Quem você está vestindo?” Essa é a pergunta padrão no tapete vermelho das últimas duas décadas, quando repórteres perguntavam às estrelas sobre seu vestido, sua rotina de beleza e de exercícios. Mas no Globo de Ouro 2018, a frase soou vazia. Seguindo o escândalo Harvey Weinstein e o lançamento do Time’s Up, mais de 300 mulheres em Hollywood anunciaram a intenção de usar preto a fim de aumentar a conscientização sobre a inequidade de gênero. Em resposta, a E! Entertainment, rede americana que há anos é a cara da cobertura do red carpet, divulgou que iriam trocar a pergunta característica por “Por que está usando preto?”. Quando Ryan Seacrest fez a pergunta a Meryl Streep, que foi à cerimônia com a ativista Ai-jen Poo, ela respondeu: “Nós nos sentimos encorajadas neste momento para ficarmos juntas em uma grande linha negra dividindo o antes do agora”. Streep estava prevendo uma nova era para as mulheres em Hollywood, mas também o início do fim do tapete vermelho da forma como o conhecemos.
Tapetes vermelhos têm uma história longa e ilustre. A referência mais antiga a um pode ser encontrada na Grécia antiga, com a peça de Ésquilo, de 458 aC, Agamemnon mostrando um tapete vermelho sendo desenrolado para o rei de mesmo nome em seu retorno da guerra de Troia. Sua esposa Clytemnestra diz: “Desça de sua carruagem, e não deixe seu pé, meu senhor, tocar a terra”. Ele responde: “Sou um mortal, um homem; não posso calcar essas maravilhas tingidas sem que o medo seja jogado em meu caminho”. Naquela época o tapete vermelho já era um piso reverenciado – tinha o poder de elevar meros mortais a divindades.
Durante a Renascença, tapetes vermelhos eram reservados para salas do trono devido ao alto custo do corante de cochonilha. Um foi usado em 1821 para dar as boas-vindas ao Presidente James Monroe ao chegar à terra firme na Carolina do Sul, enquanto em 1902 a New York Central Railroad os usou para levar seus passageiros a bordo de seu trem 20th Century Limited. Foi apenas em 1922, na estreia do filme de Douglas Fairbanks, Robin Hood, que astros do cinema andaram pelo tapete vermelho. A cerimônia do Oscar os adotou em 1961 e foi televisionada pela primeira vez em 1964, e daí vem o desfile pelo tapete vermelho que conhecemos hoje.
A gravação do Oscar de 1964 mostra fãs gritando em delírio com a chegada de Julie Andrews e Gregory Peck, antes de os astros serem levados rapidamente para o auditório. Levaria mais 30 anos para que entrevistas, equipes de TV e cobertura ao vivo se tornassem de rigueur. À frente dessa nova tendência estava Joan Rivers, primeira a apresentar o pré-programa Golden Globes do E!, em 1994. Sua perspicácia ácida foi um sucesso de público, principalmente em um momento em que a moda no tapete vermelho estava se tornando mais estranha (Céline Dion usou um smoking Dior de trás para frente na cerimônia do Oscar em 1999; Björk ostentou seu vestido-cisne em 2001). 1998, o ano em que Titanic levou para casa o prêmio de Melhor Filme, foi um grande marco para a audiência televisiva, com o Oscar arrecadando 57 milhões de espectadores. A essa altura, o pré-show de Rivers estava tão popular que a rede de televisão dobrou seu tempo de duração para duas horas.
Amparado por esse sucesso, o E! expandiu sua escalação e incluiu o especial pós-cerimônia Fashion Police e adicionou uma série de novos recursos para sua cobertura do tapete vermelho: a câmera glam 360º, a câmera clutch, a câmera stiletto e a câmera de manicure. A última, que trazia um tapete vermelho em miniatura onde atrizes eram chamadas para ostentar seus dedos, provocou uma rápida reação. No Globo de Ouro de 2014, Elisabeth Moss disse a Giuliana Rancic, do E!: “Tem algo que quis fazer da última vez mas não fiz”, antes de mostrar o dedo do meio para a câmera. Sua frustração foi repetida por Cate Blanchett no Screen Actors Guild Awards. Quando a câmera do E! escaneou seu corpo de cima a baixo, ela olhou para as lentes e disse: “Vocês fazem isso com os rapazes? O que acham que vai acontecer lá embaixo que é tão fascinante?”
No ano seguinte, Reese Witherspoon, Jennifer Aniston e Julianne Moore se recusaram a colocar o dedo na câmera de manicure durante o SAG Awards. No BAFTA 2015, o Buzzfeed fez uma paródia dessas entrevistas cada vez mais ridículas no tapete vermelho perguntando aos homens as mesmas perguntas feitas às mulheres. Isso incluiu pedir a Eddie Redmayne que desse uma voltinha para a câmera, perguntar a um confuso Michael Keaton se estava usando Spanx e perguntar ao próprio Weinstein quanto tempo havia demorado para se arrumar. A opinião pública estava começando a azedar e a audiência do E! a despencar. Seguindo a morte de Rivers em 2014, o Fashion Police entrou em um hiato de cinco meses antes de ser cancelado em 2017. Seacrest continuou a apresentar o programa do tapete vermelho pré-Oscar, que neste ano teve uma média de 1,3 milhões de espectadores, uma queda de 43% em relação ao ano passado. A audiência da cerimônia do Oscar também teve recorde de baixa audiência em 2018, em 26,5 milhões.
Essa queda no tapete vermelho coincidiu com um cenário político cada vez mais tenso nos EUA. A proibição de viagem de Donald Trump fez com que vários participantes do Oscar 2017, incluindo Ruth Negga e Karlie Kloss, usassem laço azuis no tapete vermelho, em defesa da União Americana pelas Liberdades Civis. Enquanto isso, Emma Stone tinha um broche da Planned Parenthood preso em seu alta-costura Givenchy. A resistência ficou mais evidente no SAG Awards 2017, onde o ator de Big Bang Theory Simon Helberg andou pelo tapete vermelho com uma placa com os dizeres “Refugiados São Bem-Vindos”.
Foi com o #MeToo e Time’s Up, no entanto, que os protestos no tapete vermelho se transformaram, de não conformidade tácita a rebelião pura e simples. Uma horda de mulheres usando preto varreu a cerimônia do Globo de Ouro como um exército incontrolável, chamando atenção para a diferença salarial no tapete vermelho (Debra Messing criticou o E! por não pagar à apresentadora Catt Sadler o mesmo que seu colega masculino) e expondo a falta de diretoras mulheres no palco (Natalie Portman apresentou a categoria dizendo: “aqui estão os indicados, todos homens”). O BAFTA espelhou o dress code todo preto, enquanto o Grammy convidou astros a usar rosas brancas. Mas para o Oscar 2018, o movimento Time’s Up anunciou que não haveria dress code e não haveria chamada à luta sobre o tapete vermelho.
Algumas pessoas interpretaram o fato como se Hollywood estivesse de volta ao trabalho normal, mas as placas tectônicas já haviam se mexido. O comportamento para agradar as câmeras, como nos anos anteriores, não pareciam mais uma exigência. Na manhã seguinte da cerimônia do Oscar, a correspondente de Hollywood da Vanity Fair Nicole Sperling observou a palpável mudança. “Parecia que a cerimônia estava reduzida”, disse no podcast Little Gold Men da temporada de premiação da revista. “Muitas pessoas pularam o tapete vermelho este ano. Jordan Peele pulou, Sam Rockwell pulou – tiraram algumas fotos e foram escoltados diretamente ao show. Alguns RPs com quem falei disseram que eles simplesmente não viam mais valor naquilo. Não sei qual será o desenrolar disso, porque lá está aquele reluzente e atraente tapete vermelho de que as pessoas gostam, mas é algo de que precisamos? É uma parte progressiva de nossa sociedade?”.
As mulheres do Festival de Cinema de Cannes certamente pensavam que não. Em maio, a presidente do júri Cate Blanchett liderou um agrupamento no tapete vermelho de braços dados com 82 mulheres – uma para cada filme dirigido por mulheres a ter competido pelo principal prêmio do festival durante seus 71 anos, em comparação a 1.645 filmes dirigidos por homens. Apenas uma mulher, Jane Campion, já ganhou. Outras injustiças também foram trazidas à vista: 16 atrizes negras fizeram demonstrações contra o racismo na indústria cinematográfica francesa e foram co-autoras do livro com o título Black is Not My Job. Um minuto de silêncio foi feito em 15 de maio em memória dos 60 palestinos mortos por forças israelenses perto da fronteira entre Gaza e Israel, com a atriz Manal Issa carregando uma placa no tapete vermelho com os dizeres “Parem os ataques em Gaza”. Em uma exibição de Os Mortos e os Outros, um filme sobre a comunidade indígena Krahô, do norte do Brasil, cartazes exigiam melhor tratamento para com os nativos do país.
Entre o ativismo, a atriz Kristen Stewart, membro do júri, dominou as manchetes ao tirar seus sapatos Christian Louboutin na pré-estreia de Infiltrado na Klan, desafiando a política de apenas saltos de Cannes. “Há um dress code definitivamente apartado”, disse à The Hollywood Reporter. “As pessoas ficam chateadas se você não usar salto, mas não se pode mais pedir para fazerem isso. Se não pedir para que os caras usem saltos e um vestido, então não pode pedir a mim também”. Longe de gestos vazios, os protestos do festival causaram mudanças de regras. Uma nova carta por paridade entre gêneros foi assinada em Cannes e desde então foi adotada por outros grandes festivais de cinema, incluindo o de Veneza e de Toronto. O tapete vermelho de Cannes, que já foi território de caça para Weinstein, foi lentamente sendo retomado pelas mulheres.
“Estou animada com o progresso que estamos vendo”, diz Jennifer Siebel Newsom, fundadora do The Representation Project, cujo slogan #AskHerMore vem ganhando força no red carpet desde seu começo em 2014. “Estamos escutando mais perguntas às mulheres além do que estão usando, mas, isso posto, um próximo passo importante é ampliar outros diálogos críticos, como aqueles levantados pelo Time’s Up. Queremos trabalhar ao lado de organizações com o mesmo pensamento, com missão direcionada à representação diversa e equilibrada em relação ao gênero em Hollywood e outros setores”.
Então onde ficamos? O Festival de Cinema de Toronto e o Emmy se passaram em sua maior parte sem incidentes, ainda que tenha havido broches da Planned Parenthood, fitas da União Americana pelas Liberdades Civis e crachás com os dizeres “I am a voter”, apoiando as eleições americanas de midterm, que logo aconteceriam. Críticos temem uma diminuição de ritmo na próxima temporada de premiações, mas isso parece improvável. O Globo de Ouro acontece pouco após o aniversário de um ano do Time’s Up e novamente nenhuma mulher foi indicada na categoria de direção. A Marcha das Mulheres de 2019 cai em 19 de janeiro, bem entre o Critics’ Choice Awards e o Producers Guild of America Awards. Na semana passada, Kevin Hart saiu do papel de apresentador do Oscar três dias após ser designado, seguindo a polêmica sobre comentários tidos como homofóbicos. Hollywood está mais politicamente abundante do que nunca.
Por enquanto, o tapete vermelho sobreviveu, mas seu futuro depende de sua vontade de se adaptar aos tempos modernos. Stylists, para quem ele continua sendo um negócio lucrativo, estão alertas em relação a boicotes, mas reconhecem a necessidade de mudança. “É claro que é importante”, diz Elizabeth Saltzman, que veste Saoirse Ronan e Gwyneth Paltrow. “Mas talvez seja importante de uma forma diferente. Talvez agora possamos usar o tapete vermelho para mostrar pessoas como realmente são. Ele importa? Importa, se quisermos. É o negócio mais importante do mundo? Bem, é o meu negócio, então é muito importante para mim. Acho que há muito que podemos fazer com o tapete vermelho, então vamos fazê-lo em vez de desistir dele.” O tapete vermelho da próxima temporada irá seguir as palavras de Saltzman? Temos de esperar para ver.
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