Nas últimas semanas, as notícias de que o fenômeno El Niño deve durar até abril de 2024 atraíram as atenções do mercado. Isso porque, além do calor intenso que ele traz, o evento metereológico impacta as chuvas e os solos e, consequentemente, as safras. Segundo analistas, embora não seja possível precisar agora as consequências (nem a magnitude) do fenômeno, caso ele realmente apresente uma duração mais longa, isso pode impactar a inflação, que deve trazer consigo efeitos na bolsa e até mesmo nos juros.
Os riscos climáticos, bem como esse evento específico, não são uma novidade no radar do mercado. A grande questão é que agora, os efeitos do fenômeno têm sido muito forte e bem atípicos, o que nem sempre aconteceu. Segundo Samuel Isaak, analista de agronegócios da XP, o El Niño traz muita chuva no Sul do Brasil e um clima mais seco nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, que é o que está acontecendo agora. Assim, ele pode impactar as safras de grãos como milho e soja.
"Como esse padrão de chuvas fortes no Sul e pouca chuva nas regiões do Centro e Norte do país está se consolidando, isso aumentou bastante os riscos das safras daqui em diante. Ainda não chegamos no período mais crítico para as safras por aqui, que acontece a partir de dezembro. Então, não podemos afirmar que teremos um grande problema, mas vamos entrar nesse período com baixa umidade no solo do Centro-oeste, Norte e Nordeste, o que nos dá um motivo a mais para ficarmos preocupados", afirma Isaak.
Um dos riscos mais claros que existem em relação às safras com o El Niño é o da queda da produção nas regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, onde se cultiva especialmente soja, milho, arroz e hortifruti. Com a falta de chuvas percebida já agora, os solos dessas regiões tendem a ficar menos úmidos, o que já começa a impactar o plantio. Caso as chuvas continuem escassas, as safras são ainda mais afetadas.
Por outro lado, o aumento das chuvas no Sul pode aumentar a produção de grãos como a soja, um dos principais produtos cultivados lá. No entanto, Igor Cavaca, líder de gestão de investimentos da Warren, que acompanha esse mercado, destaca que o caso de enchentes na região também pode ser maléfico para o plantio e diminuir a safra.
No fim das contas, caso haja uma queda na produção de grãos, os efeitos não se limitam a eles. Isaak, da XP, lembra que esses produtos são transformados em outros ativos, como em biocombustíveis e em ração para animais. Isso significa, portanto, que, caso haja escassez de grãos, o preço deles tende a subir e, com esse aumento, itens como o óleo diesel e até mesmo a carne e o frango podem ficar mais caros. E essa conta, no final, é paga (a um preço mais alto) pelo consumidor.
"O risco inflacionário começa na commodity e pode ir descendo a cadeia até chegar de fato no consumidor lá na frente. Os grãos viram biocombustível, viram ração animal, que viram proteína, que é vendida no atacado e só depois no varejo. O processo é longo, mas há um aumento de risco porque a alta dos preços das commodities traz um efeito inflacionário", afirma Isaak, da XP.
Segundo Andréa Angelo, estrategista de inflação da Warren Investimentos, a inflação dos alimentos é cerca de 16% do peso familiar. Portanto, com um aumento das chuvas de fim e começo de ano, há um aumento de preço adicional para as famílias que pode comprometer o orçamento familiar. "Há um preço mais alto em produtos in natura como frutas, hortifruti, além do que já é sazonalmente mais alto nesse trimestre e no primeiro trimestre do próximo ano", afirma.
Os efeitos, no entanto, não param por aí. Cavaca, da Warren, lembra que uma seca no Nordeste pode impactar também questões energéticas, embora isso ainda não esteja no radar. "No nordeste há o contrário, a gente tem impacto na energia. Como a energia do país é muito focada em hidrelétrica, uma seca por lá pode trazer reflexos negativos. Hoje, os níveis de reservatórios estão altos, então o impacto pode ser limitado, mas há o risco", afirma.
Alexandre Espírito Santo, professor do IBMEC-RJ e economista-chefe da Órama, também alerta para os risco" adicionais" do El Niño. Um exemplo do que pode acontecer caso o fenômeno se estenda, segundo o especialista, é a ocorrência de novos temporais como o que aconteceu em São Paulo no começo de novembro.
"Vimos em São Paulo uma tormenta, que trouxe a questão do apagão, no qual vários lugares ficaram dias sem luz. E isso afetou o comércio, a indústria, até o Enem. Isso é perda de produtividade, perda de PIB", afirma. Ele explica que uma mudança climática muda até mesmo os padrões de consumo de uma sociedade, com o aumento de uso de aparelhos como o ar condicionado e ventiladores, que acarretam em um aumento da conta de luz e até mesmo trocas mais frequentes desses itens. "Isso tudo não é irrelevante. Quando pegamos o agregado, vemos que tem muito impacto na economia", afirma.
O professor conta, inclusive, que as próprias projeções da Órama para a inflação foram adaptadas levando em consideração também esse fator. Hoje, a corretora projeta que ao final do próximo ano, o IPCA será de 4%, enquanto o Boletim Focus espera 3,92%.
Por enquanto, o professor não acredita que a inflação trazida pelo fenômeno vá impactar a trajetória de queda da Selic, mas não é algo descartado. Para ele, porém, é preciso um efeito de magnitude maior para tirar os juros do trilho dos cortes.
"A partir do ano que vem, teremos quatro novos diretores no Banco Central indicados pelo governo e que serão metade do Copom. E aí, falando ainda no terreno da hipótese, se o El Niño for um evento menos intenso e que se dissipe, muito provavelmente o Copom não hesitará em prosseguir os cortes até os 9,5% ao ano, que é o que achamos", diz. "Os fenômenos naturais são difíceis de prever as consequências, a intensidade etc. Mas nesse momento não vejo um cataclismo acontecendo", conclui.
Luís Henrique Benac, assessor de investimentos e sócio da LocalInvest, concorda que, por enquanto, não há sinais de que a trajetória de queda da Selic seja interrompida pelo fenômeno. Mas, assim como Espírito Santo, ele concorda que caso o evento ganhe tração, isso pode acontecer.
"Se o El Niño for realmente fora dos padrões esperados e muito acima das projeções, fora dos níveis antes comparados, podemos sim ter um impacto um pouco mais latente. Mas, pelo que vemos até agora, o El Niño ainda é um vetor muito fraco para alterar substancialmente os juros", afirma.
Ainda assim, os efeitos na bolsa devem ser sentidos. Segundo Igor Cavaca, da Warren, as implicações não se limitam apenas às ações do agronegócio, mas elas são as primeiras impactadas.
"Se a soja em geral tiver um aumento de safra com mais chuvas no Sul, o preço dela cai e isso vai impactar [positivamente] ações de os frigoríficos, que usam os grãos como insumo. A Ambev, que tem produção de bebida, também pode ter um impacto positivo com uma alta na produção de trigo e cereais, por exemplo", diz.
Por outro lado, se as safras são impactadas negativamente e há uma queda na produção, o preço dos cereais pode subir. Neste caso, as empresas que usam os grãos como insumos (caso dos frigoríficos e da Ambev) terão custos maiores e podem sofrer.
Já as produtoras de grãos, como BrasilAgro, SLC Agrícola, Boa Safra, Três Tentos, Camil e Josapar podem se beneficiar de um aumento de receitas (já que seus produtos ficarão mais caros), mas também podem enfrentar dificuldades caso a produção caia muito.
Octaciano Neto, diretor de agro da Suno, afirma que o setor de agro é subrepresentado na bolsa, uma vez que apenas 5% do valor das empresas vem dele, enquanto na economia real, quase 30% do PIB é do agronegócio. Ainda assim, ele afirma que não vê um impacto muito negativo para as companhias do segmento na bolsa.
"Na minha visão, tende a ser um impacto de neutro a levemente negativo", diz. Para ele, a possível diminuição da oferta trará um reajuste dos preços e pode beneficiar os produtores e, consequentemente, suas ações. "O maior impacto mesmo será nos preços e na inflação", conclui. Resta o consumidor se preparar.
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