Cultura

Livro reúne contos inspirados em canções de Noel Rosa

‘Conversas de botequim’ homenageia compositor morto há exatos 80 anos

Henrique Rodrigues (à esquerda) e Marcelo Moutinho são os organizadores da coletênea de contos inspirados em canções de Noel Rosa
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Antonio Scorza
Henrique Rodrigues (à esquerda) e Marcelo Moutinho são os organizadores da coletênea de contos inspirados em canções de Noel Rosa Foto: / Antonio Scorza

RIO - Em 2014, na ocasião do lançamento de “O livro branco”, antologia de contos inspirados em canções dos Beatles, Ruy Castro manifestou sua desaprovação.

— Ele disse que se fossem contos inspirados em Noel Rosa tudo bem, afinal aqui não era Liverpool — conta Henrique Rodrigues, organizador do livro, que recebeu a provocação com bom humor. — Não é que era uma boa ideia?

A alfinetada de Ruy acabou, indiretamente, servindo de inspiração quando Rodrigues pensava com Marcelo Moutinho uma ideia para uma nova antologia de contos — os dois já organizaram separadamente algumas, com temas como as músicas da Legião Urbana, bairros do Rio ou telas de pintores brasileiros. Fãs de Noel Rosa, eles formataram então “Conversas de botequim” (Mórula), que reúne 20 contos inspirados em clássicos (e alguns lados B) do compositor da Vila. O livro — com lançamento marcado para sábado, na Folha Seca, com roda de samba.

Para a tarefa, convocaram escritores de diversos estilos, partes do país e gerações — o mais velho tem 74 anos, a mais nova tem 25. No livro, há contos inéditos de Aldir Blanc (“Feitiço da Vila”), Ivana Arruda Leite (”Boa viagem”), Marcelino Freire (”Gago apaixonado”), Nei Lopes (”Mulato bamba”), Veronica Stigger (”Festa no céu”), Ana Paula Lisboa (”Voltaste”), Flávio Izhaki (”Por causa da hora”), Luisa Geisler (”Dama do cabaré”) e Alexandre Marques Rodrigues (”Com que roupa”), entre outros, além dos prórpios organizadores. O olhar sobre as canções do Noel é tão variado quando a seleção de autores:

— A nossa escolha dos escritores tinha como objetivo essa variações. Temos um conto mais ligado ao contexto histórico da canção (”Mulato bamba”, no qual o próprio Noel é personagem) , outros usam aquele arco temático da música dentro de outra história, alguns outros partiram unicamente de um verso... — explica Moutinho. — Noel tinha duas marcas essenciais. A primeira era que ele foi um cara ligado à classe media mas que frequentava a Mangueira, o Salgueiro e outras favelas. Ele fazia essa ponte. E as letras de Noel tiram um pouco o fraque da música braisleira, é muito próxima da linguagem das ruas, retrata modismos, captura aquele momento da urbanização, fala do telefone, do cinema falado, das novas tecnologias.

Muitos contos se afinam a esse desejo de Noel de flagrar o contemporâneo. “Dama do cabaré” narra uma experiência gay num infeninho da Lapa, em alguns momentos usando o formato de diálogo no Whatsapp. “Três apitos”, de Moutinho, tem como personagem principal uma mulher soropositiva que trabalha como caixa no supermercado Extra onde funcionava a fábrica de tecidos da qual Noel fala na canção. “Por causa da hora” é o diálogo de um deputado com o cidadão que sugere um projeto de lei que acabe com o horário de verão — “novidade” com a qual o compositor da Vila fazia graça em 1931. O machismo da letra de “Mulher indigesta” é retorcido na leitura que Henrique Rodrigues propõe — quem acaba levando a tijolada na testa não é a mulher, como na letra original, mas o assediador.

— No livro reunimos escritores que não têm nada de anacrônicos, estão sempre falando de questões do nosso dia a dia — avalia Rodrigues. — Seria dificil eles darem outra roupagem, e sabíamos disso quando os convidamos. Em “Dama do cabaré”, Luisa Geisler escreve: “Parei na pista por uma eternidade longa o suficiente pra jogar Final Fantasy VII do começo ao final”. Essas analogias tecnológicas numa situação dramatica é bem da literatura dela.

“Conversas de botequim” acaba tocando no universo da violência doméstica (o belo e contundente “Pra que mentir?”, de Cíntia Moscovich), a morte (“Século do progresso”, de Raphael Vidal, “Quando o samba acabou”, de Fernando Molica, “Com que roupa?”, entre outros), além de temas já citados, como o feminismo, a homossexualidade, as trocas nas redes sociais e o estigma do HIV. Há espaço também o lirismo suburbano de Aldir, que faz uma homenagem ao pai e à Vila Isabel mítica e real em “Feitiço da Vila” — ou a tragicomédia “Tarzan, o filho do alfaiate”, de Sergio Leo. Chamado muitas vezes de cronista por canções como “Conversa de botequim”, Noel tem em sua obra letras que carregam estrutura de (micro)contos de enorme densidade — como “Último desejo”, que Maria Esther Maciel reconta no livro, de outra perspectiva, e “Voltaste”.

O repertório coberto pleo livro foge da obviedade na linha “o melhor de Noel” — algumas canções os organizadores só vieram a conhecer a partir das sugestões do escritores, que tinham total liberdade para escolher sobre qual iriam desenvolver seus contos. Por isso, não é difícil que o leitor se depare com contos sobre canções das quais ele não conhece a letra. Oportunidade de ouvir as músicas — todas acessíveis via busca rápida na internet.

— Os contos têm autonomia estética como peça literária, independem das músicas. Mas a gente espera que os leitores façam o passeio literário e musical, de ler e ouvir as canções juntos.

Moutinho completa:

— Sem a conexão com a música, os contos têm seus sentidos, que se modificam quando você conhece a música e estabele esse diálogo.

“Conversas de botequim”

Editora: Mórula.

Páginas: 192.

Preço: R$ 39.

Lançamento: Sábado, 6/5, às 14h, na Livraria Folha Seca — Rua do Ouvidor 37, Centro (2224-4159).