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Porque estamos cada vez mais alérgicos?

Lucília Galha 26 de junho

Seja o pingo no nariz, a comichão nos olhos, tosse ou espirros, os casos de alergias estão a disparar. O problema não é de hoje, mas o nosso estilo de vida tende a piorá-lo.

O pai de Theresa MacPhail morreu vítima de reação alérgica severa a uma picada de abelha, tinha ela 24 anos e nem sequer sabia que o veneno daquele inseto podia ser mortal. “É incrivelmente raro”, só “0,00000002% da população em geral morre anualmente devido a uma picada de inseto”, pode ler-se no livro Alérgico, escrito pela antropóloga americana. Poderia ter sido razão suficiente para levá-la a investigar o tema, mas isso só veio a acontecer 19 anos mais tarde, quando, já a trabalhar como professora assistente, e após a quarta infeção respiratória em menos de um ano, percebeu que também ela sofria de alergias. Foi então que se lançou na procura de respostas e que também percebeu que não estava sozinha.

Há uma reação alérgica quando o corpo reage a uma substância no ambiente e é então que surgem os sintomas iStock

Na verdade, não podia estar mais longe disso: atualmente cerca de 40% de toda a população mundial tem algum tipo de condição alérgica. Os números têm aumentado de forma constante a cada ano que passa e até 2030 a percentagem poderá chegar aos 50%. Porque é que isto está a acontecer? “O nosso sistema imunitário está a tentar dizer-nos que tem dificuldades em lidar com o mundo moderno. E nós devemos ouvi-lo e tentar ajudá-lo”, alerta a especialista em antropologia médica, em conversa com a SÁBADO.

Alergias: um problema dos tempos modernos?

A resposta é simultaneamente afirmativa e negativa. Por um lado, há registos bastante antigos de sintomas parecidos com os da asma ou com uma reação anafilática (a forma mais grave de manifestação de uma reação alérgica). Como o de um faraó do Antigo Egito chamado Menés – que se acredita que tenha morrido devido a uma picada de abelha ou de vespa. Rinites alérgicas e até alergias alimentares também é provável que existissem, mas seriam desvalorizadas, acredita a autora de Alérgico. “Não darias atenção à rinite se tivesses de te preocupar com coisas como a cólera ou a tuberculose”, diz, sarcástica. O que mudou mesmo foi a dimensão do problema e o aumento dos casos começou a verificar-se sobretudo depois da Revolução Industrial. “Parte é explicada pelo facto de sermos melhores a diagnosticar estes problemas, mas a maioria tem a ver simplesmente com a forma como o sistema imunitário luta para se adaptar ao ambiente e ao estilo de vida modernos”, explica a autora.

“Afeção dos olhos e peito”

O primeiro caso de uma reação alérgica descrito na literatura médica é de 1819. Aos 46 anos, o médico britânico John Bostock apresentou à Sociedade Médica e Cirúrgica um estudo denominado “Caso de Afeção Periódica dos Olhos e do Peito” – onde descrevia a sua própria experiência. Durante anos sofreu com sintomas como o nariz a pingar, tosse, comichão e olhos vermelhos, que só aconteciam entre o período de maio a setembro. Experimentou vários tratamentos e nenhum funcionou. “Seria preciso esperar até ao fim do século para que Charles Blackley [que descobriu o mecanismo por trás da rinite alérgica] provasse definitivamente que coisas como o pó e os pólenes eram os culpados”, diz Theresa MacPhail.

O lado B da qualidade de vida

Ainda que as doenças alérgicas tenham uma componente genética e tendam a ser comuns a vários elementos da família, a verdade é que não é por a mãe ter asma que o filho também vai ter. “Há cerca de 141 segmentos de genes relacionados com alergias, mas nenhum deles é o gene-‘chave’ para a doença”, explica a antropóloga-médica. Uma das principais razões para haver tantos casos de alergias é a mudança de ambiente: a saída do campo para as cidades, que aconteceu sobretudo depois da Revolução Industrial. Com isso veio a exposição à poluição atmosférica e também uma maior permanência em espaços fechados. “O que nos vai expondo a coisas a que antes estávamos muito menos expostos, principalmente a questão dos ácaros”, destaca a pneumologista Lígia Fernandes.

Também as próprias alterações climáticas podem justificar o aumento da prevalência. É fácil perceber porquê: “As épocas polínicas prolongam-se mais, ou começam mais cedo ou em alturas indevidas e tudo isso faz aumentar a nossa exposição”, explica a especialista que coordena a comissão de trabalho de Alergologia Respiratória da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

Theresa MacPhail diz que a “evolução humana é mais lenta do que a tecnológica” e compara o sistema imunitário a um software que não pode ser atualizado iStock
Na alimentação deu-se outra revolução, mudou a forma como se come e o tipo de culturas que se plantam. As cidades tornaram-se mais limpas. Problema: se por um lado, há mais qualidade de vida e menos exposição a infeções, por outro, também há menos contacto com bactérias, vírus e parasitas. “Os nossos sistemas imunitários não veem coisas a que estavam habituados e estão expostos a outras a que não estavam, como microplásticos, detergentes ou antibióticos”, diz Theresa MacPhail.

Não viva 20 anos de lenço no bolso

Não há volta a dar: as doenças alérgicas não têm cura, e isso tem a ver com a sua componente genética, mas não significa que não haja nada a fazer. “As pessoas habituam-se a viver 20 anos com um lenço no bolso, o nariz a pingar, uma ligeira comichão, a espirrar todos os dias. Há uma aceitação pelo hábito”, diz a pneumologista Lígia Fernandes. Só que a desvalorização destas condições pode ser preocupante. “Uma coisa que era facilmente controlável pode tornar-se grave”, alerta.

O estigma não é de hoje. Na descrição da sua investigação, com mais de 400 páginas, Theresa MacPhail percebeu que no século XIX se pensava que “só os fracos e as pessoas neuróticas tinham alergias”, diz à SÁBADO. “Achavam que era uma condição do sistema nervoso e não do sistema imunitário.”

A investigação de mais de 400 páginas faz também um retrato histórico das alergias. Conta por exemplo que um faraó do antigo Egito terá morrido por causa de uma reação alérgica a uma picada de abelha.

O pai de Theresa MacPhail morreu vítima de reação alérgica severa a uma picada de abelha, tinha ela 24 anos e nem sequer sabia que o veneno daquele inseto podia ser mortal. “É incrivelmente raro”, só “0,00000002% da população em geral morre anualmente devido a uma picada de inseto”, pode ler-se no livro Alérgico, escrito pela antropóloga americana. Poderia ter sido razão suficiente para levá-la a investigar o tema, mas isso só veio a acontecer 19 anos mais tarde, quando, já a trabalhar como professora assistente, e após a quarta infeção respiratória em menos de um ano, percebeu que também ela sofria de alergias. Foi então que se lançou na procura de respostas e que também percebeu que não estava sozinha.

Na verdade, não podia estar mais longe disso: atualmente cerca de 40% de toda a população mundial tem algum tipo de condição alérgica. Os números têm aumentado de forma constante a cada ano que passa e até 2030 a percentagem poderá chegar aos 50%. Porque é que isto está a acontecer? “O nosso sistema imunitário está a tentar dizer-nos que tem dificuldades em lidar com o mundo moderno. E nós devemos ouvi-lo e tentar ajudá-lo”, alerta a especialista em antropologia médica, em conversa com a SÁBADO.

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