Saúde
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Por Marcia Di Domenico


(Foto: Eric Boman) — Foto: Vogue

Ser saudável nunca esteve tão na moda. Pelo menos nas redes sociais, onde não param de surgir perfis de lifestyle e dieta e hashtags como #eatclean, #cleaneating, #eatingclean e #comerlimpo, que somam mais de 100 milhões de publicações. Ao mesmo tempo, o mundo está mais gordo do que jamais se viu – no Brasil, mais da metade da população (54%) está acima do peso e a obesidade é uma preocupação para quase 20% das pessoas, de acordo com dados de 2018 do Ministério da Saúde.

Há, portanto, algo errado nesse balanço entre o que estamos fazendo pela saúde e aonde isso está nos levando. Muitas são as questões envolvidas, e uma certamente é o modelo de dieta, que a maioria das pessoas acha que tem que seguir para cuidar do peso, baseado em restrições (quando não em ficar sem comer). A propagação dessa ideia via redes sociais, com toques de radicalismo, tem produzido resultados desastrosos para a saúde física e mental de cada vez mais gente. É nesse limite entre ser são e doente que se estabelece a ortorexia, um tipo de distúrbio alimentar definido como a obsessão por comer de maneira saudável.

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Na verdade, a ortorexia não é oficialmente classificada como um transtorno alimentar porque não possui critérios de diagnóstico estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, como ocorre com anorexia e bulimia. É considerada uma desordem alimentar, às vezes enquadrada como comer transtornadamente ou transtorno alimentar não especificado, que incluem restrições severas, práticas purgativas (tomar laxante ou diurético) e outros métodos para perder peso.

Comer as mesmas coisas todo dia. Checar compulsivamente a lista de ingredientes dos produtos. Pensar em comida o tempo inteiro, planejando o que vai poder ou não comer. Cortar da dieta grupos inteiros de alimentos (carboidratos, açúcar, itens de origem animal...) por conta própria. Esses são alguns dos sintomas associados à ortorexia, de acordo com a associação americana National Eating Disorders. Vigiar o que os outros comem (geralmente desprezando quem não segue os seus padrões do que é ser saudável) também é típico da ortorexia. Daí as redes sociais serem um prato cheio para disseminar o problema.

A jornalista Mirian Bottan, de 32 anos, fazia tudo isso e mais em uma fase ortoréxica que durou cerca de dois anos. “Nos almoços de família, minha comida tinha que ser diferente. E eu fazia um suco verde amarguíssimo, só com couve e maracujá, porque fugia de frutas com o mínimo de açúcar”, lembra. Na época, ela se recuperava de um quadro de bulimia, doença que a acompanhou por dez anos. “Estava voltando a comer bem e curtindo meu corpo. Aí, animada com o resultado, passei a exagerar: só comia carboidrato integral, carne sem um grama de gordura, nada de doce”, diz ela, que hoje usa o Instagram (@mbottan) para alertar sobre transtornos alimentares e advogar pela aceitação de seu próprio corpo.

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Um estudo realizado com quase 700 seguidores de perfis de estilo de vida saudável no Instagram revelou que quanto mais intenso o uso da rede social, maior a prevalência de sintomas associados à ortorexia – o índice chegou a 49% dos usuários, enquanto a estimativa entre a população geral é de menos de 1%. O trabalho foi publicado em 2017 no periódico italiano Eating and Weight Disorders.

O impacto é tamanho que a nutricionista Marle Alvarenga, coordenadora do Grupo Especializado em Nutrição, Transtornos Alimentares e Obesidade (Genta), faz questão de perguntar às novas pacientes, principalmente as adolescentes, quais influenciadoras elas seguem no Instagram. “A partir daí, dá para ter uma ideia do conceito que elas têm de saúde, alimentação e corpo”, explica. Marle conta que é comum ouvir de meninas com algum transtorno alimentar que tudo começou depois que passaram a acompanhar determinados perfis de vida “saudável” nas redes. “É preciso saber quem seguir. Se você fica recebendo informação de que o bom é comer só quinoa e chia, acaba internalizando isso como verdade”, completa.

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Vale saber que simplesmente preocupar-se em ser saudável ou preferir alimentos livres de agrotóxicos não configura algum grau de ortorexia. “O problema necessariamente gera sofrimento, prejuízo para as relações sociais e obriga a mudanças no cotidiano pensadas para atender à fixação pela comida o mais pura possível – por exemplo, quando a pessoa leva a própria refeição a um restaurante ou evita viajar porque não sabe se terá o que comer no destino”, observa o psiquiatra Eduardo Aratangy, do Programa de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP (Ambulim).

Pessoas ansiosas e com predisposição a comportamentos compulsivos estão entre as mais vulneráveis a desenvolver ortorexia, segundo os especialistas. O tratamento inclui terapia e pode ou não ter a prescrição de remédios controlados. A médica escocesa Margaret McCartney, em um artigo para o British Medical Journal em que critica a ditadura da vida saudável, com seu excesso de regras e restrições, escreve: “A comida é nosso combustível e deve ser prazerosa, não uma busca ou um objetivo final. No fim, todos nós vamos morrer, não importa quanta quinoa se coma”, diz, com razão.

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