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Pouco mais de duas semanas após o acidente de helicóptero que matou Ebrahim Raisi, no final de maio, o anúncio dos candidatos aprovados para a sucessão do presidente iraniano surpreendeu pela presença de um nome: Masoud Pezeshkian, um médico alinhado aos reformistas, e que havia sido barrado da disputa de 2021, que levou Raisi ao poder. Com 42% dos votos no primeiro turno, e boas chances de derrotar o ex-chanceler Saeed Jalili nesta sexta-feira, o “doutor”, como é chamado pela imprensa local, precisou brigar para “certificar” suas credenciais reformistas, e para quebrar a apatia geral do eleitorado. Nem sempre com sucesso garantido.

Vindo do Azerbaijão Ocidental e um dos mais vocais representantes da etnia azeri, a segunda mais numerosa do Irã, Pezeshkian estudou medicina nos anos finais do reinado de Mohammad Reza Pahlevi, e foi para as linhas de frente na guerra Irã-Iraque (1980-1988), onde atuou como médico e como combatente. Após o fim do conflito, que deixou cerca de um milhão de mortos, se tornou cirurgião cardíaco e assumiu a direção da Escola de Medicina da Universidade de Tabriz em 1994.

Mas além do sucesso profissional, aquele ano marcaria sua vida pessoal e política de maneira definitiva: ele perdeu a mulher e um de seus filhos em um acidente de carro. Pezeshkian tomou a decisão de jamais se casar novamente, e de criar sozinho os outros três filhos do casal — dois meninos e uma menina —, algo que criou em torno de si uma aura de compaixão e resiliência, especialmente depois de entrar na vida pública.

No final dos anos 1990, em meio à expectativa por mudanças criada após a inesperada eleição do reformista Mohammad Khatami à Presidência, o “doutor” assumiu o posto de vice-ministro da Saúde, e se tornaria titular da pasta em 2001, quando Khatami foi reeleito, novamente com uma votação considerável, 77,1%.

Iranianas mostram os dedos marcados com tinta depois de votarem no segundo turno da eleição presidencial no Irã — Foto: RAHEB HOMAVANDI / AFP
Iranianas mostram os dedos marcados com tinta depois de votarem no segundo turno da eleição presidencial no Irã — Foto: RAHEB HOMAVANDI / AFP

Não foi um período simples, e ele era alvo recorrente de ataques de parlamentares conservadores e da própria base do governo: em 2003, sobreviveu a um processo de impeachment no Majlis, o Parlamento iraniano, no qual foi questionado sobre o uso de recursos do Banco Mundial para melhorar a qualidade dos serviços de saúde no país. Também foi acusado de permitir o declínio dos padrões acadêmicos na formação de médicos, e de não implementar políticas adequadas de tratamento para o elevado número de usuários de drogas, uma das maioires questões de saúde pública no país até hoje.

A chegada do populista Mahmoud Ahmadinejad ao poder, em 2005, o jogou para a oposição. Eleito deputado pela região de Tabriz, em 2006, o “doutor” se tornou uma voz contra a repressão do governo contra a dissidência. Em 2009, ano em que a reeleição de Ahmadinejad foi questionada nas ruas pelo chamado “Movimento Verde”, fez duros discursos no plenário, e não raro era interrompido por deputados governistas. Ao todo, ele foi eleito cinco vezes consecutivas para o Legislativo, e chegou a ocupar a vice-presidência da Casa entre 2016 e 2020.

Pezeshkian tentou concorrer à Presidência outras duas vezes: em 2013, quando desistiu no início da disputa, e em 2021, quando não foi aprovado pelo Conselho dos Guardiões. Mas ao receber sinal verde para concorrer em 2024, ele passou a ser alvo de escrutínio não apenas do campo conservador, contra quem concorreu nas urnas, mas também dos próprios eleitores que poderiam votar no dito reformista.

O “doutor” esteve ao lado de Khatami e de suas tentativas de modernizar o Irã e de melhorar os laços com o exterior, e na oposição defendeu figuras como o candidato derrotado por Ahmadinejad em 2009, Mir Hossein Moussavi, símbolo do Movimento Verde — durante a campanha, Pezeshkian usou a imagem e o nome de Moussavi, uma decisão criticado pela família do candidato, que está em prisão domiciliar desde 2011 e que defendeu o boicote à votação.

Ele defendeu o acordo internacional sobre o programa nuclear do país, firmado pelo moderado Hassan Rouhani em 2015 — um dos arquitetos do plano, o ex-chanceler Javad Zarif, integrou sua campanha —, é crítico das políticas sobre o uso do véu, e apoiou os protestos iniciados após a morte da jovem Mahsa Amini, em 2022. Contudo, assim como ocorreu com Moussavi, parentes dos mais de 500 mortos na repressão estatal criticaram o uso dos nomes de seus filhos, sobrinhos e irmãos como uma arma eleitoral do reformista.

Apoiadores durante comício do candidato reformista à Presidência do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã — Foto: ATTA KENARE / AFP
Apoiadores durante comício do candidato reformista à Presidência do Irã, Masoud Pezeshkian, em Teerã — Foto: ATTA KENARE / AFP

O maior “porém” em torno de Pezeshkian foi sua própria presença nas cédulas. Para muitos dos que se opõem ao regime, incluindo os que sofreram na pele a violência nas ruas e prisões, e que viram seus candidatos barrados pelas autoridades eleitorais no passado, qualquer votação na República Islâmica é ilegítima. Aliado à apatia relacionada à falta de melhorias econômicas e políticas no país, isso explica os baixíssimos níveis de comparecimento às urnas, os piores desde a Revolução de 1979.

Além de aceitar concorrer, Pezeshkian foi criticado por defender a manutenção do regime, por homenagear a Guarda Revolucionária — inclusive usando um uniforme no Parlamento — e por prestar lealdade ao líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei. Em março, ele sugeriu que só não foi desqualificado da disputa por causa da intervenção direta de Khamenei. Sua defesa das minorias étnicas, especialmente dos azeris e dos curdos, é apontada como um fator de risco para a estabilidade nacional, embora ele prometa governar o Irã para todos. Para quebrar as resistências, o "doutor" usou, além de suas credenciais alinhadas ao reformista, seu passado dedicado à administração pública, sua história de vida e a ausência de acusações de corrupção, algo raro na política iraniana.

Para analistas, a escolha por Pezeshkian, um reformista “conhecido” do regime, e que não deve questionar a autoridade de Khamenei se eleito, foi uma tentativa do líder supremo de mostrar algum tipo de “pluralidade” na disputa, depois dos vetos amplos e quase irrestritos de 2021, e de impulsionar o comparecimento às urnas. Taxas abaixo dos 50%, como nas últimas votações, levantariam questões sobre a legitimidade da República Islâmica, especialmente no exterior — em um discurso às vésperas do primeiro turno, Khamenei pediu que os iranianos fossem às urnas para “mandar uma mensagem aos inimigos”.

Segundo os números parciais, que sugerem um comparecimento novamente abaixo dos 50%, parece que a manobra, pelo menos neste sentido, deu errado.

“A inclusão do reformista Pezeshkian, que provavelmente foi autorizado a concorrer pelas autoridades para aumentar a participação eleitoral, não conseguiu barrar a tendência de declínio da participação”, afirmou a consultoria Eurasia Group, em análise na terça-feira. “Independentemente de quem ganhe o segundo turno, é claro que a maioria dos iranianos tem pouca fé no sistema de governo, considera as eleições uma farsa e é pouco provável que participe mesmo quando um reformista está nas urnas.”

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