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Cultura

Debate sobre uso de playback acende à medida que pop brasileiro acompanha fórmulas internacionais

Vocais pré-gravados como recurso em shows viram tendência, mas ainda encontram resistência do público
Playback: truque para uns, recurso fundamental para outros Foto: Arte de André Mello
Playback: truque para uns, recurso fundamental para outros Foto: Arte de André Mello

RIO — Atire o primeiro microfone quem nunca saiu de um show debatendo com os amigos se o artista em questão fez ou não playback — basicamente, se cantou ou dublou uma gravação. O caso mais recente foi há exatas duas semanas, quando Anitta estreou no Palco Mundo do Rock in Rio . A carioca enfileirou hits e figurinos, arriscou coreografias complexas, rebolou até o chão , mas, no fim, acabou marcada por ter usado o que ela chamou de “base vocal” . Para piorar, no mesmo sábado a americana P!nk armou um circo , com direito a voo sobre a Cidade do Rock, e seguiu com voz firme até de ponta-cabeça.

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A discussão sobre o uso de recursos de voz saiu do público, mobilizou os artistas e ganhou muitas nuances desde então. A cantora paraense Aíla , por exemplo, fez questão de lembrar: Anitta e praticamente todos os artistas pop do Brasil e do mundo usam vocais pré-gravados no show, que se somam ao canto natural. Dependendo do esforço pedido pela performance, o volume de um ou do outro aumenta.

— A música pop mundial usa essas tomadas tecnológicas que a brasileira ainda está aprendendo a explorar — diz Aíla, adepta de pedais e efeitos para voz em seus shows recentes. — Pensamos nas referências incríveis da MPB, mas o pop é diferente. Parece que o artista não é tão bom se usar bases pré-gravadas. Mas são recursos usados há anos por Madonna , pela Lady Gaga .

Em tempo: ídolos do rock de arena, gente grande como Muse, Coldplay e U2 também usam bases pré-gravadas, tanto vocais e quanto instrumentais. Não chega ao “playback total” do Chacrinha, com bandas fingindo tocar suas canções, mas ouve-se um teclado que não está ali no palco, talvez um vocal feito no estúdio. A verdade é que é impossível um trio ou quarteto reproduzir sozinho o que é produzido em um estúdio — essa frustração foi o que levou, em parte, os Beatles a pararem de fazer shows. A própria voz do artista passa por tantos filtros, dobras e superposições que, sem playback, não tem como sair igual ao disco.

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Para complicar, existe hoje o live-mixing: uma pessoa no palco encarregada de disparar camadas sonoras em meio à performance, justamente para tornar um show diferente do outro. A cultura do DJ superstar, como David Guetta ou Alok, já está aí há bastante tempo acostumando as pessoas a se divertir com um sujeito que está ali disparando gravações.

Claro, ainda há bandas de pop e rock que tocam tudo. Mas que fique o alerta: é cada vez mais complexo estabelecer o quanto do que é ouvido é tocado na hora.

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Veterano na indústria, Alexandre Wesley, diretor de shows, festivais e relacionamento com marcas da Som Livre, levanta outra questão: em eventos como o Rock in Rio, há fãs de vários estilos, talvez não acostumados a um show pop.

— Quando um vocalista de rock usa qualquer recurso, ele esconde isso, porque é mal visto, o que não necessariamente acontece num público pop. Num festival como o Rock in Rio, há uma expectativa de troca maior, o público quer ver o quanto o artista está disposto a se entregar, o sacrifício — avalia o executivo. — Quando a Anitta encara provavelmente o show mais importante da vida dela e não canta tudo, o público se ressente.

O produtor Rick Bonadio, responsável por revelar e produzir diversos sucessos comerciais da música brasileira, desde os Mamonas Assassinas até Charlie Brown Jr., Rouge e, mais recentemente, Vitor Kley, entende a cruzada contra o playback como um elemento cultural do Brasil, onde o público “gosta de artistas que realmente conseguem segurar a onda cantando e dançando”.

Mas vê, em alguns casos, importância na crítica.

— É claro que nos Estados Unidos existe uma flexibilidade maior para essa aceitação, mas lá também tem muita crítica a artistas pop que fazem 100% playback, que não foi o caso da Anitta — diz Bonadio. — O público julga sem perceber que tem partes pré-gravadas, outras que foram cantadas, e isso não tira o valor do artista. A não ser alguns que realmente não conseguem cantar. Aí é legal o público criticar, porque faz o artista se esforçar a cantar e dançar, o que é plenamente possível.

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O debate torna-se ainda mais relevante diante da cara internacional que artistas pop brasileiras vêm ganhando nos últimos anos. Além de Anitta, nomes como Pabllo Vittar , Iza , Ludmilla e Gloria Groove misturam o sotaque e os ritmos nacionais a superprodução de estúdio, seguindo o que acontece lá fora.

Isso chega à voz do artista, que passa pelos tais artifícios usados pelos produtores que não conseguem ser reproduzidos organicamente sem tecnologia.

— É humanamente impossível, por exemplo, um artista conseguir abrir três vozes ao mesmo tempo, ou sobrepor uma voz no pré-refrão que encavala com aquela usado no refrão. Funciona muito bem na gravação, porque no estúdio a gente pode fazer o que quiser — explica Pablo Bispo, um dos produtores e compositores mais badalados do pop atual, que assinou faixas de Anitta, Iza, Ludmilla, Pabllo Vittar, entre outros.

Mas o produtor ressalta: importante pensar, já na gravação, em como vai funcionar ao vivo. Se vai, afinal, soar natural.

— A dificuldade mais gostosa que tem é saber dosar os recursos de voz de forma fluida, para não desgastar o artista nem perder a verdade pro público — diz Bispo.