Dia #96 - Quarta, 17 de junho. Cena: em estudo recém-divulgado, 65,7% dos espanhóis afirmam que não sairão de férias neste ano, e 90% não vão botar o pé pra fora do país.
Abraço —o que era, mesmo?
Encontro um amigo querido, vamos almoçar juntos. Não nos víamos havia meses, mas nos limitamos ao cumprimento da era pós-Covid, que eu tenho visto em toda parte como substituto do dois-beijinhos, aperto de mão ou abraço —um bate-cotovelo.
Essa nossa necessidade tão humana de tocar pra conectar, expressar e dialogar levou um asilo de Valência, no sudeste da costa mediterrânea espanhola, a produzir algumas das imagens mais tocantes da semana.
A residência teve a ideia genialmente simples de disponibilizar aos usuários o que chamou de "arco dos abraços", nome poético-literal para um painel com uma cortina de plástico utilizado por visitantes para abraçar seus familiares, junto com mangas de plástico descartáveis, bem ao estilo do que recentemente fez, por exemplo, a clínica geriátrica no Rio Grande do Sul.
Para muitos, é o primeiro encontro em pelo menos três meses, tempo do confinamento na Espanha.
Os 150 residentes dessa instituição, no entanto, têm sorte. Pra começar, estão vivos, o que, na Espanha, é dizer muito. Aqui, aproximadamente 19 mil pessoas morreram em asilos por coronavírus ou sintomas compatíveis com a doença, o que equivale a chocantes 71% do total de mortes notificadas ao longo de toda a pandemia.
Madri tem de longe a maior concentração de óbitos (6.000) e está passando por investigação judicial para apurar a (falta de) responsabilidade da administração na gestão de casos. Há cerca de uma centena de denúncias sendo investigadas na capital, a maioria por omissão de socorro e negligência, e aproximadamente 90 diligências no resto do país.
Ao longo dos últimos meses pandêmicos, saíram à luz notícias chocantes envolvendo as residências, especialmente depois que as Forças Armadas foram recrutadas para tarefas de desinfecção e começaram a entrar em toda parte.
Apareceram notificações de corpos largados em suas camas, idosos abandonados nas residências por funcionários com medo de contágio, residências em péssimas condições de higiene e salubridade. O alto índice de contágio e letalidade nesses contextos gerou casos de instituições com dezenas de mortos entre seus residentes.
Em março, quando caminhávamos para o auge da crise, anônimos denunciavam também o abandono dessas residências pelo sistema de saúde. Hospitais e ambulâncias supostamente negaram atendimento a muitas dessas instituições, apesar da clara inviabilidade de prestar atenção sanitária adequada in loco. Mais de um médico à época confessou: é um cenário de guerra, estamos saturados e é preciso escolher.
A Espanha possui 5.457 residências de idosos, entre públicas e privadas, ou 11,6 por cada 100 mil habitantes.
É um país em processo de envelhecimento: desde 1998, vem crescendo a proporção de maiores de 65 anos, ao mesmo tempo que se reduz a de jovens. São atualmente 9 milhões, ou quase 20% da população.
Em números de Covid, 51% dos contágios e 95,6% das mortes na Espanha foram de maiores de 60 anos. Destas, 62,6% foram de maiores de 80.
Muitas dessas pessoas morreram sozinhas, por conta do confinamento e das medidas de segurança. Longe de familiares e entes queridos, sem uma palavra de conforto, uma despedida e, muito menos, um abraço. O que eleva um reencontro pós-confinamento à categoria de catarse apoteótica, eu diria. Mesmo com distanciamento social, máscara e abraço de plástico —ou bate-cotovelo.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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