Mulheres das Estrelas

Por Mulheres das Estrelas

Textos das astrônomas Ana Posses (@astroposses) e Duilia de Mello (@dudemello) sobre o fascinante mundo da astronomia

Já parou para pensar que, além de sermos pequeninos dentro do universo, somos também feitos de um tipo de matéria que não chega a 5% do que o universo é composto? A matéria escura e a energia escura compõem os outros 95%.

A matéria escura é um tipo de matéria que nem nós nem qualquer outro aparato consegue “ver”. Já a energia escura é uma forma de energia que tampouco conseguimos detectar, mas que explica por que o universo está se expandindo de maneira tão acelerada.

Mas ela está mesmo entre nós? Bem, a resposta não é simples e precisamos de um telescópio espacial para testar isso. Quem nos ajudará nesse desafio é a missão Euclid, que foi lançada no último dia 1º de julho pela Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês).

O astrônomo brasileiro Arthur Loureiro está envolvido com o projeto desde o início do seu doutorado, em 2015, na University College London, na Inglaterra, e acompanhou o lançamento no centro de controle da ESA. "Foi um momento indescritível da minha vida. Foi maravilhoso ver a tensão na sala, quando o foguete deu o 3,2,1 e foi. Não dava para ouvir a respiração de ninguém”, relata Loureiro à coluna.

Hoje cursando seu pós-doutorado no Centro Oskar Kleinda, na Universidade de Estocolmo (Suécia), ele está diretamente envolvido nas técnicas de medição do espectro de potência de galáxias e lenteamento gravitational fraco, o que é crucial para extrairmos as quantidades de matéria escura e energia escura. "O Euclid irá mudar completamente a nossa visão do cosmos, assim como foi com o lançamento do Hubble", afirma.

O pai da geometria e o lado invisível do universo

Na cidade de Alexandria, por volta de 300 a.C., o matemático Euclides era um exímio professor. A partir de seus estudos, desenvolveu os principais postulados da geometria euclidiana. Lembra das aulas em que você precisava calcular os ângulos de triângulos? Você estava seguindo os ensinamentos de Euclides.

Euclides, o matemático — Foto: Wikimedia Commons
Euclides, o matemático — Foto: Wikimedia Commons

Por ser considerado o pai da geometria — área da matemática dedicada ao estudo do espaço e das figuras que o ocupam —, o grego foi escolhido para batizar a nova missão da ESA. Afinal, a quantidade de matéria e energia escuras modificam a geometria do tecido espaço-tempo.

Lembrando dos estudos de geometria e trigonometria, a soma de todos os ângulos de um triângulo sempre dá 180 graus. Mas, se o triângulo for esférico, ou seja, estiver curvado como em cima de uma esfera ou sela de cavalo, a soma não será mais 180.

Imagine que você queira fazer um triângulo em proporções cósmicas. Você está na Terra, um amigo seu está na galáxia longínqua A e outro na galáxia B. Cada um aponta um potente laser para as duas galáxias onde estão seus amigos, e os feixes formam um triângulo. Esse triângulo seria plano como uma folha de papel?

A resposta é “não”, simplesmente porque, dependendo da quantidade de matéria e energia escuras, o espaço-tempo se curvaria a ponto dos triângulos virarem algo como uma bola ou uma sela (ou seja, a soma dos ângulos ser maior ou menor que 180 graus).

De cima para baixo: um universo esférico ("riemanniano" ou de curvatura positiva), um universo hiperbólico ("lobachevskiano" ou de curvatura negativa) e um universo plano ou de curvatura 0 — Foto: Wikimedia Commons
De cima para baixo: um universo esférico ("riemanniano" ou de curvatura positiva), um universo hiperbólico ("lobachevskiano" ou de curvatura negativa) e um universo plano ou de curvatura 0 — Foto: Wikimedia Commons

Mas como veremos o invisível? Olhando para o visível! O telescópio irá captar a luz visível e infravermelha. Esse grande mapeamento vai englobar pouco mais de um terço do céu noturno.

As imagens terão bilhões de galáxias a diferentes distâncias. Como a luz demora para chegar até aqui, quanto mais distante uma galáxia, mais no passado ela está. Com Euclid, chegaremos a quando o universo tinha apenas 2 bilhões de anos (hoje, ele tem 13,7 bilhões de anos).

Onde está a matéria escura?

Conforme falamos, não vemos a matéria escura, apenas sentimos sua influência gravitacional. Astrônomos acreditam que a matéria escura foi a força motriz para formar as grandes estruturas no universo.

Como vimos nas colunas anteriores, o universo primeiro era homogêneo. Com a formação das galáxias, elas se juntaram em aglomerados de galáxias ou ficaram em regiões filamentares chamadas teias cósmicas.

Para procurar essa matéria escura, Euclid buscará lentes gravitacionais. A matéria escura se comporta como uma lente de óculos. Quando muito aglomerada, ela causa uma grande distorção no espaço-tempo, e a luz que a atravessa tem seu caminho modificado.

O resultado é que, ao vermos um aglomerado de galáxias, por exemplo, vemos também uma grande quantidade de galáxias tortas e arqueadas que não são do aglomerado, mas que tiveram sua luz distorcida por ele.

A gravidade de uma galáxia vermelha luminosa (LRG) distorceu gravitacionalmente a luz de uma galáxia azul muito mais distante. Mais tipicamente, essa curvatura de luz resulta em duas imagens discerníveis da galáxia distante, mas aqui o alinhamento da lente é tão preciso que a galáxia de fundo é distorcida em uma ferradura, um anel quase completo. — Foto:  ESA/Hubble & NASA
A gravidade de uma galáxia vermelha luminosa (LRG) distorceu gravitacionalmente a luz de uma galáxia azul muito mais distante. Mais tipicamente, essa curvatura de luz resulta em duas imagens discerníveis da galáxia distante, mas aqui o alinhamento da lente é tão preciso que a galáxia de fundo é distorcida em uma ferradura, um anel quase completo. — Foto: ESA/Hubble & NASA

Essas galáxias distorcidas são galáxias mais distantes, que estão ao fundo do aglomerado, porém suas luzes foram desviadas e distorcidas pelas lentes gravitacionais, ou seja, pelo aglomerado.

Mas isso não acontece só com aglomerados de galáxias. Dependendo da quantidade de massa e de matéria escura de uma galáxia ou de um par de galáxias, também é possível ver o efeito de lente gravitacional causado na luz das galáxias de fundo, mas de maneira menos intensa.

É analisando esses lenteamentos fortes e fracos que conseguimos dizer em quais locais há mais e menos matéria escura. Assim, também podemos fazer um mapa tridimensional e em diferentes momentos do universo de onde está essa parte da matéria que não conseguimos ver.

Como a expansão do universo aconteceu?

Ao longo dos bilhões de anos, as galáxias evoluíram e, pouco a pouco, foram se aglomerando. Ao mesmo tempo, porém, o universo foi se expandindo. Com Euclid, entenderemos como essa expansão aconteceu e quais quantidades de matéria escura e energia escura foram necessárias para chegar às aglomerações que vemos no universo recente.

Se a expansão foi muito rápida, as galáxias não se aglomeraram com tanta facilidade; se ela foi lenta, a interação gravitacional entre as galáxias permite que estejam hoje mais próximas.

Próximos passos

Essas são apenas algumas das diversas descobertas que o Euclid está pronto para fazer nos próximos anos. Até o momento, ele está em uma viagem de 30 dias rumo ao ponto onde começará a observar. Serão três meses de calibração dos instrumentos até a equipe começar o mapeamento do céu, que deverá durar dois anos.

Euclid foi lançado ao espaço em 1º de julho de 2023 — Foto: Youtube/ESA
Euclid foi lançado ao espaço em 1º de julho de 2023 — Foto: Youtube/ESA

A missão dá início a uma nova era na astronomia, explorando os componentes invisíveis do universo. “No fim, o lançamento deu certo, o pessoal da ESA fez um trabalho maravilhoso. Foi um sentimento de alívio, mas agora é o sentimento de ‘vamos arregaçar as mangas e entregar a ciência que prometemos’”, afirma Arthur Loureiro.

Em 2027, será a vez do telescópio espacial Nancy Grace Roman partir para o espaço. Ele promete revelar um pouco mais sobre esses componentes fundamentais para a existência do universo.

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