Minha atividade clínica como psicólogo sempre foi diferente daquela imagem clássica do terapeuta escutando um paciente e dizendo, de repente, uma frase de efeito que tudo transforma. Não, isso não existe, minha gente, terapia é tempo, transpiração emocional e dedicação aos nossos pontos mais contraditórios. Eu sempre fiz clínica de família e casal, um encontro de intensos diálogos com todas as pessoas envolvidas numa determinada questão que inclui os dois ou o grupo familiar.
Nesta época do ano, os terapeutas de casal e família costumam ser procurados para debater questões adormecidas e adiadas nas relações familiares e conjugais, tensionadas pelas festas de fim de ano. Entre o Natal e o Réveillon, há uma cobrança social de adequação a um padrão de celebração, festa, união entre os parentes e prazer na convivência. Esta imagem se congela na história de muita gente como uma espécie de pesadelo angustiante, porque nestes casos há muito mais abismos que encontros.
A chegada da decoração verde e vermelha nos shoppings é um gatilho para o mal-estar que antecipa a possibilidade de convergência não com o sorriso do reencontro, mas com a tensão dos climões.
“Onde vamos passar o Natal?” deixou de ser, nos últimos anos, uma pergunta que bastava como debate sobre a equidade entre as duas presenças nas festas das famílias de origem. O que antes se resolvia com o “um ano na minha família e outro, na sua”, agora é tema imensamente mais complexo. As festas de fim de ano estão apontando para os desencontros, as fissuras, os afastamentos, as perdas de intimidade e até mesmo os rompimentos com parentes que, por exemplo, manifestaram discordâncias de voto que revelavam impossibilidade de diálogo sem que a violência se estabelecesse como padrão.
Há um luto interminável nas famílias brasileiras. Digo interminável porque ele não se resolve com o corte definitivo do relacionamento. Relações íntimas que fundaram nossas identidades nos afetarão para sempre – e não adianta mentir para nós mesmos, porque terá sido mesmo a pior mentira.
Festas não deveriam ser espaço de obrigação, muito menos de constrangimento. Sob a égide de “mas é noite de Natal”, é possível se viver violências inesquecíveis. Vale repensar acordos, pactuar limites saudáveis para a convivência naquela noite, caso se opte pela presença no encontro, apesar e além das crises relacionais. Vale ter conversas difíceis antes do dia 24. Vale tentar, sim.
Mas também vale não estar. A sacralidade da data não pode ser maior do que a preservação da mínima saúde mental entre os seus frequentadores. Noites felizes regadas a amor não reestreiam magicamente em cima de cicatrizes que ainda doem demais.
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