 47,53), adaptado para o cinema pelo diretor Jonathan Demme e com Oprah Winfrey no papel principal.

Livros de Toni Morrison que vale conhecer

Confira outros títulos da autora, todos editados no país pela Companhia das Letras:

Amada

A Origem dos Outros

A Fonte da Autoestima

Voltar para Casa, Jazz

Deus Ajude Essa Criança, Amor

Compaixão

Paraíso

Quem Leva a Melhor