Saúde

Por Por Vanessa Centamori

Céline Dion, a famosa cantora da música My Heart Will Go On (tema do filme Titanic, de 1997), sofre da raríssima Síndrome da Pessoa Rígida (SPR), uma condição neurológica que causa sintomas como espasmos musculares dolorosos e rigidez muscular. No documentário Eu Sou: Céline Dion, lançado no final de junho, a canadense relata as dificuldades que enfrenta por conta da doença. “Ela está nos músculos, nos tendões, nos nervos. Você não consegue ver nada, não é visível”, explica.

Mas Céline não está sozinha. Segundo classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS), as doenças consideradas raras atingem somente um a cada 2 mil indivíduos, aproximadamente; porém, essa categoria engloba mais de 7 mil condições, como a distrofia muscular de Duchenne, que prejudica a musculatura esquelética e cardíaca, e a fibrose cística, que atinge o sistema respiratório e o aparelho digestivo. Assim, estima-se que cerca de 300 milhões de pessoas vivam com doenças raras ao redor do mundo.

O diagnóstico dessas condições normalmente é difícil. É o que ressalta o médico João Bosco Oliveira, coordenador do Genomas Raros, o maior projeto de genômica de doenças raras do Brasil. “Você tem pelo menos seis consultas diferentes; são, em média, dois ou três diagnósticos errados até chegar ao final. Isso causa um grande consumo do sistema de saúde, o sofrimento na família do paciente e aumento de morbidade”, ele afirma, em entrevista a GALILEU.

É aí que entra a genômica. De acordo com o Ministério da Saúde, 80% das doenças raras decorrem de fatores genéticos — as demais resultam de causas ambientais, infecciosas, imunológicas, dentre outras. Por isso, estudar o genoma humano, o conjunto de todo o material genético localizado no núcleo das nossas células, pode revelar pistas que levam a um diagnóstico.

Lançado em 2020, o Genomas Raros sequencia os genomas de indivíduos com doenças raras e síndromes de risco hereditário de câncer. Ao todo, mais de 8 mil pacientes já foram sequenciados e quase 4.600 laudos foram liberados. O projeto, que apoia 22 centros ativos em todas as regiões brasileiras — incluindo hospitais universitários, privados e públicos —, é uma iniciativa do Ministério da Saúde e do Hospital Israelita Albert Einstein, que faz parte do Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão (Genomas Brasil). A empreitada é financiada pelo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), uma aliança selada em 2009 entre seis hospitais de referência no Brasil e o Ministério da Saúde.

Um dos objetivos do Genomas Raros é contribuir para criar o maior banco de dados genéticos brasileiro de pacientes com doenças raras e risco hereditário de câncer, que poderá ser acessado por instituições de pesquisa e pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “O projeto tem um cunho assistencial, de complementar o que já existe na estrutura do SUS, e um cunho de pesquisa, em que também investigamos as causas dessas doenças”, considera Bosco. Na entrevista a seguir, o médico geneticista explica o funcionamento do Genomas Raros e sua importância para o avanço da saúde nacional.

Como o sequenciamento genômico pode contribuir para diminuir a jornada do paciente até o diagnóstico?

Ele pode contribuir enormemente. Porque se estima que em torno de até 80% das doenças raras tenham como causa uma questão genética, uma alteração do DNA. Então usamos uma ferramenta abrangente. Antigamente, [pensávamos:] “Ah, acho que é tal gene, que é tal doença”. A gente passou dessa fase. Usar o sequenciamento como o do genoma completo, sequenciar todos os genes do indivíduo — mais de 20 mil genes de uma vez só —, acelera bastante o caminho para o diagnóstico. E elimina essa odisseia de fazer muitos testes e ter um atraso no diagnóstico.

É pela causa genética ser a mais frequente das doenças raras que a adoção desse tipo de tecnologia transforma a vida do paciente. Você passa a se preocupar com outros aspectos, e não com qual é o nome da sua doença ou qual é o prognóstico dela. Você passa a se preocupar quanto ao que fazer; quanto a aconselhar a família e tentar tratar da melhor forma.

Você poderia detalhar melhor como funciona a participação da população no projeto Genomas Raros?

Quando os pacientes que precisam de assistência escrevem para nós, a gente fornece a lista dos centros [de sequenciamento de genoma] mais próximos da região em que vivem. E eles procuram assistência; vão para o ambulatório pertinente.

A gente não dá conta. Fizemos em torno de 8 mil e poucos sequenciamentos no triênio passado; completaremos em torno de 12 mil amostras até o final de 2026. Mas sabemos que a necessidade do SUS estimada por ele mesmo é de quase 40 mil por ano. Então precisamos ter mais projetos dessa natureza.

Agora os pacientes procuram um centro e são recrutados; eles autorizam a participação na pesquisa, o laudo é retornado para o médico no centro e integra o prontuário médico deles — com o diagnóstico final ou a ausência dele, nos casos em que ele não for encontrado.

Além disso, quando é encontrada uma alteração, como numa família genética, podemos estudar os membros da família [do paciente]. Se eles quiserem saber, por exemplo, qual é a chance de uma condição recorrer em um segundo filho, podemos estudar o pai e entender qual o risco de isso acontecer em uma segunda gestação. Ou, se quisermos identificar algo precocemente em outro membro da família, o médico tem a liberdade de chamar essa outra pessoa [para um teste]. Então atendemos não somente o caso inicial, mas também membros da família, para complementar o estudo e fazer o aconselhamento e a identificação precoce da doença.

Quais são os principais desafios que você encontrou nesse caminho do desenvolvimento do projeto Genomas Raros?

Nas fases iniciais, para aplicar o estudo do genoma em escala grande, era necessário ter uma curva de aprendizado. Tivemos que se preparar para gerar muitos dados. Você vê, hoje em dia, a gente sequencia 6 trilhões de bases de DNA em 72 horas; são 56 genomas em três dias. Com um equipamento novo, serão 56 genomas em torno de 24 horas.

Então, primeiro, tivemos que preparar a infraestrutura física. Depois, tivemos que preparar uma infraestrutura de bioinformática para processar, catalogar, fazer as correlações desses dados com as doenças. E um terceiro grande desafio foi encontrar e treinar a força de trabalho para fazer a parte final — ainda insubstituível —, que é de analisar os dados, relacionar com a clínica e escrever um relatório que seja compreensível para os médicos.

Outro desafio foi engajar os centros. Demoramos um tempo para treiná-los, para saber interpretar o resultado de um teste genético, conhecer as limitações. Tudo isso foram fases que fomos amadurecendo ao longo dos últimos quatro, cinco anos. E agora conseguimos fazer isso em maior escala no país agora.

A gente descreveu em manuais como é feito o sequenciamento e a análise e transferiu isso para o Ministério da Saúde também, para eles utilizarem isso como base em outros projetos. Escrevemos todas essas práticas, aprendizados, desafios.

Como você acha que o Genomas Raros pode ajudar na diminuição dos custos da saúde pública, do SUS, mais para frente?

Os custos são sempre um desafio. Tem o custo médico, de processamento de informática, de manutenção do equipamento, e o do próprio teste. Os valores estão caindo; quando começamos, um [sequenciamento de] genoma custava mais de US$ 1 mil fora do país, e em torno de US$ 2 mil aqui. Agora, com a nova leva de equipamentos, a perspectiva é que a gente tenha [sequenciamentos de] genomas em torno de US$ 200.

“Usar o sequenciamento do genoma completo acelera bastante o caminho para o diagnóstico. E elimina essa odisseia de fazer muitos testes e ter um atraso”
— João Bosco

Parte do esforço do Genomas Raros também foi testar tecnologias. Testamos tecnologias [das empresas] Illumina e Complete Genomics; queríamos ver se são maduras e adequadas o suficiente para implementação. Isso é uma forma de colaborar — além da colaboração direta, que é o investimento no hospital — para investir na logística, no sequenciamento, no laudamento. E isso também deixa um legado. Todas essas pessoas ficam treinadas; se o projeto não existir mais daqui a um triênio ou dois, teremos um legado de força de trabalho que poderia ser absorvido pelo SUS diretamente, se fosse necessário, para continuar a tarefa.

Tem algum tipo de inovação tecnológica que o projeto ainda pretende trazer para o campo da genômica?

Sim, há pelo menos duas áreas de inovação que queremos levar ao público geral. Um deles é passar a estudar não somente um gene único, como um causador de doença rara, mas calcular e entregar para os pacientes os riscos de algumas condições comuns neles, como o de infarto. Ou seja, calcular os escores de risco poligênico.

Por exemplo, 15 ou 20% dos nossos pacientes têm alguma forma de suscetibilidade de berço a ter o câncer. Essas são chamadas síndromes do risco hereditário de câncer. Só conseguimos identificar um gene suspeito em torno de 15% desses pacientes [quando estudamos genes únicos].

Mas a gente está trazendo agora os escores de risco poligênico para análises de câncer de mama, em que não é uma alteração única que causa um risco grande [de desenvolver a doença], mas sim uma soma de pequenas modificações de DNA que se adicionam e deixam você no espectro de “muito risco, risco normal ou risco baixo”. Queremos retomar isso para ajudar um público ainda maior; a adição dos escores de risco poligênico aumenta o percentual de pessoas para as quais conseguimos classificar, estratificar corretamente o risco de ter um câncer. Se sair de 15% dos pacientes, vai para 25% deles, ou pelo menos 30%, quando categorizamos como doença de “alto risco”. E isso vai permitir um esquema diferente de prevenção — ressonância de mama junto com mamografia ou colonoscopia intensiva.

“Se o projeto não existir mais daqui a um triênio ou dois, teremos um legado de força de trabalho que poderia ser absorvido pelo SUS diretamente”
— João Bosco

Então, com a área de tecnologia, queremos trazer os escores de risco poligênico para algumas condições e retornar dados de farmacogenômica. Esse ramo estuda genes que afetam o metabolismo de drogas. Como 30% da nossa coorte é de pacientes neurológicos que usam antidepressivos ou anticonvulsivantes, ou pacientes com câncer que podem usar opioides, sabemos que alterações em certos genes determinam se um paciente metaboliza rápido demais, e aí a droga que ele toma deve ter a dose ajustada. Ou, se o paciente metaboliza muito pouco e pode ter efeito colateral, ele precisa de um ajuste da droga ou da troca de categoria dela. Também queremos tentar retornar [resultados] para ajudar no tratamento do paciente.

De modo geral, o que você acha que são os desafios do país para tornar os testes genéticos mais acessíveis?

Temos muitos desafios. Estivemos em uma reunião recente na Câmara Técnica Assessora de Doenças Raras, do Ministério da Saúde, observamos alguns números. A gente tem uma necessidade de 40, 50 mil testes [genéticos], pacientes por ano, para fazer diagnóstico. Agora, com o Genomas Brasil, criamos uma rede com capacidade de geração de dados; mas ainda temos dificuldades na parte de análise e laudamento. Ou seja, a interpretação de dados é um gargalo; precisaremos preparar uma força de trabalho para fazer isso. Esse foi um dos objetivos que nós mesmos nos impusemos esse ano.

“[Queremos] passar a estudar não somente um gene único, como um causador de doença rara, mas calcular os riscos de condições comuns”
— João Bosco

O segundo gargalo que observamos é que precisamos de pesquisas, de dados que mostrem se um estudo, além de eficiente do ponto de vista diagnóstico, também é custo-efetivo. No SUS, temos dificuldades de financiamento, obviamente; e isso também vemos no sistema privado. Temos que ter em mente esse aspecto do custo.

Então, obviamente, financiamento e força de trabalho preparados são dois gargalos principais para trazer [o teste genético] para o SUS. Estamos tentando uma pequena colaboração, pelo menos indicando em que cenários clínicos ele vai ser custo-efetivo, e estamos aumentando o pool de pessoas treinadas. Vai ter um tempo ainda para poder incorporar essa informação definitiva dentro do SUS. Por enquanto, a ideia era se virar com financiamento de pesquisa; mas a gente espera que, nos próximos três anos, isso comece gradativamente a ser migrado para dentro do SUS nos cenários em que a gente vê que é custo-efetivo. Tem que ter ganho não somente de qualidade, mas também de valor.

Como você enxerga o futuro da genômica no Brasil?

Nos últimos anos, a genômica no Brasil realmente começou a ser estruturada; ou seja, os prospectos são muito bons. Se você olhar para a América Latina, verá que nosso programa é muito maduro; houve um esforço grande. O Ministério da Saúde colocou dinheiro, e os hospitais [privados], como o Albert Einstein, Moinhos de Vento, Beneficência Portuguesa e Oswaldo Cruz, fazem parte do Proadi-SUS e também estão investindo. Vejo que realmente entramos em uma era madura de aplicação genômica. Acredito que a gente vai começar a usar essa ferramenta de forma rotineira no diagnóstico de doenças raras.

“Há uma chance boa de o Brasil fazer uma conversão [na genômica] da mesma forma que a Inglaterra fez”
— João Bosco

O segundo salto vai ser quando nós começarmos a aplicar isso nas doenças comuns. Isso vai nos ajudar a direcionar o esforço para o paciente que está sob maior risco. Imagina: a gente aplica uma avaliação genética que é de custo reduzido na população do ambulatório de cardiologia, e consegue identificar aqueles que têm 200, 300% mais chance de morrer de infarto do que outros indivíduos. Então, poderemos direcionar o esforço para ter um melhor resultado, para estratificar melhor [esses pacientes]. Por exemplo, vamos identificar quem tem a maior tendência a ter diabetes, e aí fortalecer a prática de dieta, de atividade física, com esse paciente. Sabemos que prevenir vai ser sempre mais eficaz e mais barato do que tratar um infarto ou um derrame lá na frente. Essa migração da genômica para as doenças comuns também vai trazer uma grande oportunidade.

E com o projeto Genomas Brasil agora, com todo mundo engajado, acho que há uma chance boa de o país fazer uma conversão da mesma forma que a Inglaterra fez. Lá começou com um projeto de pesquisa, o 100,000 Genomes Project*, que pôs resultados em prática e já está andando com essas outras fases. A Inglaterra é um grande exemplo de como isso pode ser feito. E eu vejo com muito bons olhos [o futuro da genômica no Brasil], estamos caminhando na direção correta. Espero que esses esforços dentro do Ministério da Saúde e a eventual troca política de lideranças não afetem a direção com que o programa vai, porque ela é muito boa atualmente. Isso tudo nos inseriu no panorama mundial da genômica nos últimos anos.

* O 100,000 Genomes Project sequenciou 100 mil genomas de aproximadamente 85 mil pacientes do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido afetados por doenças raras ou câncer. O recrutamento dos participantes foi finalizado em 2018, mas pesquisas e análises ainda estão em andamento. O projeto afirma que 18,5% dos dados levantados já foram convertidos em ações para ajudar pacientes.

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