É preciso que pessoas de diferentes gêneros e etnias tomem parte das tomadas de decisão, diz Solange Sobral

No Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Afro-Caribenha, a vice-presidente executiva e partner de operações da CI&T conta quais foram as barreiras que enfrentou até conquistar uma posição de liderança na empresa que é referência em transformação digital de grandes corporações

Por Shagaly Ferreira


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Solange Sobral é vice-presidente e partner da CI&T — Foto: Divulgação

A decisão de estudar Ciências da Computação, no início dos anos 90, ainda é um mistério para Solange Sobral, Vice-Presidente Executiva e Partner de Operações da CI&T. "É difícil de responder de onde veio essa inspiração. Vim de uma cidade de interior, meus pais não tinham formação universitária e as pessoas mais próximas com nível alto de escolaridade eram os meus padrinhos. Eu não tinha ninguém falando em tecnologia ao meu redor", relembra.

No CI&T há mais de 26 anos, Solange Sobral começou como estagiária em 1996 e aos poucos foi assumindo mais responsabilidades e participando da construção da cultura da empresa – que hoje é referência em transformação digital de grandes corporações. Desde junho de 2021, sua missão é levar as soluções digitais e o modelo lean de liderar, marca registrada da CI&T, para as grandes empresas europeias, acelerando seu crescimento e aumentando seu impacto. Baseada em Londres, ela assumiu o desafio de expandir os negócios da companhia no continente europeu.

Apesar da carreira consolidada há quase três décadas, a executiva conta que sua trajetória ao longo dos anos foi muito pautada por desafios: nenhum grande passo que deu lhe foi oferecido. O fato de ter atuado a maior parte do tempo como líder não amenizou as barreiras raciais e de gênero, principalmente nas situações em que precisava conquistar um novo cliente. "Sempre olhavam para três homens primeiro antes de chegar em mim", conta.

A presença de Solange Sobral na área da tecnologia é ainda um caso de exceção para mulheres negras. De acordo com um levantamento publicado pelo projeto PretaLab em 2022, elas ocupam apenas 11% dos cargos em empresas do setor no Brasil. Nas universidades, o número é ainda menor: somente 3% estão matriculadas em cursos de Engenharia da Computação. Para a executiva, essa ausência reflete estruturas históricas de preconceito e a persistência da manutenção dos postos de poder em determinados grupos. Mãe de três filhos e ciente dos desafios de ser mulher, negra e mãe no ambiente corporativo, Sobral adicionou à sua atuação a defesa de medidas de diversidade e inclusão dentro das empresas e para que haja condições reais de ascensão de mulheres negras aos cargos de primeiro escalão.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista que Solange Sobral concedeu a Época NEGÓCIOS.

Como decidiu entrar no mundo da tecnologia?

Eu decidi que ia estudar tecnologia com nove anos. Então é até difícil responder de onde veio essa inspiração. Eu venho de uma cidade de interior. Meus pais não tinham formação universitária, e as pessoas mais próximas com nível alto de escolaridade eram os meus padrinhos, uma professora e um advogado. Então, eu não tinha ninguém falando de tecnologia ao meu redor. Lembro de, em algum momento, ter ouvido alguém falar em profissões do futuro, então talvez isso tenha ficado na minha cabeça. Enfim, com essa decisão na cabeça, fiz um colegial técnico em processamento de dados na época, pois era o que havia disponível na época. Depois, com o apoio de um tio, fiz um cursinho pré-vestibular e consegui entrar em Ciências da Computação na UFsCar.

Quais foram os desafios no início da carreira?

Bem, logo depois do final do meu mestrado já entrei na CT&T, onde eu iria construir toda a minha carreira. O curioso é que, desde os tempos do colégio, eu já tinha um certo talento para a liderança. Na empresa, não demorou muito para eu assumir um cargo de comando, na área de Client Management. Com o tempo, fui assumindo outros postos de liderança, geralmente em projetos traziam alguma transformação, ou me tiravam da minha zona de conforto, como abrir uma regional nova ou desenvolver um mercado. E agora estou aqui em Londres, logo eu, que mal falo inglês. Então eu acho que minha carreira sempre foi muito pautada por níveis crescentes de desafio.

Agora, se você me pergunta sobre dificuldades, tem algo que nunca mudou, em toda a minha carreira. A cada cliente que eu ia, em cada empresa que eu batia na porta, sempre tinha aquele diretor, aquele vice-presidente, aquele CEO que não acreditava que aquela mulher negra ali era a liderança que ia falar com ele. Eles sempre olhavam para três homens primeiro antes de chegar em mim. Então, à medida que fui crescendo, tinha muita felicidade pelas minhas conquistas, mas também uma grande frustração. Era um misto de felicidade ingênua e tristeza. Eu não entendia por que aquilo acontecia, e às vezes achava até que eu tinha feito algo errado.

O problema é que eu passei muito tempo sem saber nada sobre diversidade e inclusão. Acho até que uma das principais barreiras ao crescimento da minha carreira foi a falta de conhecimento sobre esse assunto. Eu não sabia, por exemplo, o que era uma micro agressão de gênero. Hoje existem programas nas empresas que ensinam sobre isso, tanto para as mulheres quando para os homens, então se tornou possível construir uma rede de aliados.

Como líder, você sentia, ou ainda sente, que precisa se provar mais do que os homens?

Talvez o melhor jeito de te explicar isso seja dizer o que acontece nas reuniões com clientes novos. Em primeiro lugar, é aquilo que falei, a atenção sempre recai sobre os homens que estão na sala. Depois, à medida que eu assumo a palavra e vou me colocando, aí as pessoas começam a olhar pra mim como alguém que merece ser ouvida. É como se estivessem pensando: “Que bacana! Ela que fala bem!” Tem até casos em que eles externalizam isso, com aquele feedback clássico para pessoas negras: “Nossa, você até que é bem inteligente!”.

Além de ocupar um posto de liderança na CI&T, você também é conselheira de grandes empresas. Como essa experiência contribui para o crescimento da sua carreira?

Eu tenho me sentido muito acolhida dentro dos conselhos dos quais eu participo, então estou bem feliz com isso. E acho que existem algumas razões para que isso aconteça. Em primeiro lugar, existe um movimento intencional de trazer uma mulher para dentro do conselho, para conseguir uma representatividade. Então todos dão espaço para o que elas têm a dizer. Além disso, estamos falando de um grupo que se forma e trabalha junto por um tempo, então as barreiras tendem a cair. Mas eu não posso mentir para você: também ouço ainda muitas histórias de conselhos que estão muito longe dessa realidade, histórias sobre mulheres que são assediadas nesse tipo de ambiente. Só que essa não é a minha realidade. Eu tenho sido bem feliz, em conselhos que fazem um trabalho bem profissional.

Um estudo do PretaLab de 2022 mostrava que as mulheres negras ainda ocupavam apenas 11% dos cargos de tecnologia. Quais são os motivos dessa ausência, na sua opinião?

Eu acho que a gente pode ir lá atrás, pensando em todo o nosso legado histórico, o sistema escravagista, tudo que ficou de resquício disso na nossa sociedade. Isso está completamente embutido nas nossas interações na sociedade e nas interações dentro das empresas também. É difícil fugir disso. A única maneira de conseguir é ter pessoas de diferentes gêneros e etnias tomando parte da tomada de decisão, para que a gente mude os processos, desde as contratações e promoções até o clima organizacional.

Você acredita que as empresas estão fazendo o suficiente para incluir as mulheres negras e seus talentos? E, mais que isso, mantê-las?

Se a gente pensar na questão de gênero, o que não faltam são programas de trainees em que muitas mulheres são contratadas. Só que não adianta nada, porque a gente enche de mulher na base, mas quando elas olham para cima, não veem nenhuma liderança feminina. E em pouco tempo elas estão fora da empresa. A única maneira de resolver esse problema, que é estrutural, é com uma ação estruturante, uma ação corretiva. Para mim, o primeiro passo é um programa de awareness. Esse tipo de ação habilita as pessoas a falarem sobre isso, o que é fantástico. Depois, é preciso olhar para os vários pontos do processo. Como garantir que, durante o recrutamento, haja um número adequado de mulheres participando de cada fase? Como ter certeza de que elas vão ter o apoio necessário para enfrentar o privilégio masculino? Há outras ações importante, como os programas de mentoring, de aceleração de carreira. Não estamos falando de nada novo aqui, são práticas que já existem em muitas empresas. Mas é preciso garantir que elas sejam colocadas em prática de maneira efetiva.

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