Dia #83 – Quinta, 4 de junho. Cena: o estudo de soroprevalência aponta que 5,2% dos espanhóis se contaminaram com coronavírus até agora.
UTI é uma palavra delicada aos ouvidos e corações. Não dá pra negar. Ainda que, na Espanha, de 80 a 90% dos pacientes ingressados sobrevivam à sua passagem por uma Unidade de Terapia Intensiva, inevitavelmente associamos o termo a fronteiras desconhecidas, medidas extremas, sofrimentos solitários e, quem sabe, últimos.
Por isso, emocionaram meio mundo as fotos que circularam nesta semana mostrando um paciente de UTI espanhol em sua maca, rodeado de enfermeiros, pássaros, barcos —e mar.
Realizadas na praia urbana de Somorrostro, diante do Hospital del Mar, em Barcelona, as imagens não são miragem, montagem ou flash mob, mas parte de um projeto de humanização das UTIs que nasceu em Madri em 2014 e tem rodado o mundo.
Hoje com presença em 26 países, inclusive o Brasil, o projeto Huci (sigla para Humanizando los Cuidados Intensivos) foi a motivação por trás da imagem na praia de Barcelona.
Essa rede multidisciplinar, formada por médicos e enfermeiros, mas também familiares de pacientes, psicólogos intensivistas e até arquitetos, tem por objetivo principal investigar e difundir iniciativas que promovam a humanização dos cuidados de saúde.
O tema talvez seja mais importante do que nunca. Em tempos de pandemia, em que as cenas mais dramáticas se desenrolam em UTIs, com pacientes padecendo e falecendo sem ver suas famílias e equipes de saúde submetidas a jornadas desumanas de trabalho, manejar o bem-estar é vital.
Entre outras coisas, o projeto Huci oferece em sua rede um manual de boas práticas —disponível em português graças a uma colaboração com a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB)—, atenção psicológica especializada para equipes médicas e treinamentos.
No Hospital del Mar, as saídas para ver o mar são parte das estratégias de promoção de bem-estar durante a recuperação de pacientes sob cuidados intensivos, e haviam sido suspensas durante a pandemia. Nesta semana começaram a ser retomadas, sempre com rigorosas medidas de segurança, e jamais realizadas com pacientes em isolamento sanitário.
Do mesmo hospital saiu o vídeo que viralizou no final de março, mostrando uma enfermeira intensivista ajudando um paciente a realizar uma videochamada com sua família. "Olha, é o seu neto!", exclama ela, feliz, enquanto o paciente acena para a tela, a mão conectada a tubos. "Já respira bem, sem a máquina!". E se junta ao tchauzinho, se apresentando: "Hola, soy Susana!".
O Hospital del Mar chegou a ter cerca de 70 pessoas na UTI. Na semana passada, haviam se reduzido a dez.
Isidre Correa, 61, o paciente das fotos que rodaram o mundo nesta semana, estava havia quase 50 dias internado na UTI por um grave quadro derivado de uma infecção por coronavírus quando a própria equipe de saúde lhe fez a proposta de sair para ver o mar —claro, depois de uma série de medidas que incluíram um teste PCR e o aval da família.
Sem carga viral detectável no organismo, e acompanhado de sua esposa, Correa atravessou a faixa de pedestres diante do hospital em grande estilo, escoltado pela equipe vestida de azul-e-branco, e se postou no calçadão diante do mar, em um dia especialmente brilhante de sol.
Em tempos normais, a praia de Somorrostro, colada com Barceloneta, é um trecho muito concorrido da orla barcelonesa, com hordas de turistas tirando fotos e gente correndo, passando em patins ou bicicleta. Mas não esses dias. A praia, completamente vazia, emoldura com perfeição photoshoppística a cena de um novo amanhecer.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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