• Letícia Negresiolo em depoimento a Laís Franklin
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Letícia Negresiolo (Foto: Reprodução/ Instagram)

Letícia Negresiolo (Foto: Reprodução/ Instagram)

É difícil começar a contar sobre a minha história sem a garganta apertar logo de cara. Ainda bem que não tenho nenhuma pretensão de frear esse sentimento. Sou uma mulher de 26 anos e, assim como aproximadamente outras 70 milhões de pessoas no mundo — de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH) —, eu enfrento um Transtorno Alimentar (TA). No meu caso: compulsão seguida de episódios de bulimia, além de distúrbio de imagem e ansiedade, que vieram junto com o TA. 

Se você me conhecesse, talvez passasse pela sua cabeça: não é possível que ela tenha ficado tão mal devido a problemas com o corpo. Eu entendo esse raciocínio porque eu mesma penso isso, vez ou outra. Eu sou uma menina magra, ''dentro dos padrões''. Mas, eu nunca fui mignon, pequena, fina. E eu sempre quis ser.

Letícia Negresiolo (Foto: Reprodução/ Instagram)

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A primeira vez que eu percebi isso — ou pelo menos que eu me lembre — foi no verão de 2003. Eu tinha (só) oito anos. Estava sentada ao lado da minha prima, que é mignon, e meu avô disse: "A Letícia não vai ser como a Mari, ela vai ser gordinha". Foi o suficiente para que, do dia para noite, eu virasse a esportista da família: fazia ballet, jazz, sapateado, vôlei, basquete e tinha uma relação de amor obsessivo pela musculação, ou pelo menos era assim que via na época.

Aos 12 anos, treinava basquete cerca de sete horas por dia. Era cobrança atrás de cobrança. Todo mundo opinava sobre o meu peso: meus treinadores, minha família, meus amigos e, claro, eu mesma. A desculpa de ser uma atleta era o que legitimava essa pressão. Por quase cinco anos, eu era obrigada a subir em uma balança toda semana. Por isso, durante minha adolescência inteira, flertei com a bulimia: comia, ia ao banheiro, ajoelhava, respirava fundo, pegava a escova de dente, abria a boca e desistia. Naquela época, o medo era mais forte.

Dieta atrás de dieta, restrição atrás de restrição. Por quase uma década não soube o que era comer o que eu estava com vontade. Sempre tive cardápio, modo de preparo e quantidades exatas a serem ingeridas. A balança estava sempre presente para me pesar e pesar os meus alimentos. Nenhum grama a mais. Nunca.

Letícia Negresiolo (Foto: Reprodução/ Instagram)

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Aos 24 anos, embarquei em uma dieta ainda mais restritiva. O impulsivo/compulsivo tem disso, minha terapeuta sempre fala: é tudo ou nada. Eu fazia musculação seis vezes na semana e uma hora de bicicleta todos os dias. A minha comida se resumia a salada, frango e a um punhado de castanhas à tarde. Tudo sem tempero ou sal. Nada importava, além da busca por um corpo que hoje eu sei que nunca será meu de forma saudável.

Durante esse período, deixei de ir em todos os eventos de família. No Dia dos Pais, por exemplo, falei para o meu avô que eu estava doente para não precisar ir ao churrasco de comemoração. Evitava ao máximo sair para jantar com o meu namorado à época para não sofrer vendo ele comer hambúrguer. No aniversário dele, levei uma marmita com salada para a festa e me recusei a comer o bolo: “Você quer me ver gorda”, eu disse. Diferentemente do que eu imaginei, não fiquei feliz quando cheguei ao corpo mignon, mesmo porque eu ainda achava que precisava emagrecer mais e mais. Mal sabia que o pior ainda estava por vir.

Em meados de 2019, terminei o meu namoro, troquei de função no meu emprego e saí de casa para morar sozinha. Tantas reviravoltas aliadas às restrições da dieta foram os gatilhos para os meus transtornos alimentares aumentarem ainda mais. Comecei a ter crises quase diárias de compulsão alimentar. Aqui, vale dizer: a compulsão não é exagerar na comida, isso todos nós fazemos vez ou outra. Eu cheguei a comer oito barras de chocolate em vinte minutos sem nem perceber; abria a geladeira, colocava todos os potes com restos de comida e, com as próprias mãos, ia enfiando tudo na boca, sem nem me importar que estava gelado. Eu comia escondida, na madrugada, e não conseguia parar. Por mais saciada que eu estivesse, eu continuava comendo. Quando tudo terminava, eu chorava. Copiosamente. Eu não sabia o que estava acontecendo ou como fazer parar. Isso é compulsão alimentar.

O sentimento de culpa e de medo vinham à tona e, na minha cabeça, a única solução para não engordar era forçar o vômito. E foi aí que a bulimia também chegou. Mesmo vivendo nesse caos, eu não me enxergava doente. Durante esse período, tive tantas crises que nem sei estimar. Maltratei o meu corpo, o meu psicológico e cheguei a ter problemas sérios de saúde devido às ingestões repentinas de grandes quantidades de comida seguidas de jejuns prolongados para tentar compensar o exagero. Foram necessários sete meses vivendo nessa montanha-russa até eu conseguir perceber que algo não estava certo. Só a partir disso, resolvi pesquisar sobre transtornos alimentares e me reconheci doente.

Agora, em 2021, faz um ano que comecei a buscar ajuda. Primeiro, contei para as pessoas mais próximas; depois, por meio de uma influencer digital, cheguei no GATDA (Grupo de Apoio e Tratamento dos Distúrbios Alimentares e da Ansiedade) que estava fazendo reuniões online com pessoas que passavam pelo mesmo que eu; por fim, comecei a terapia. Hoje, faço tratamento com nutricionista e psicóloga especializada em pessoas com TA. Ainda estou no começo dessa jornada que é tratar a compulsão e a bulimia e aprender a conviver com os Transtornos Alimentares. Isso significa que eu ainda tenho muitas recaídas, principalmente pelo desgaste do momento atual que estamos vivendo. Mesmo assim, eu me sinto um pouco melhor a cada dia.

Já regularizei meus exames e não tenho mais vergonha de falar da minha doença. Além disso, consigo aceitar que o meu biotipo é de uma mulher grande. Sou alta, tenho costas e ombros largos e coxa grossa - e já até acho isso bem bonito. Continuo treinando e me alimentando bem na maioria das refeições, mas também como uma pizza com os amigos, um churrasco com a família e um hambúrguer em uma noite de domingo. Engordei no meio desse processo? Claro. Mas eu estou 100% mais feliz. E não há nenhum corpo idealizado que supere essa sensação de equilíbrio.

Você sofre de transtorno alimentar? O AMBULIM é um Programa de Tratamento gratuito de Transtornos Alimentares realizado pelo SUS. Peça ajuda aqui.

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