• Redação Marie Claire
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Kiusam de Oliveira com seu novo livro, Tayó em Quadrinhos (Foto: Alex Pires/Divulgação)

Kiusam de Oliveira com seu novo livro, Tayó em Quadrinhos (Foto: Alex Pires/Divulgação)

Uma das mais importantes escritoras na atualidade, especialmente no gênero infantil, Kiusam de Oliveira se valeu de vivências reais na convivência com crianças e educadores para Tayó em quadrinhos, seu mais novo livro. A obra, editada pela Companhia das Letrinhas (R$ 39,90), aborda o racismo estrutural de forma carismática e acessível.

“Professora, por que as pessoas brancas não gostam de crianças pretas?”, foi uma das perguntas que inspiraram a escritora, pesquisadora e narradora de histórias, que é ainda pedagoga, doutora em educação, mestre em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e terapeuta integrativa.

Um de seus livros mais conhecidos, O mundo no black power de Tayó (Editora Peirópolis, 2013), recebeu o ProAC Cultura Negra 2012 em 2012 e é considerado pela ONU um dos dez livros mais importantes do mundo na categoria Direitos Humanos. A personagem, conta a autora, surgiu em um sonho em um momento difícil, quando ela lidava com o tratamento de câncer pelo qual passava a mãe. 

Coroa é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Coroa é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Em conversa com a filósofa Djamila Ribeiro, a escritora que se define como autora da "Literatura Negro-Brasileira do Encantamento Infantil e Juvenil" fala da importância da inserção de temas antirracistas na educação de crianças e jovens. 

"O conhecimento do trato da complexidade conceitual e modus operandi no campo das relações étnico-raciais é fundamental a fim de que a consciência racial da criança negra seja despertada, antes de cair na arapuca social já armada para capturá-la", afirma.

Leia mais a seguir: 

Djamila Ribeiro: Qual o maior desafio de tratar esse tema com crianças?

Kiusam de Oliveira: O maior desafio não está nas crianças, e sim em quebrar as barreiras adultocêntricas estabelecidas pela supremacia branca, que alimenta o que tenho chamado de "arapuca social”, que está montada em nossa sociedade e segue capturando as idiossincrasias básicas de uma pessoa, desde quando nasce.

O bebê ao nascer, encontra seu universo determinado pelas cores rosa ou azul a partir de seu gênero, isto porque pessoas adultas em seu entorno consideram tal imposição correta sem refletirem que a natureza do desejo é ideológica e tem determinado um modus operandi de uma sociedade.

"A supremacia branca tem determinado o que uma criança deverá ou não ler, aprender, entender ou compreender em seu processo de desenvolvimento intelectual e construção de suas identidades, uma vez que os discursos privilegiados em nossa sociedade são hegemônicos."

Kiusam de Oliveira


Isto ocorre pois tais discursos se baseiam em réguas viciadas em demarcar um território de atuação através de instrumentos coercitivos, violentos e estruturais como o racismo, o sexismo, a necropolítica, entre tantas outras formas de repressão.

Capa de Tayó em Quadrinhos, lançado pela Companhia das Letrinhas (Foto: Reprodução)

Capa de Tayó em Quadrinhos, lançado pela Companhia das Letrinhas (Foto: Reprodução)

Djamila: De que maneira a Tayó pode ajudar na desconstrução do racismo estrutural se trabalhado nas escolas pelos professores?

Kiusam: Em minha, tese construo a ideia de que o corpo da mulher negra é o fragmento
social que escapa na sociedade brasileira, e isso pode servir para o mal e para o bem.
Para o mal já sabemos todas as consequências, pois muito se tem falado a respeito da
nossa invisibilidade, como exemplo.

Contudo, pensar nesse fragmento social que escapa buscando entender o lado positivo disso, pouco se tem dito. A história negra brasileira revela levantes sucessivos e de sucesso liderados por mulheres negras; isto porque, além de inteligentes e estratégicas, somos absolutamente líderes no que quer que façamos.

Assim, somos capazes de promover levante atrás de levante, sem que sequer percebam nossos movimentos rápidos e certeiros, pois nunca estão nos mirando como potências. 

Tayó é assim, pois tem como espelho sua mãe, uma mulher negra consciente de sua negritude e que a ensina o valor do auto-amor, resgatando os valores civilizatórios ancestrais africano e negro-brasileiro. 

"A mãe de Tayó, educadora como boa parte das mães negras, se sente obrigada a preparar a filha para combater as práticas racistas que atingem qualquer criança negra quando vai à escola."

Kiusam de Oliveira

Valorizando a corporeidade de Tayó, sua mãe enaltece a autonomia infantil, fundamental para o desenvolvimento integral de uma criança, caminho certeiro para que se torne uma pessoa adulta independente, com autoestima elevada, consciente e feliz. 

Racismo é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Racismo é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Djamila: Como você enxerga que a linguagem dos quadrinhos pode ser mais acessível a quem não tem o hábito da leitura tradicional?

Kiusam: Os quadrinhos possuem uma linguagem viva e divertida que ocorre na relação entre balões, palavras, ilustrações e cores; talvez por isso, tal linguagem acaba sendo mais atraente a quem não tem o hábito da leitura tradicional. Balões, palavras, ilustrações e cores compõem os recursos gráficos, cada vez mais ricos e interessantes ao universo infantil.

No caso do livro Tayó em Quadrinhos, eu me obriguei a escrever sempre em três cenas, poucas palavras, ilustrações dirigidas em seus detalhes, temas focados na educação para as relações étnico-raciais e direitos humanos, através de histórias reais vividas por diversos estudantes que estudaram comigo ao longo destes anos. 

"A linguagem dos quadrinhos traz também esse aspecto fundamental: histórias que retratam vivências próximas das experiências de crianças e que fazem um recorte dos acontecimentos da contemporaneidade."

Kiusam de Oliveira

Djamila: São séculos de apagamento da ancestralidade negra na educação infantil e um enaltecimento da cultura europeia branca. Você é otimista com os educadores de base brasileiros? Há uma vontade de mudar esse status quo?

Kiusam: Sim, são séculos de supremacia branca no país, determinando o que deve ser pautado ou não como prioridade: a temática das relações étnico-raciais nunca foi considerada prioridade nacional. Apesar disso, eu me considero pessoa, ativista e profissional otimista.

Se por um lado aponto a supremacia branca como estruturante dos desejos, das motivações e das atuações hegemônicas que tem provocado comodismo nas pessoas para deixar as coisas como sempre foram, por conta do medo branco das ondas negras, por outro lado, há um movimento de negritude forte e atuante desde África - o Berço da Humanidade -, até pessoas negras na diáspora, desde o tráfico negreiro.

Eu mesma tenho me deparado (ao longo de quase 30 anos formando profissionais da educação) com o tipo de profissional da educação que afirma não detectar a existência do
racismo. Por outro lado, sou incapaz de me esquecer que ministrei meu primeiro curso sobre educação antirracista em 1992, através da Secretaria Municipal de Educação de Santo André (SP), na gestão de Celso Daniel.

Desde lá, o que tenho feito, além de lecionar e atuar como gestora pública, é caminhar por esse país formando profissionais da educação na  perspectiva antirracista. E posso afirmar que tenho visto mudanças incríveis desde então, impulsionadas pela implementação da lei 10.639/03, conquista do Movimento Negro brasileiro, com força de alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96), em seus artigos 26-A e 79-B, tornando obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.

Sou uma ativista do Movimento Negro Unificado (MNU) praticamente a minha vida inteira e, como nos lembra Nilma Lino Gomes, o Movimento Negro é educador, e dessa forma, seguirei confiante nos processos libertários brilhantemente iniciados pelos meus ancestrais e impulsionados por pessoas negras em seus constantes e provocadores levantes de ondas civilizatórias contemporâneas e revolucionárias, que têm buscado a equidade de forma absolutamente inspiradora e contagiante.

Bailarina é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Bailarina é parte do livro infantil Tayó em Quadrinhos, de Kiusam de Oliveira (Foto: Reprodução)

Djamila: Como enxerga o impacto psíquico na vida das crianças negras que agora conseguem dar contorno e nomear as situações de racismo e exclusão? Acha que
a Tayó pode dar o exemplo?

Kiusam: Eu enxergo tal impacto como sanação e cura. Tayó é o exemplo de criança negra empoderada, pois foi preparada para assim ser. Penso que o poder supremacista branco é vitorioso quando consegue o controle psicológico de alguém, muito mais do que através do controle físico, pois podemos estar presos às correntes, enquanto nossas almas seguem livres. E é isso que tem acontecido desde as infâncias do povo negro brasileiro: somos doutrinados a nos odiar, intensa e profundamente.

Neste sentido, tenho pensado muito na importância de “tayorizar” as infâncias negras, isto é, o conhecimento do trato da complexidade conceitual e modus operandi no campo das relações étnico-raciais é fundamental a fim de que a consciência racial da criança negra seja despertada, antes de cair na arapuca social já armada para capturá-la.

Viver recorrentemente o racismo traz, como consequência, rupturas psíquicas que podem perdurar a vida inteira, levando a criança se tornar jovem e depois pessoa adulta sem que consiga se assumir e/ou entender-se pessoa negra, buscando a aniquilação física em última instância, tentando deixar de ser o que se é para tornar-se um arremedo de si mesma, tendo como meta, transformar-se em uma pessoa branca.

Possibilitar caminhos para a construção de um contra-corpo afrodescendente, que obviamente por si só é contra-hegemônico, sagaz, conscientemente transgressor,  revolucionário e insubmisso é fundamental, tanto quanto possibilitar estratégias para que a criança negra reconheça seu corpo como um templo, território sagrado. Nesse sentido,  (re)significar esse corpo-templo para um corpo-templo-resistência se faz necessário para que desde cedo a criança compreenda que resistir às atrocidades impostas ao seu corpo sagrado bem como de seu coletivo é ato educativo divino. Se a tesoura aponta a lâmina, que corte a raiz da barbárie.

"Possibilitar caminhos para a construção de um contra-corpo afrodescendente é fundamental, tanto quanto possibilitar estratégias para que a criança negra reconheça seu corpo como um templo, território sagrado."

Kiusam de Oliveira