Na perspectiva da dogmática jurídica e do discurso do acesso à justiça, o Poder Judiciário deve estar à disposição de todos os cidadãos que visem o seu acesso a fim de implementar direitos abstratamente concedidos em constituições e leis. De modo que quanto mais acesso, mais direitos estariam sendo implementados como se o sistema público devesse estar à disposição dos cidadãos.
Tal narrativa – desacompanhada de evidências empíricas –, entretanto, perde de vista o custo social desse acesso e suas externalidades negativas e “spill over effects” (como impacto em preços).
Com efeito, na visão de muitos, a justiça é um bem público (ou com características de); isso porque o orçamento do judiciário é limitado, assim como tempo do juiz é escasso e sua alocação em determinado processo implicará renúncia a outro processo; e quanto mais processos, menos tempo dos juízes para analisá-los.
Por isso, quanto maior acesso, a tendência é a de que haja maior carga tributária ou então maior fila dos jurisdicionados a fim de obter a tutela judicial e ambos associados a aumento do custo dos serviços (aéreos, no caso em exame).
E isso certamente não é bom para os consumidores, especialmente se adotarmos uma perspectiva sistêmica (ou de macro justiça) que extrapole a visão dos interesses dos consumidores para além de duas partes em uma disputa judicial (ou seja, “enxergar a floresta e não a árvore”).
Ora, quanto mais lenta e ineficiente a tramitação processual, maiores incentivos existirão para o comportamento estratégico seja de ajuizar novas demandas da parte de alguns litigantes predatórios, seja de procrastinar outras tantas demandas por litigantes repetitivos. Eis o risco trágico da Justiça, como bem público que é (“tragédia da justiça”).
A partir dos estudos de Garret Hardin[1] e, posteriormente, do trabalho desenvolvido por Araújo,[2] torna-se possível traçar um paralelo entre a realidade atual do sistema judicial brasileiro e o ambiente de Tragédia idealizado pelos referidos autores. Daí a necessidade de limites, como a proposta do PL 533 sobre “pretensão resistida” para uso individual das cortes de justiça públicas.
Para ilustrar a situação do Poder Judiciário, com custos e morosidade decorrentes do volume de ações, estima-se que os processos custem, em média, por ano, aproximadamente R$ 1.900 (mil e novecentos reais) na Justiça Estadual e aproximadamente R$ 2.700 (dois mil e setecentos reais) na Justiça Federal.
Ademais, a última publicação Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), revela o impacto anual das causas de direito do consumidor no Poder Judiciário:
- É a primeira área mais demandada na justiça estadual, com 2.295.880 processos em 2020, especialmente sobre a responsabilidade do fornecedor e indenização por dano moral.
- Em segundo grau, é o terceiro tema mais demandado da justiça estadual, especialmente quanto a contratos de consumo/ bancários, com 154.673 processos.
- No JEC Estadual, é a área mais demandada, especialmente quanto à responsabilidade do fornecedor e indenização por dano moral, com 1.554.088 processos.
Considerando o volume acima mencionado e os custos dos processos, não por acaso, alguns estudos colocam o Poder Judiciário brasileiro como aquele entre os mais caros do mundo em termos de percentual do PIB (cerca de 1,2% do PIB, enquanto vizinhos latino-americanos ficariam em menos de metade do que isso), mas não tanto pelos salários dos magistrados, mas muito pela manutenção desse astronômico e exagerado número de casos.
Há estudos que sugerem um custo médio superior a R$ 2.500,00 por processo por ano. Isso dá conta do avolumado peso orçamentário do Judiciário, que hoje custa mais do que se gasta em educação e saneamento básicos!
Como estratégia para cortar os gastos do Poder Judiciário, precisa-se iniciar pela radical diminuição do número de processos que não necessitariam estar na justiça.
Ao se tornar menos oneroso, o Poder Judiciário evitará inclusive que mais pobres arquem com o acesso à justiça dos mais ricos, como bem demonstra esse estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, que correlaciona renda e litigância:
A imagem mostra duas versões do mapa da cidade de São Paulo: no da esquerda, cada ponto é o endereço de um autor ou réu em ações iniciadas em 2016; no da direita (de 2004), regiões pobres aparecem em azul escuro. Endereços de litigantes se espalham por áreas ricas e regiões periféricas sofrem blackout jurisdicional.
Todavia, todos pagam os tributos que subsidiam o funcionamento da Justiça. Não parece justo que mais pobres paguem pelo acesso à justiça dos mais ricos (seja por impostos, seja por preço). E no transporte aéreo de passageiros não é diferente. Por isso, temos de apoiar o PL 533.
[1] HARDIN, Garret. The Tragedy of the Commons. Science. Vol. 162, dezembro, 1968.
[2] ARAÚJO, Fernando. A tragédia dos baldios e dos anti-baldios: o problema económico do nível óptimo de apropriação. Lisboa: Almedina, 2008.