Em “Procure vir antes do inverno”, um dos vídeos da artista Ventura Profana em exibição no Museu de Arte de São Paulo (Masp), vemos a fachada de uma casa simples, com ares de igreja evangélica, onde se lê “Tabernáculo da Edificação”. Simultaneamente, ouvimos uma conversa dela com a avó, que recorda episódios da década de 1970, quando ajudou a organizar uma congregação batista em Catu, na Bahia. Ventura elogia a dedicação da avó à “obra” e diz: “Tá vendo? E a senhora querendo que eu seguisse um caminho fácil.” “Eu, não”, responde a avó. “Eu quero que você seja pastor, não é um caminho fácil.”
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Ventura realmente não escolheu um caminho fácil: assumiu-se travesti. Mas, de certo modo, cumpriu o desejo da avó. Ela reivindica os títulos de pastora e missionária. Com as artes visuais e a música, procura criar obras que acolhem pessoas LGBTQIA+ e proclama um “evangelho do fim”.
— É o fim da condenação — explica a artista, que, além de ter vídeos no Masp até 18 de agosto, apresentou uma performance na Bienal de São Paulo ano passado e já foi selecionada pelo Prêmio PIPA. — Assim como aprendi com a dedicação das mulheres da minha família às suas igrejas, elas aprendem comigo a olhar de outra maneira para a fé, a não interpretar a Bíblia com uma política de ódio, mas com amor ao próximo, a si mesmo e a Deus. Para mim, Deus é sinônimo de vida.
Invertendo o discurso
Além de “Procure vir antes do inverno”, o Masp exibe outros três vídeos de Ventura: “A maior obra de saneamento”, sobre o embranquecimento da religião cristã; “Para ver as meninas e nada mais nos braços”, que celebra a irmandade de mulheres negras e travestis (que cantam “Oh Happy Day” e comem um bolo em formato de Bíblia); e “O poder da trava que ora”, no qual a artista aparece sendo tatuada numa posição que remete tanto à oração quanto ao sexo.
![Cena do vídeo “Procure vir antes do inverno”, em que Ventura Profana dialoga com a avó, uma senhora batista — Foto: Reprodução](https://cdn.statically.io/img/s2-oglobo.glbimg.com/6HjOuAT13C2GxLyXdMkh2Ki4kz8=/0x0:1920x1080/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2024/Q/t/gNBBe7QAm7hvVAqqCucw/ventura-profana-procure-vir-antes-do-inverno-2021-still-.jpg)
O projeto artístico de Ventura consiste em subverter o linguajar evangélico — o vocabulário dos fiéis, trechos da Bíblia e de louvores — para criar um novo discurso, capaz de “edificar” (termo usado nos púlpitos que significa levar conforto e orientação espiritual) populações estigmatizadas pelo fundamentalismo.
No disco “Traquejos pentecostais para matar o senhor”, ela gravou “Homenzinho torno”, canção ensinada às crianças nas igrejas sobre um rapaz cuja vida “endireita” após um encontro com a Bíblia. Na versão de Ventura, é a “trava” que ele encontra — e ela não endireita nada, só derruba. Em outra faixa, “Vitória”, ela profetiza “eternidade” e “reparação” a travestis perseguidas “que caminham incessantes no deserto”. “Nome de travesti tem poder”, canta Ventura, que em breve lança novo disco: “Tentaremos não nos esquecer.”
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— Muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+ vêm de lares evangélicos e uma culpa cristã absurda pesa na nossa vida emocional e espiritual. Precisamos transformar o jugo em júbilo — diz Ventura, com eloquência e vocabulários bíblicos. — Tento transformar a dinâmica de condenação em instrumento de libertação. Tal qual João Batista (personagem do Novo Testamento que batizou Jesus), sou uma voz que clama no deserto. Meu desejo é reavivar, no maior número de pessoas, a crença na liberdade.
Curador do Masp, David Ribeiro afirma que o trabalho de Ventura “dá conta de unir, de forma bastante criativa, dois universos tidos como antagônicos, a religião ou espiritualidade e as dissidências sexuais e de gênero”, permitindo à população LGBTQIA+ “acessar o sagrado sem restrições”.
— Ela se intitula pastora e missionária porque seu projeto está relacionado ao anúncio das palavras que são negadas a travestis e transexuais — diz Ribeiro. — Quando fala sobre a construção da imagem de Cristo ou tatua “família” na bunda, está brigando por aquilo que é recusado a esses corpos: igreja, fé, família.
Ruptura agridoce
Ventura foi apresentada à Primeira Igreja Batista em Catu aos nove dias de vida. Durante a vida, acumulou inúmeras responsabilidades na igreja. Aos 18 anos, teve início o que ela chama de “exílio”, um afastamento provocado pela resistência dos irmãos de fé à sua identidade de gênero. A artista descreve esta fase como uma “ruptura agridoce”, pois naquela época ela já começava a frequentar espaços da comunidade LGBTQIA+ e a experimentar com as artes — o que já vinha do tempo da igreja.
Recentemente, Ventura começou a participar do Oásis, uma comunidade de fé inclusiva no Rio, e se envolveu com movimento Novas Narrativas Evangélicas, que propõe uma espiritualidade não fundamentalista. Ventura conta que chegou lá com o pé atrás, perguntando a todos sobre questões que lhe eram caras.
— Estou num processo de reconciliação. Eu gosto dessa palavra — diz ela. — Por carregar a profanação no meu nome, muita gente acha que o meu desejo é reproduzir a violência de que fui vítima. Mas minha régua não é essa. Se o mundo não me quer e conspira contra mim, minha profanação será viver sete vezes mais. Meu trabalho é pela vida.