Dia #40 - Quarta, 22 de abril. Cena: feliz quarentena da quarentena
Esse texto podia começar assim: prefeito de Badalona, município catalão a 10 quilômetros de Barcelona, morde polícia (dizem) e é preso por desacato, dirigir embriagado e furar a quarentena (bom, na ordem em que você quiser).
É verdade essa história, e ele acaba de apresentar sua renúncia hoje.
(Badalona é a 22ª cidade mais populosa da Espanha, com 220 mil habitantes.)
Mas hoje eu prefiro desligar as notícias e comentar sobre algo que se tornou quase uma excentricidade, transgressão ou sina (depende) nos últimos 40 dias: um passeio offline pela cidade.
Mais exatamente, Meu Passeio, meu meuzíssimo inusual Primeiro Passeio Por Barcelona Confinada.
Nesta quarta (22), eu tinha uma consulta médica inadiável do outro lado da cidade. Me muni do kit RG + comprovante da consulta (pro caso de me pararem), luvas e m.á.s.c.a.r.a. (e guarda-chuva, porque o clima segue incerto). Tava até emocionada de sair, parecia um date. Passei inclusive um batonzinho —que ninguém viu.
É a primeira vez desde o princípio do confinamento que me aventuro pra além da esquina de casa. Já tinha esquecido que havia outras ruas, esquinas, pessoas.
Sim; muitas pessoas. Desde que alguns setores econômicos retomaram suas atividades na semana passada, há mais gente lá fora.
Vou reparando: dois homens conversam numa esquina; fila na farmácia; um adolescente partindo em patinete ri e grita despreocupadamente a seus amigos: "tira essa máscara, hombre, morre como um valente!".
O comércio segue fechado, mas aqui e ali vão surgindo ilhas de vida: padarias que servem café pra levar, mercadinhos de bairro onde fregueses vão se aglutinando e socializando mais do que o permitido.
Tudo vibra tão normal como um domingo sutil, a não ser pelo detalhe distópico sci-fi de um retalho de tecido cobrindo a metade da cara de, diria, 90% dos ciudadanos que avisto.
Azul (como as que está distribuindo o governo), branca, com filtro, de pano. Tem de todo tipo.
No metrô do meio-dia, a estação tem exatamente duas pessoas na plataforma, eu e mais uma. Os vagões têm de duas a seis, sete pessoas no máximo, todas espalhadas, bem espalhadas.
A menina sentada a alguns metros de mim no metrô tem umas pedrinhas de strass no canto dos olhos. Leva uma maleta de viagem e o olhar cansado —terá chorado? Está se mudando? O relacionamento não sobreviveu à quarentena? É performer e vai à uma festa secreta? É só sono? Ou sou eu?
Outra menina passa com os olhos enfiados no celular, abanando o rabo —veste um pijama de leão com um moletom por cima.
Um homem no vagão ao lado sapateia sem parar. Sentado. Sem ritmo. Mãos nos bolsos. Mãos fora dos bolsos. Mil vezes.
Um cidadão à minha frente não teve a amabilidade de botar o celular no silencioso, e o vagão é invadido por uma sinfonia de vídeo/mensagem/notificação/meme/repeat. Minha irritação cozinha no vicioso ar quentinho da máscara.
Pensei que estaria basicamente mais feliz de estar entre as pessoas, mas o sentimento resulta mais complexo. As lacunas —de gente, de atividade, de tempo— realçam os mínimos gestos, nos unem a trepidações invisíveis.
Tipo gotas de óleo sobre uma superfície, buscando o conjunto na fragmentação.
Fora os usuais passeadores de cachorros e empurradores de carrinhos de compra, outros escassos humanos de destino incerto passam por mim na rua. Os contatos visuais oscilam entre dois extremos: encaração atenta ou zero, olhos no chão.
No hospital, alguns departamentos de rotina estão voltando à ativa nesta semana. O espaço interno se compartimentalizou, delimitado por baias de acrílico, paredes de plástico, cadeiras enfileiradas como barricadas, faixas sinalizando a distância mínima e protocolos estritos: como o peixe na peixaria, qualquer papel, nota ou cartão é deixado sobre o balcão, e você pega quase furtivamente como se fosse a comida servida pela bruxa pro Joãozinho preso do conto de fadas.
Cheguei em casa sã, salva e estratosférica, com o batom vermelho manchado sob a máscara azul.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
-
Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
-
Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
-
Dia 3: 'A vida vista de cima'
-
Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
-
Dia 5: 'O perigo mora em casa'
-
Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
-
Dia 7: 'O lado utópico da crise'
-
Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
-
Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
-
Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
-
Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
-
Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
-
Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
-
Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
-
Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
-
Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
-
Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
-
Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
-
Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
-
Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
-
Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
-
Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
-
Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
-
Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
-
Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
-
Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
-
Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
-
Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
-
Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
-
Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
-
Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
-
Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
-
Dia 33: 'Sobre política e pardais'
-
Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
-
Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
-
Dia 36: 'A Nova Normalidade'
-
Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
-
Dia 38: 'O início da reconstrução'
-
Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
-
Dia 40: 'A cidade mascarada'
-
Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
-
Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
-
Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
-
Dia 44: 'A cidade das crianças'
-
Dia 45: 'Isso não acabou'
-
Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
-
Dia 47: 'As piedras no caminho'
-
Dia 48: 'O jeito luso'
-
Dia 49: 'As novas regras do rolê'
-
Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
-
Dia 51: 'Um dia inesquecível'
-
Dia 52: 'Começa o descofinamento'
-
Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
-
Dia 54: 'Confinados por um fio'
-
Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
-
Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
-
Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
-
Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
-
Dia 59: 'O voo da discórdia'
-
Dia 60: 'O ano que não houve'
-
Dia 61: 'Passando de fase'
-
Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
-
Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
-
Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
-
Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
-
Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
-
Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
-
Dia 68: 'Parecia Copacabana'
-
Dia 69: 'O passinho do lagarto'
-
Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
-
Dia 71: 'O augúrio chinês'
-
Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
-
Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
-
Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
-
Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
-
Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
-
Dia 77: 'O informe da discórdia'
-
Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
-
Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
-
Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
-
Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
-
Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
-
Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
-
Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
-
Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
-
Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
-
Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
-
Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
-
Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
-
Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
-
Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
-
Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
-
Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
-
Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
-
Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
-
Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
-
Dia 97: 'Em casa com o agressor'
-
Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
-
Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.