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Cultura

Grandes momentos do playback: quando a ‘voz de fundo’ fez muito barulho

Visto como trapaça, o uso bases sonoras no palco é parte fundamental da história do pop
Show da cantora Anitta no Palco Mundo do Rock in Rio de 2019 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo
Show da cantora Anitta no Palco Mundo do Rock in Rio de 2019 Foto: Gabriel Monteiro / Agência O Globo

RIO - A controvérsia com a apresentação de Anitta no Rock in Rio trouxe de volta um antigo incrustrado no imaginário pop brasileiro: playback . Em suas origens na língua inglesa ( playback track - algo como "faixa que toca ao fundo"), se refere à base gravada que um artista utiliza em apresentações, fingindo ou não ser acompanhado por músicos. Se o playback incluir ainda os vocais, o cantor só precisa cuidar da correta sincronia labial — lip synch . A afinação, o balanço e o champignon (como diria Wilson Simonal ) são garantidos, chovam latas ou faça sol.

O recurso ganhou reputação de trapaça artística, mas a verdade é que carreiras inteiras foram construídas em cima do playback. Antes que a cultura dos DJs e da dance music se estabelecesse e mudasse a percepção do público, essa era a opção viável para a produção em massa e a divulgação de artistas que dançavam e também cantavam. Só no esquema dos programas de TV que apresentavam os líderes das paradas de sucesso, como o inglês “Top of the Pops” e o brasileiro “Globo de Ouro”, foi possível o surgimento de uma estrela como Gretchen , rainha do rebolado e cantora de nenhuma voz.

A cantora Gretchen em 1981 Foto: Alcyr Cavalcante / Agência O Globo
A cantora Gretchen em 1981 Foto: Alcyr Cavalcante / Agência O Globo

O playback do Chacrinha

Naqueles anos 1970, foi lendário, por sinal, o caso da cantora inglesa Dee D. Jackson, que estourou com as canções “Automatic lover” e “Meteor man”. Musa dos embalos de sábado à noite, ela vivia dando pinta nos programas de auditório do Brasil — mas, na verdade, era a bailarina Regina Shakti fazendo playback, numa armação da radialista Sonia Abreu, falecida em agosto .

Apresentador de TV que teve papel decisivo no sucesso de ídolos populares como Gretchen e Sidney Magal, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, foi outra figura importante na história do playback no Brasil. Não apenas pelo som gravado que os cantores “dublavam” em seus programas, a “Discoteca” e o “Cassino” do Chacrinha, mas também pela troca implícita.

Quem ia ao programa também batia ponto como atração dos bailes promovidos pelo apresentador. E era no mesmo esquema de “dublagem”, bem mais barato e simples do que prover a parafernália necessária para “fazer ao vivo”. Muitas bandas do rock brasileiro ganharam notoriedade dublando a si mesmas madrugadas afora nos subúrbio do Rio nos anos 1980.

Quem sabe faz ao vivo

Aos poucos, embora artistas como Xuxa elevassem o playback a uma forma de arte em estádios lotados, a TV foi optando por permitir que os músicos mostrassem seus reais dotes: era o “quem sabe faz ao vivo”, mote de Fausto Silva no seu “Perdidos na Noite”, programa onde que o Rock Brasil mostrou seu som à vera.

Nisso, tanto o “Top of the pops” quanto o “Globo de Ouro”, que eram gravados, se renderam aos plugues e amplificadores. Mas o playback não morreu: no mesmo ano de 1991, os Ratos de Porão (no “Viva a Noite”, de Gugu Liberato) e o Nirvana (no “Top of the Pops”) subverteram o recurso. Fazendo piada de si mesmos e dos programas, trocavam instrumentos e mexiam a boca fora de sincronia com o áudio.

Grammy devolvido

Novas questões acerca do playback, porém, emergiriam a partir de 1990, quando o duo formado na Alemanha Milli Vanili (dos hits “Girl you know it’s true” e “Baby don’t forget my number”) teve que devolver o Grammy de melhor artista estreante com a revelação de que Rob Pilatus e Fabrice Morvan, os dois belos cantores que apareciam nos palcos e nos clipes, não eram os donos das vozes que se ouvia nas gravações.

Rob Pilatus (à esquerda) e Fab Morvan, o Milli Vanilli, recebendo o Grammy em 1990 Foto: Douglas C. Pizac / AP
Rob Pilatus (à esquerda) e Fab Morvan, o Milli Vanilli, recebendo o Grammy em 1990 Foto: Douglas C. Pizac / AP

A sombra da fraude, em tempos nos quais a evolução tecnológica caminhou a passos largos, nunca mais largou o pop, atingindo divindades como Britney Spears (eterna vítima de suspeitas sobre se cantava mesmo nos shows) e Beyoncé ( flagrada fazendo playback do hino nacional na posse presidencial de Barack Obama em 2013).