Um Só Planeta

De represas a usinas, pontes a prédios e estradas à argamassa, o cimento é um elemento de extrema importância para a arquitetura e construção civil. Ele também é o principal componente do concreto, o material construtivo mais utilizado no mundo.

Acontece que a produção de cimento representa cerca de 8% das emissões de gás carbônico CO² no mundo, o que contribui diretamente para o efeito estufa e à crise climática. Para ilustrar melhor, se a indústria fosse um país, seria o terceiro maior emissor do gás – atrás apenas da China e dos Estados Unidos.

Por esta razão, muito se fala no cimento e no concreto como vilões da sustentabilidade no setor da construção civil. Conversamos com três especialistas no tema para entender se isso é verdade, os riscos associados ao material e a existência de alternativas mais sustentáveis.

Por que o cimento é prejudicial ao meio ambiente?

O cimento é prejudicial ao meio ambiente porque, no processo de fabricação do seu principal componente – o clínquer –, é necessário decompor quimicamente a rocha calcária. Trata-se de um processo muito energeticamente demandante, que queima bastante combustível e, como consequência, gera uma grande quantidade de CO².

Essa etapa da produção do cimento é responsável por mais de 90% das emissões atribuídas ao material, conforme explica Luiza Bueno Royer, arquiteta do escritório Selva Urbana (@selva.urb). "O clínquer é uma mistura de calcário moído, argila, minério de ferro e cinzas, que é aquecida em fornos rotativos, a 1400 ºC, e resulta em grandes quantidades de CO², sendo liberadas na atmosfera quando produzido. No final do processo, ele é resfriado, moído e misturado ao calcário de gesso, tornando-se cimento", afirma.

Os cimentos com maior concentração de clínquer são os mais danosos, pois demandam mais queima de combustível, portanto, poluem mais — Foto: Freepik / jcomp / Creative Commons
Os cimentos com maior concentração de clínquer são os mais danosos, pois demandam mais queima de combustível, portanto, poluem mais — Foto: Freepik / jcomp / Creative Commons

Há vários tipos de cimento e os que possuem maior quantidade de clínquer (este varia de 30 a 95% da composição final da mistura) são mais danosos. É o que diz Bruno Luís Damineli, professor doutor no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e coordenador do Laboratório de Construção Civil na mesma instituição.

"Cimentos com 95% de clínquer podem emitir, dependendo do processo de fabricação, quase uma tonelada de CO² por tonelada de material (pior dos casos)", diz ele, que vem trabalhando em formas sustentáveis de concreto desde seu doutorado, realizado na Escola Politécnica da USP.

A produção do cimento é um primeiro momento. Mas a execução do concreto, no qual aproximadamente 10% é cimento, também apresenta alguns pontos de atenção. É o caso do emprego de recursos naturais em excesso (a exemplo de areia, cascalho e água) e do desperdício de materiais, como a madeira das caixarias de formas, que geralmente não são reaproveitadas.

A fabricação do concreto, do qual aproximadamente 10% é composto por cimento, pode empregar recursos naturais em excesso e desperdiçar materiais — Foto: Unsplash / ���영 박 / Creative Commons
A fabricação do concreto, do qual aproximadamente 10% é composto por cimento, pode empregar recursos naturais em excesso e desperdiçar materiais — Foto: Unsplash / 준영 박 / Creative Commons

"Além disso, muita água é descartada nos lençóis freáticos ao final, o que resulta em erosão do solo e degradação da biodiversidade e dos ecossistemas", comenta Irina Biletska (@irinabiletskaarchitects), arquiteta ucraniana que trabalha com arquitetura orgânica, permacultura, bioconstrução e sistemas de engenharia sustentáveis.

Por fim, é preciso pensar na obra como um todo, até a sua demolição. Assim que é produzido, o concreto se torna um material inerte – portanto, quando se torna resíduo, é incapaz de se degradar, o que também contribui para os impactos à natureza.

Saúde humana

Como apontado, são vários os riscos ambientais associados ao cimento e concreto, mas é preciso levantar também a questão dos perigos à saúde humana. A produção e o manejo do cimento em pó libera uma poeira capaz de provocar irritações quando em contato com a pele, os olhos e as vias respiratórias.

Pessoas que manuseiam cimento devem ter cuidado com a inalação da poeira, que pode ser prejudicial à saúde humana — Foto: Freepik / wirestock / Creative Commons
Pessoas que manuseiam cimento devem ter cuidado com a inalação da poeira, que pode ser prejudicial à saúde humana — Foto: Freepik / wirestock / Creative Commons

"Isso sem falar nos problemas relacionados à inalação dessa poeira de cimento: alguns estudos estimam que 10 a 20 anos de exposição a ela podem gerar graves problemas pulmonares", diz Luiza, cuja atuação é voltada para desenvolvimento de projetos com baixo impacto ambiental.

Assim, pedreiros e demais trabalhadores devem usar máscaras e equipamentos de proteção individual para resguardar a sua saúde e evitar a exposição a esse material químico.

Há casos piores

Apesar da importância de entender o papel do concreto na crise climática, Bruno afirma que este não é o material de maior impacto e menos sustentável na construção. Ainda segundo ele, o consumo de cimento dentro do concreto é algo que varia de 260 kg a 400 kg para cada m³ de concreto (cada m³ de concreto tem aproximadamente 2300kg).

"Isso significa que pouco mais de 10% do concreto é cimento, de forma que o impacto deste material é muito diluído na formulação do concreto", diz.

O aço é um exemplo de material da construção civil mais emitente de CO² que o concreto — Foto: Unsplash / Mads Eneqvist / Creative Commons
O aço é um exemplo de material da construção civil mais emitente de CO² que o concreto — Foto: Unsplash / Mads Eneqvist / Creative Commons

Agora, um pouco de matemática: diante destes dados, tem-se que, em 2,3 toneladas de concreto, há aproximadamente 330 kg de cimento. Em uma tonelada de concreto, portanto, existe algo próximo de 150 kg de cimento.

Então, na pior das hipóteses, são emitidos 150 kg de CO² para cada tonelada de concreto produzida. Mas há casos piores. "O aço, por exemplo, emite de duas a cinco toneladas de CO². O alumínio pode chegar a 12 toneladas de CO² por tonelada de material. As emissões da madeira, sim, podem chegar a negativas caso seja madeira plantada – por outro lado, a nativa extraída de forma ilegal pode gerar mais de 15 toneladas de CO² por tonelada", explica Bruno.

Assim, em uma conta final, o concreto ainda acaba impactando menos o ambiente do que a maioria dos materiais de construção.

Conheça as alternativas

O bambu é um exemplo de material alternativo ao concreto que pode ser usdo para estruturas de escala humana em construções — Foto: Unsplash / Maksim Shutov / Creative Commons
O bambu é um exemplo de material alternativo ao concreto que pode ser usdo para estruturas de escala humana em construções — Foto: Unsplash / Maksim Shutov / Creative Commons

É preciso entender que o concreto ainda será bastante usado, tendo em vista que a população urbana continua crescendo, portanto, obras de grande infraestrutura, que demandam o uso do material, fazem-se necessárias.

Outro fato relevante é que estamos abordando uma indústria que movimenta o PIB de diversos países ao redor do mundo e, no Brasil, também tem uma produção expressiva.

Mas também é verdade que cresce a conscientização a respeito de processos mais verdes, mesmo dentro do setor da construção e especialmente em obras e estruturas de menor grandeza.

As alternativas mais sustentáveis, segundo Bruno, são a madeira plantada e controlada industrialmente, que possui emissão neutra ou negativa. Irina acrescenta outras opções à lista, como a madeira laminada colada e o bambu. "Normalmente é difícil evitar o uso de concreto na fundação, mas, já a partir do nível zero, a maioria das obras de um ou dois andares podem ser feitas de madeira, terra ou bambu", comenta.

Interior de uma igreja nos Estados Unidos construído com madeira laminada colada (MLC) — Foto: Wikipedia / Carol M. Highsmith / Wikimedia Commons
Interior de uma igreja nos Estados Unidos construído com madeira laminada colada (MLC) — Foto: Wikipedia / Carol M. Highsmith / Wikimedia Commons

Luiza, por sua vez, afirma ser possível substituir paredes de alvenaria de tijolos ou blocos de concreto por paredes de vedação com sistemas de construção a seco.

"No caso de obras de menor porte, a bioconstrução (edificação com terra) é uma excelente alternativa, além de sistemas simples como o pau a pique, o COB e a taipa de pilão, que usam o solo como matéria-prima principal para execução de paredes estruturais, são incríveis, eficientes e duráveis quando bem executados", diz.

Outra possível vertente é exatamente diminuir o impacto do concreto. Nas pesquisas de Bruno, por exemplo, foi possível diminuir em até 70% o teor de cimento dentro de misturas de concreto, garantindo o mesmo desempenho, a partir de "engenheiramento" do material com uso de empacotamento de agregados, dispersão da pasta cimentícia e substituição de cimento por finos não reativos.

A madeira plantada e controlada industrialmente também é um material construtivo mais sustentável do que o concreto — Foto: Unsplash / Greg Rosenke / Creative Commons
A madeira plantada e controlada industrialmente também é um material construtivo mais sustentável do que o concreto — Foto: Unsplash / Greg Rosenke / Creative Commons

"Em um cenário assim, as emissões de CO² do concreto final ficam em torno de 60 a 65 kg de CO² por tonelada de concreto, mesmo se o cimento usado for aquele de emissão máxima (1 tonelada de CO² por tonelada de cimento). Se for utilizado cimento de menor impacto, este valor pode cair para menos da metade", diz.

Há também materiais cimentícios feitos com novos ligantes com emissão de CO² muito baixa, que substituem integralmente o cimento.

Mas, segundo Bruno, tanto estas últimas alternativas quanto as construções com terra ainda não apresentam difusão e adesão em larga escala. Assim, em médio prazo, a confecção de concretos com menor impacto será a alternativa mais usada para a diminuição dos impactos da cadeia da construção civil.

Como diminuir o impacto do cimento e do concreto

Já que o uso do cimento é uma realidade que se impõe e é difícil imaginar um cenário onde ele será 100% substituído, cabe a nós adotarmos posturas ativas para diminuir o seu impacto.

Para Irina, isso significa desenvolver projetos mais eficientes, que exijam menos do material e resultem em uma menor pegada de carbono. "Além disso, podemos investir em retrofits e tentar reutilizar as obras que já existem, em vez de demoli-las. Ou, então, reaproveitar de alguma forma o material demolido", diz.

Uma forma de diminuir o impacto do concreto no meio ambiente é reutilizar os resíduos de demolição em novas construções — Foto: Unsplash / kerry rawlinson / Creative Commons
Uma forma de diminuir o impacto do concreto no meio ambiente é reutilizar os resíduos de demolição em novas construções — Foto: Unsplash / kerry rawlinson / Creative Commons

Ainda que esse processo de reutilização demande energia para trituração e reposição do material na mistura, será um processo mais limpo do que uma nova produção de cimento e concreto.

Luiza acrescenta que a grande responsabilidade recai sobre as mega-indústrias, que deveriam trabalhar em alternativas para minimizar ou transformar essa grande quantidade de emissão de gases poluentes em seu processo de fabricação.

"Mas acredito que devemos começar por onde nos é tangível no momento. Penso que o papel dos arquitetos, engenheiros e construtores em propor sistemas alternativos para as edificações é de extrema importância", diz.

Segundo ela, é preciso lembrar que o cliente é leigo, especialmente em relação aos pormenores de uma obra, e cabe aos profissionais ensinar e propor o que for possível a fim de melhorar a pegada de carbono em seus projetos. Nesse sentido, a qualificação dos arquitetos e incentivo às pesquisas científicas também são importantes.

Projetos arquitetônicos eficientes podem reduzir custos, desperdícios e trazer escolhas mais inteligentes à obra — Foto: Unsplash / Daniel McCullough / Creative Commons
Projetos arquitetônicos eficientes podem reduzir custos, desperdícios e trazer escolhas mais inteligentes à obra — Foto: Unsplash / Daniel McCullough / Creative Commons

"Acho válido o seguinte questionamento: ainda precisamos de concreto para fazer grandes pontes, prédios altíssimos e usinas, mas por que ainda estamos usando esse material para fazer casas, calçadas, móveis e piscinas quando já existem outras possibilidades?", provoca.

Outras práticas sustentáveis

Para adotar sustentabilidade em uma edificação, Luiza diz que a lista de pontos importantes a serem considerados é grande, mas que gosta de começar por um bom projeto. "É o único capaz de reduzir custos, desperdícios e trazer escolhas mais inteligentes para uma obra", defende.

"Para que a arquitetura e o setor da construção civil se tornem mais sustentáveis, um dos fatores fundamentais é a execução de projetos adequados ao uso, evitando que os edifícios fiquem obsoletos mesmo ainda em bom estado de conservação", completa Bruno.

Segundo Irina, o projeto arquitetônico também deve se apropriar de uma perspectiva bioclimática para reduzir o uso de sistemas de ar-condicionado, investindo em ventilação cruzada e iluminação natural.

"Apenas através do design inteligente nós conseguimos diminuir muito o uso de energia no dia a dia e também criar espaços mais saudáveis para os seres humanos e a vida em casa", afirma.

O uso dos sistemas de construção a seco (como steel frame, light steel frame, wood frame e MLC) pode ser outro caminho. Segundo Luiza, eles melhoram a eficiência energética das edificações e garantem uma obra limpa, precisa e extremamente rápida.

Uma das práticas sustentáveis que podem ser adotadas por arquitetos em seus projetos é a incorporação de paisagismo inteligente e telhados e paredes verdes — Foto: Unsplash / Ricardo Gomez Angel / Creative Commons
Uma das práticas sustentáveis que podem ser adotadas por arquitetos em seus projetos é a incorporação de paisagismo inteligente e telhados e paredes verdes — Foto: Unsplash / Ricardo Gomez Angel / Creative Commons

"Já conversei com empresas que migraram da construção tradicional para sistemas a seco por terem realizado estudos internos sobre seu desperdício em obra, e chegarem a impressionantes 25% a 30% de perda de materiais. Ou seja: da forma como construímos hoje, a cada três prédios executados, jogamos fora um", diz.

Ela lembra dos demais sistemas que compõem uma edificação de baixo impacto ambiental: desde coletar a água da chuva; passando por materiais que proporcionem melhor conforto térmico e acústico; coberturas mais eficientes; telhados e paredes verdes, visando reduzir a temperatura interna; sistemas de aquecimento e energia solar; sistemas de drenagem mais eficientes para casos de enchentes; projetos de paisagismo inteligentes; automação; eletros eficientes; etc.

Irina também sugere apostar em um sistema de saneamento ecológico verde, que use os efluentes de forma benéfica ao meio ambiente. Como exemplos, ela cita os círculos de bananeira, biodigestores e fossas de evapotranspiração. "Há de se pensar na demolição da casa. Quanto mais elementos biodegradáveis usarmos, mais fácil será promover destino a cada um deles", diz.

Por fim, vale usar os materiais de origem reciclada, recicláveis ou reutilizáveis, evitando o gasto de energia para uma nova produção e incentivando a economia circular no setor. No geral, se pudermos pensar nossas casas como um produto, que tem um ciclo de vida, com começo, meio e fim, já estamos fazendo um grande trabalho.

"Devemos lembrar que tudo que criamos e colocamos no mundo perdurará em funcionamento por muito tempo, e é muito mais vantajoso que isso funcione de forma eficiente, econômica e sem prejudicar o meio ambiente, e que, ao final, essa edificação possa ser desmontada e transformada em algo novo, minimizando ainda a geração de resíduos para o planeta", finaliza Luiza.

Um Só Planeta — Foto: Editora Globo
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